Vitorino: “Sou do contra por natureza”

Podia ter sido um concerto para assinalar o final de um ano de comemorações das quatro décadas do lançamento do álbum “Semear Salsa ao Reguinho”. Mas VitorinoSalomé prefere olhar para o espetáculo que ontem o levou ao palco do SãoLuiz Teatro Municipal como um recomeço. É que, quando a estrada já é longa, mais vale…

Ontem subiu ao palco do SãoLuiz Teatro Municipal com um espetáculo cujo tema era “Não sei do que se trata, mas não concordo”, que será também o título do seu próximo álbum, a ser lançado em 2017. É uma forma de assumir, logo à partida, que este é um homem do contra?

Tenho essa fama de ser sempre do contra… Às vezes não sou, mas sou quase sempre. Tem de haver alguém do contra, senão isto ficava sempre muito no mesmo sentido, sem agitação.

Mas isso é algo que lhe é natural ou esforça-se para ser do contra?

Já não tenho idade para me esforçar. Teoricamente já estou na reforma, portanto não me esforço para fazer nada. Sou do contra por natureza.

Não acha que o ser do contra pode servir para alertar para uma série de situações, mas no reverso da medalha pode bloquear outras?

Pode é ser confortável. É como ser católico: é extremamente confortável – uma pessoa confessa-se e vai para o céu. (risos) Eu sou do contra por natureza, mas não sou do contra por sistema. Por vezes sou a favor. Por exemplo, neste momento não tenho a flecha apontada, é uma coisa muito generalizada. Tenho um descontentamento que partilho com quem verdadeiramente vive mal ou tem razão de queixa, mas eu vivo bem comigo, até porque já não preciso de uma vida muito exuberante, já estou na reforma da minha vida. Tenho açorda todos os dias, se quiser, e isso é que é importante. Se calhar é por inércia que ainda sou do contra. É uma coisa que, quanto mais novo era, mais rezingão era, e às vezes inconveniente. Agora estou mais tranquilo. Há um olhar mais benevolente sobre as coisas, fica-se mais conciliatório, até com alguns inimigos que tivemos. Costumo dizer que, nós, portugueses praticamos o ódio de estimação. Eu pratico-o cada vez menos. Mas ainda tenho algum no frigorífico.

A alteração do cenário politico em Portugal também fez com que ficasse um bocadinho menos do contra?

Pode ter a ver com isso. Pelo menos há uma grande descompressão para a maior parte da população portuguesa. A maior parte da população descomprimiu destes últimos quatro ou cinco anos, mas também de um tempo anterior, do Sócrates, que foi muito depressivo. E que foi aprofundado quando a coligação veio para o poder. Criou muitas pressões e desilusões. Foi exercido o choque e pavor – que foi o nome da operação de entrada dos EUA no Iraque – sobre os portugueses. Era desnecessário terem feito as coisas como fizeram. Pode haver pressão agora mas não há choque nem pavor. Sente-se que as pessoas que estão no poder agora têm alguma vontade de fazer quase as mesmas coisas, mas de uma maneira mais justa.

Acha isso porque o PCP e o BE estão no poder?

Pode ser. E acho engraçado terem-lhe chamado geringonça, que é de longe melhor que coligação, a palavra tem mais música. Depois, desde 1974 que, em Portugal, nunca a esquerda esteve no poder porque a verdade é que a esquerda do Partido Socialista, que esteve no poder, era muito complicada… Agora é a primeira vez que a esquerda tem alguma influência no poder. E se a exercer com inteligência, é muito bom para nós. Se a exercer com arrogância, é péssimo. Mas a esquerda está a exercer a sua influência num tempo que é muito difícil não só para os portugueses, mas também para o resto da Europa e do mundo ocidental, que está a sofrer uma depressão muito forte. O ocidente tem estado decadente até do ponto de vista cultural. E essa decadência do ocidente e a iminência de guerra é o que mais me assusta. O resto vamos resolvendo, seja com o Gasparinho ou com outro. Ele era muito engraçado mas muito tonto.

Que futuro vê para esta gerigonça?

Terá a vida que entenderem que deve ter, mas pelos vistos já está a durar mais tempo do que o outro lado desejaria. Estar no poder é muito… O poder é mais atrativo e mais gostado do que o dinheiro. Primeiro porque também inclui o dinheiro, mas exercer o poder enlouquece os homens. O poder tem um efeito terrível no homem.

O que pensa do valor alocado à cultura no Orçamento desta geringonça?

Subiram esse valor, o que já não é mau, é um sinal de que há algum respeito pela cultura. Porque cultura também é uma palavra muito grande – devia ser escrita com K para se ler Kuuultura, de forma mais acentuada. Mas cultura é uma palavra muito vasta e que, por vezes, não tem sentido. Cultura é o nosso quotidiano, é um bom bife, uma açorda bem temperada. E depois há a cultura formal, que assumimos como inevitável e que há muito tempo que se mistura com o showbiz e os negócios, o que é muito difícil de entender. Mas acho que esta geringonça presta mais atenção a uma cultura ocidental e urbana do que prestaram os anteriores. Só o facto de fazerem regressar o ministério já tornou a área mais independente.

Se bem que, no ano passado, o primeiro em que regressou o ministério, o Orçamento para a cultura até diminuiu.

Pois. Mas mesmo havendo menos dinheiro nesse ano, se calhar, houve mais vontade. A desgraça bem explicada dói menos. Vou dar um exemplo: vou muito a Cuba e trabalho com cubanos in loco, gravei lá um disco. Nunca vi povo tão disponível, e conheço o mundo quase inteiro. E é um povo disponível porque lhes é explicado e porque a corrupção não é coisa muito aceite por eles. Lembro-me que houve um general cubano, que estava em Angola, e se corrompeu e eles fuzilaram-no. Porque os cubanos não brincam em serviço. Mas o que é facto é que, sendo um povo com um quotidiano muito precário, é também muito culto – há zero de analfabetismo – e as pessoas, apesar de tudo, vivem melhor. Não têm sem abrigos, o pouco que têm dividem muito bem. Tal como Cabo Verde. Não sei se agora, com o McDonald’s, não vão viver pior. O McDonald’s vai lhes fazer muito mal. Substituir a fome pelo Mcdonald’s não é a melhor coisa mas eles estão encantadíssimos.

Receia que Cuba, tal como a conhece, em breve deixe de existir?

Tudo muda. Mas drasticamente, não acredito, porque eles não vão deixar descambar, os cubanos têm um grande orgulho neles e no seu país. O quotidiano vai mudar, mas a música, por exemplo, não vai mudar porque a música nos cubanos é eterna.Eles têm uma aprendizagem musical a um nível profundíssimo que foi algo que ganharam com a revolução. A mesma coisa acontece com a dança. E tudo isto se pratica ao alcance de toda a gente. A motorista de táxi que me recebeu à chegada a Havana era licenciada em engenharia.

Falou do orgulho que os cubanos têm no seu país. A nós, portugueses, falta-nos esse orgulho? Pagamos ainda hoje pelas ousadias do passado, do povo pequenino que se fez grande à conquista do mundo?

Não fomos nada grandes, isso é uma ilusão. O nosso império é de cabotagem. A carreira da Índia teu logo prejuízo ao segundo ou terceiro ano e insistimos nela. E porque é que dava prejuízo? Porque carregavam tanto os navios que ao largo de Moçambique ia logo tudo ao fundo. Ficámos presos a isto, mas é um mito terrível e louco, um império da cabeça. O Dom Sebastião tentou criar o quinto império – se pensarmos bem, o seu seguidor foi o Hitler.

Apesar disso que considera um mito de um império da cabeça, e que frequentemente usamos como forma de nos enaltecermos, em simultâneo temos uma vergonha quase crónica do que é português, como é o caso da nossa própria língua.

Isso é aqui em Portugal. No Brasil são orgulhosíssimos de falarem português – basta ver que o Museu da Língua Portuguesa, que infelizmente ardeu, era em São Paulo. No Brasil defende-se muito mais a língua portuguesa do que aqui, apesar de a Dilma ter retirado a literatura portuguesa do ensino, enquanto disciplina obrigatória. Foi indecente, mas sei porque o fez: porque é búlgara e o centro da Europa não gosta do mediterrâneo nem dos latinos. Por isso é que estamos a ser esmagados. Na União Europeia são indelicados connosco, mas os que lá estão não são eternos. O que acho engraçado nesta geringonça é que empina o nariz a esses gajos. E depois eles tentam castigar-nos infantilmente. Os políticos são muito infantis.

Essa falta de orgulho nacional na língua portuguesa reflete-se em várias áreas, como é o caso da música onde, apesar de existir uma lei que define quotas de música portuguesa para as rádios nacionais, a lei não é cumprida. Gostava de ver este governo tomar uma posição efetiva sobre este assunto?

A lei existe mas não é cumprida e é impossível cumpri-la porque o que devia ser cumpridor não quer, que são exatamente as direções das rádios, que continuam muito conservadoras. E são conservadoras porque Portugal deve ser o país da Europa que mais passa música anglo-saxónica, o que é uma vergonha para nós. Temos músicos fantásticos e uma musica sui generis na Europa, que deveria sair das nossas fronteiras.

É a história da pescadinha de rabo na boca. As rádios dizem que não cumprem as quotas porque os ouvintes não querem ouvir música portuguesa…

Eles não a mostram. Se a mostrassem… Em Espanha não é preciso lei nenhuma destas!

Lá está, mais uma vez a questão do orgulho. Os espanhóis sempre tiveram fama de ter mais orgulho na sua cultura do que os portugueses.

De longe! Nós tivemos o triste destino de ficar entalados contra o mar. A nossa solução foi sair para o Brasil, mas quando regressamos retornamos à nossa melancolia. Eu desfilo na Mangueira, no Rio de Janeiro, já fui bicampeão, e na última vez que fui, o tema era “Minha pátria é minha língua”. Lá está, o português. E não foi nenhum político nosso lá! Por mim o Sócrates tinha ido desfilar! Mas aqui os intelectuais têm vergonha de mexer a anca.

É difícil imaginá-lo a sambar.

Mas eu tenho samba no pé. Apesar de usar botas.

Ainda em relação a esta questão da língua portuguesa e da música, aqui há uns tempos deu uma entrevista que causou uma grande polémica, porque disse que “quando um português canta em inglês fica tristemente ridículo”.

Foram-se a mim! Mas quando vejo alguns miúdos portugueses que tentam cantar em inglês melhor que os ingleses acho ridículo. E o que fica mais precário é arrogarmo-nos de escrever textos poéticos em inglês. É preciso termos muito cuidado. O nosso universo poético é completamente diferente. O único português que compõe bem em inglês é o Fernando Pessoa, porque é bilingue verdadeiro.

Mas sentiu-se acossado?

Não, achei muita graça.

Até quando pessoas como a Anamar o apelidaram de “homem amargo”?

Ela sabe que não sou amargo, sou muito amigo dela. Só sou amargo quando o vinho não presta. Até lhe compus canções muito bonitas, ela é que depois não as conseguiu gravar. A Anamar é uma personagem, uma Lauren Bacall lisboeta. É uma mulher muito interessante, mas nunca conseguiu emergir até ao céu.

Ainda em relação ao espetáculo que deu ontem, foi uma noite simbólica, uma vez que visava celebrar os seus 40 anos de carreira, uma data bem redonda?

Já não é bem redonda, já são mais uns 41 anos (risos). A verdade é que já estive um ano em festa, mas este concerto não foi um remate, mas um recomeço. Quero ter um ano de 2017 agitado, quero agitar o que me envolve. Por isso escolhi este título para o espetáculo e para o meu próximo álbum.

Esse tempo de celebração do último ano ficou marcado por uma dentada que deu a Cavaco Silva, o anterior Presidente da República, a quem dedicou uma música, logo no início do ano?

Foi uma dentadinha.

E acho que o atual Presidente da República merece mais ou menos uma dessas suas “dentadinhas”?Ainda antes de ser eleito já lhe tinha dado uma dentadinha. Fiz um tema e um vídeo chamado “Bom dia Marcelo”, em que o trato tão bem que ele personifica um dos meus burros, o mais lindo que pode imaginar. E eu dialogo com ele. Mas tenho de admitir que ele é um homem muito inclusivo, inteligentíssimo. Tem uma capacidade de comunicação única. E é um homem muito cordial. Acho ótimo que se goste com ele, mesmo que não nos identifiquemos com ele. Até porque ele contribuiu para tirar aquele botãozinho da panela de pressão dos portugueses.

Ao contrário de Cavaco Silva?
Com ele a panela estava lacrada, nem botão tinha, não sei como é que aquele homem chegou à presidência da república. Mas é mais um dos imponderáveis que aconteceu em Portugal e esses dez anos foram muito tristes para nós, portugueses. Pior, é o homem que esteve no poder mais tempo em Portugal, isto depois de termos uma revolução tão romântica e esperançosa. Ele encarregou-se de cortar isso, é um homem com mau feitio. Não deve ser muito boa pessoa, não gostava de ser criada em casa de tal senhor.

Há pouco falava sobre como deveríamos ter mais orgulho na nossa língua e, no fundo, nas nossas origens. No seu caso, a sua origem, o Redondo, foi algo que o marcou sempre muito?

O sítio onde nascemos e crescemos marca-nos sempre. Quando nasci, só havia escola primária no Redondo, e só era obrigatória até à 3ª classe. Mas mesmo assim os miúdos da minha idade que viviam nos Foros da Fonte Seca e ali ao pé estavam na escola e o pai ia buscá-los à 2ª classe para irem guardar perus porque havia alguém que os empregava em troca de comida. Só isto determina toda a minha vida. Eu brincava com meninos destes, eu tinha botas, mas eles não tinham. E quando cheguei à 4ª classe tive de me ir embora do Redondo, o que me custou muito, mas teve de ser para conseguir ir para o liceu.

Essa consciência de que era um menino com botas a brincar com meninos sem sapatos, teve-a ainda na infância?

Sim, porque sou neto de republicanos de espingarda na mão e sobrinho de comunistas do Partido Comunista da clandestinidade. Todas essas consciências eram ensinadas à mesa e no quotidiano. Lembro-me dos meus tios a esconderem-se da PIDE e com isso fui ganhando outro olhar, mais profundo, sobre as coisas. E não era só isto. Por exemplo, onde cresci, morriam muitas crianças e quando morria uma criança, faziam-se enterros a brincar. Era sinistro. Quem enterrava uma criança eram as outras crianças. Faziam caixões pequeninos brancos, sem tampa, púnhamos a batinha da escola e íamos com o padre enterrá-lo. Muito cedo comecei a ter esta consciência. Por outro lado eu era o menino que foi para o Convento que havia no meu largo aprender piano com uma freira. Lembro-me que ela era muito bonita, mas eu queria era ir brincar para a rua. 

O que passa pela cabeça de uma criança que, por um lado, já ajudava a enterrar miúdos da mesma idade, por outro tinha familiares que andavam constantemente fugidos à polícia? Sentia o medo?

O medo era uma constante do Estado Novo. Sobretudo no Alentejo, que era alvo preferencial dos poderes. Mas os meus tios tinham muito cuidado para não nos assustarem. Falavam de tudo com delicadeza e bonomia. E a verdade é que a eficiência da PIDE na província era muito descuidada. Sabíamos quem eram os informadores, gozava-se com eles, eram os bufos. Até nós, miúdos, sabíamos que, quando aparecia um VW preto de Évora, era a PIDE à procura de alguém.

Como é que alguém com esse lado familiar tão antissistema acaba a fazer recruta? Não pensou fugir?

Estive para não fazer. A minha mãe ainda ponderou levar o meu irmão Janita para Paris e eu ainda me organizei para fugir. Mas fui porque quis, quis ficar por companheirismo com outros grandes amigos. Hoje em dia considero que a recruta até foi uma experiência interessante.

Diz isso porque não foi para a guerra.

Pois. Estava bem classificado e tive uma sorte de secretaria. Não tive cunha nenhuma, que não era filho de general. Mas tive uma das dez melhores notas e por isso fiquei cá. Mas o tempo do Estado Novo foi um tempo muito mau, que não se pense o contrário. O Salazar cortou com a UNESCO e nem assinou a declaração de direitos do homem. Sacana do velho beirão, católico e solteirão, com a sopeira em casa para lhe fazer favores. Um católico cínico, uma personagem horrível! Infelizmente, o peso dessa cabeça ainda é muito forte em Portugal. Nunca havemos de ter uma população com o civismo dos franceses, por exemplo. E isso tem a ver com o Salazar e sobretudo com o termos tido sempre uma igreja católica muito forte. Fomos a última utopia da Europa.

Foi na recruta que se tornou muito amigo de um homem marcante para a história da música de intervenção portuguesa, Zeca Afonso?

Sim, ficámos muito amigos. Curiosamente só na sequência dessa amizade, e de termos grupos em que cantávamos juntos – eu, o Zeca, o Adriano Correia de Oliveira – comecei a ser localizado pela PIDE. Cantávamos clandestinamente em sítios incríveis que ainda não digo, acho que a historia ainda não me deixa dizer. Há um tempo histórico para dizermos as coisas, mas às vezes parece que o tempo volta para trás. Se calhar vou levar algumas destas histórias para a cova que tenho à minha espera no Redondo.

Nunca esteve sequer perto de ser preso?

A 18 de janeiro, acho que de 1972, estava o Zeca, o Adriano, o José Jorge Letria, eu e o Fausto, e quase que ia tudo a molho. Veio alguém aos berros dizer que estava a PIDE e a Guarda Republicana de baioneta à porta da sala onde estávamos. Pirei-me para trás de um piano. Mas o Zeca e o Adriano deram o corpo às balas e foram falar com eles. Eles tratavam o Zeca por Dr. porque era de Coimbra. Decidiram que ninguém podia cantar e não cantámos, mas a plateia cantou as canções todas porque as sabia de cor.

Onde estava no dia em que se alicerçou essa utopia de que falou, o 25 de abril de 1974?

Estava em Lisboa, por acaso, porque nessa altura passava muito tempo em Paris onde estava a começar a gravar um disco. Mas estava em Lisboa e fui surpreendido por descobrir que alguns amigos íntimos sabiam e não me disseram.

Depois da recruta foi logo para Paris?

Não. Quando estava na tropa, no Algarve, fiz a aptidão à Escola de Belas Artes de Lisboa e nos anos seguintes andei por Lisboa, por Beja…

O que o levou a inscrever-se em Belas Artes? O que queria fazer da vida?

Quando se tem 20 anos e a força que a gente tem, não pensamos em nada. Achamos que somos eternos, não há projetos.

Nesses anos sem destino definido, em que se achava eterno, a boémia era muita?

Muitíssima! A boémia era cultivada. O projeto era esse. A boémia era cultura e era contestatária. Ser boémio era ser contestatário.

Mas a verdade é que, por vezes, a boémia não era assim tão cheia de conteúdo. Por vezes eram apenas noitadas bem regadas, ou não?

Pois. Mas eram belíssimas noites de copos e convívio. Eram noites de grande libertação. Porque a partir dos anos 60 há um movimento libertador, sobretudo com o maio de 1968, que entra pelas universidades portuguesas também, e que transborda para a população, do ponto de vista das ideias e dos costumes. Por exemplo, pela primeira vez, no Redondo, as senhoras vão ao café. Isto ainda antes do 25 de abril. E sim, havia muitos copos, mas também havia muita cultura nessas noitadas. Havia, por exemplo, muita escuta de música, em casa de outras pessoas. Ouvíamos muita coisa ligada ao existencialismo francês e isso leva-nos a começar a cantar poetas portugueses e a resgatar a música portuguesa dos serões para soldados e serões para trabalhadores, que era a música oficial organizada na Emissora Nacional e no Centro de Preparação de Artistas, sítios onde as letras eram completamente vigiadas. Essa música do Estado Novo era muito decadente. Curiosamente, hoje em dia acho que essas canções eram muito bem feitas, mas o texto não podia ser o que os artistas queriam. Basta pensar que, em 1962/63, a música em Portugal estava decadentíssima, e lá fora os Beatles cantavam o ‘she loves you yeah yeah yeah’.

Nesses serões já cantava ou era dos que só ouvia?

Já cantava. Já cantava até no ensino secundário e nunca parei. Tive um grupo com rapazes em Évora, cantávamos com guitarra. Já o cante alentejano comecei a cantar sem querer, como todos os alentejanos, ainda criança. Os meus tios tinham uma orquestra e eu toquei piano com eles, tinha uns 15 anos. Antes tive as tais aulas de piano com a freira. Tive a sorte de ter instrumentos na família. Além disto, comecei a andar nas tabernas muito cedo. O meu avô ensinou-me a beber vinho tinto tinha eu 12 anos. Punha uma pinguinha de água. Essa aprendizagem fez com que eu agora não tenha uma cirrose (risos). A taberna, para a minha geração, era um local muito acolhedor, onde a gente começa a praticar tudo, também o cante. Os homens mais velhos faziam de nós homens.

Nessa época era assim que se fazia a iniciação, e não apenas ao álcool.

A muitas outras coisas, também ao nível sexual. Mas essa parte não conto.

Continuo sem perceber como é que, com todo esse historial e todos esses amigos, foi para Belas Artes.

Não sei. Mas quando fui para Paris, fui com a intenção de ser pintor. Apesar de já acompanhar o Zeca e andar nessas vidas. Gosto muito de banda desenhada, vivia no bairro do “Charlie Hebdo” e de muitos dos seus principais nomes. E por isso ainda me inscrevi num curso de banda desenhada em Paris. Mas ao mesmo tempo ia com a guitarra para a rua tocar, com um amigo boliviano. E aquilo dava muito dinheiro, sobretudo porque tínhamos umas amigas hippies muito bonitas a pedirem dinheiro por nós.

Ganhava muito dinheiro?

Uma vez estava a cantar as “Pombas Brancas”, uma canção lindíssima do Zeca, e estava um casal muito romântico, tipicamente parisiense, e quando passei a boina a senhora pôs o seu anel de diamante – foi a minha maior esmola. Depois vendi-o (risos) Estava a cantar num restaurante onde costumava ir também o Mário Soares que me dava sempre dinheiro. E era o Eduardo Barroso que passava a minha boina.

Foi aí que percebeu que queria mesmo gravar um álbum?

Sim. Comecei a preparar o álbum [”Semear Salsa ao Reguinho”] em Paris, sem saber se o poderia lançar em Portugal. Escolhi este nome porque era o nome de uma moda alentejana, que eu incluí no álbum. Eu e o meu irmão Janita sempre cantámos modas alentejanas. Sempre tentámos manter vivo o cante alentejano, que nunca se comparou com o fado, que teve sempre mais destaque e meninas bonitas e tatuadas a cantar, enquanto o cante tem alentejanos façanhudos, de bigode e a cheirar a vinho. Agora já temos cantadeiras bonitas, mas o sentido social do cante assusta as pessoas. Ainda assim sempre se aguentou.

Foi essa vontade de manter o cante vivo que o fez incluir este género no seu álbum e, de resto, mantê-lo sempre vivo na sua carreira?

Acho que foi uma homenagem justa ao esmagar do cante alentejano, que nunca foi permitido que emergisse.

Foi logo desse seu primeiro álbum, “Semear Salsa aoReguinho”, que saiu o maior hino da sua carreira, o tema “Menina Estás à Janela”. Sente-se muitas vezes refém dessa canção?

Sim. Sinto-me muito refém dessa música e tento não cantá-la., confesso. Lembro-me de uma série de concertos que dei no Teatro da Trindade e tentei não a cantar, e quando a cantava, não terminava os concertos com ela. Agora, faço o mesmo. Mas percebi que não posso ser indelicado ao ponto de dizer que não a canto. E por acaso é uma canção lindíssima, com um texto muito bonito, e uma melancolia luso alentejana. Acho que é um texto que só podia ser feito por um alentejano.

O seu sotaque redondense está lá sempre? Nunca consegue abandoná-lo?

Assim que entro no conselho do Redondo começo a falar a redondeira. (risos) Hoje em dia vivo entre Lisboa e o Redondo, mas lá tenho a minha família maravilhosa: 40 burros.