José Fragata: “É um privilégio poder mexer no coração dos outros”

Uma menina com apenas 70 dias fez um transplante de coração no Hospital de Santa Marta, em Lisboa. José Fragata dirige o serviço de cirurgia cardiotorácica. Já operou cinco mil crianças e acredita que há histórias de vida como esta, também de generosidade, que parecem milagres

Os nomes não vão ser revelados. É uma regra de ouro na transplantação, diz José Fragata, uma área com muitas emoções onde convivem sempre dois lados delicados: há uma vida que se prolonga noutra. Há dois meses, uma menina com apenas 70 dias de vida recebeu um novo coração no Hospital de Santa Marta. Foi a mais nova de sempre a ser transplantada no país. O caso só foi tornado público agora para proteger as famílias. O cirurgião, responsável pelo serviço de cirurgia cardiotorácica, conversou com o i sobre a operação e sobre esta arte de mexer no coração dos outros – órgão que, mais de dez mil operações depois, continua a fasciná-lo.
 
Como soube que iam ter esta criança para operar?
Quando há um caso de malformação, geralmente contactam o nosso serviço. Sabíamos que havia uma criança internada num hospital do Porto que tinha nascido prematura e estava com quase dois meses, mas com um peso muito baixo ainda, à volta de 2200 gramas. Tinha uma anomalia no coração que fazia com que não contraísse normalmente. Nestes casos há indicação para pôr um coração artificial mas, devido ao baixo peso, a criança não era elegível para esse procedimento. Foi por isso que se ficou a aguardar que houvesse um coração, sem grandes esperanças, pois obviamente não acontece sempre encontrar–se um dador nestas idades. 

Como funcionaria o coração artificial?
São basicamente duas bombinhas pneumáticas que ficam fora do corpo, ligadas a tubos no coração. São aspirantes permanentes de sangue, com uma consola agarrada. É como um coração paralelo. Já tivemos umas dezenas de casos, mas o primeiro implante numa criança aconteceu em 2005, num menino, na altura, com dois anos que mais tarde viríamos a transplantar. Como é um procedimento que só podemos fazer a partir dos três quilos e meio, esta situação era ainda mais difícil. 

Como estava a bebé?
Muito frágil, internada numa unidade de cuidados intensivos, a evoluir mal no peso.

Quando souberam que havia um coração disponível, o que sentiu?
Às vezes há coisas que certamente acontecem por acaso, mas parecem tanto milagres que ficamos na dúvida se acontecem por acaso ou não. É isto que se sente. Claro, quando percebemos que era possível, que era o mesmo grupo sanguíneo, ficámos confiantes. A bebé veio do Porto e avançámos.

Foi dos momentos da sua carreira em que mais sentiu estar a viver um milagre?
Já operei dez mil doentes, dos quais cinco mil crianças. Como pode imaginar, já poucas coisas me surpreendem muito. Mas é óbvio que sentimos sempre a adrenalina e que estamos a dar uma oportunidade que pode ser decisiva a uma criança. Operar doentes é sempre um privilégio. É um privilégio poder mexer no coração dos outros, é um privilégio que a sociedade nos dá. Não só a mim, mas a toda a equipa. Nunca é trabalho de uma pessoa só e para todos é um momento de alegria. 

Foram quantas pessoas no bloco naquele dia?
Umas dez pessoas. A dra. Isabel Fragata na anestesia, a cardiologista Conceição Trigo, as enfermeiras… E a cirurgia é só uma parte. Há a preparação e a recuperação: todo o acompanhamento de um bebé destes é muito exigente e envolve muitas pessoas.

Antes deste caso, que idade tinha o bebé mais novo transplantado no país?
Tinha três meses e já mais de três quilos. Temos 15 crianças transplantadas. Esta menina passa a ser a mais nova. Com pouco mais de dois meses de vida e, tendo sido prematura, é como termos transplantado uma criança que tivesse nascido de uma gravidez de termo. 

Qual é o tamanho do coração de um bebé com esta idade?
Do tamanho mais ou menos do punho do bebé. Uma pequena tangerina.

As mãos não tremem mais?
Não tremem. Antes de um caso destes, claro que há ansiedade e sentimos o peso do que vamos fazer. Mas quando entramos no bloco e começamos, a concentração é tão grande que esquecemos as emoções.

Tem algum truque para se concentrar no bloco?
Durante muitos anos ouvi música clássica no bloco, mas agora não faço nada. Os anos vão passando e temos o nosso método. Ouço a música em casa, ao final do dia.

Falou-me do cuidado que é preciso ter com o outro lado, o respeito pelo dador. Como se gere essa emoção de salvar uma vida sabendo que isso só é possível porque uma outra vida desapareceu?
O transplante é sempre assim. É um ato de altruísmo muito grande em que alguém que morreu prolonga a sua vida noutra pessoa. Não deve haver generosidade maior. E quem permite isso – no caso das crianças, quem autoriza são os pais – são pessoas de uma dimensão superior, que nos faz curvar. E também aumenta a responsabilidade. Estamos a lidar com dupla responsabilidade de cuidar da pessoa que queremos que fique bem e de estar à altura do altruísmo da dádiva do outro. 

Quanto tempo durou esta operação?
Umas quatro horas.

Como estavam os pais?

Tiveram um mês e meio de horror antes desta cirurgia, é uma coisa quase inacreditável. Parece uma dádiva do céu. Não sei se acredita ou não, mas é uma dádiva.

O doutor acredita?
Acredito.

Sempre acreditou? A profissão não muda nada?
Não. A medicina não é uma profissão só técnica, é uma profissão social, lidamos com pessoas, com a vida. É claro que tem um braço técnico muito forte, mas o braço técnico da medicina não pode esmagar nunca o lado social e humano. E não esmaga.

Esse sentimento com o tempo foi aumentando?
Foi ficando mais forte, também porque à medida que vamos envelhecendo vamos ficando mais lábeis emocionalmente, mais sensíveis. Começamos a ter filhos, a ter netos, e a fazer comparações, a imaginá-los nestas situações. Hoje, as cirurgias que me dão mais stresse são as mais simples porque, nessas, a taxa de erro e falha deve ser zero. Se vamos fazer um caso muito complexo e acontece alguma coisa, é uma pena, mas as pessoas estavam à espera de qualquer desfecho. Agora, se operamos uma criança ou um adolescente ou mesmo um adulto com um defeito mais simples e acontece alguma coisa errada, o peso é esmagador. Nas cirurgias mais simples, sinto cada vez mais o peso de nada poder correr mal.

É desgastante essa autoexigência de infalibilidade?
É. E molda a nossa personalidade. Os ingleses têm uma expressão boa: “We don’t like to go beating around the bush.” Queremos ir diretos às coisas. Temos de tomar muitas vezes decisões no momento e temos de conseguir lidar com o sim ou o não, o que pode dar algum risco de esgotamento e burnout. Quem não tem feitio para isso não consegue estar nesta profissão.

Como está a bebé?
Está bem, já está em casa. Já foi para o Norte.

Transplantou a primeira criança em 2005. Que memória tem desse caso?
Foi um caso que nos marcou. Viveu dez anos e depois teve um problema de rejeição grave e acabou por falecer. Teve 105 longos dias ligado a um coração artificial. O transplante é sempre uma realidade dura. Mesmo assim, nestas idades há uma maior janela imunológica, conseguimos melhores resultados. Mas estamos sempre a substituir uma doença muito grande por uma doença mais pequena. É preciso fazer medicação ao longo da vida. 

Trabalha com a sua mulher no bloco. É fácil?
Nem sempre, mas dá uma grande confiança.

Não podem discutir em trabalho…
Às vezes discutimos, é normal, mas também nos dá maior proximidade.

Ao final do dia conseguem desligar?
Não… Levamos tudo para casa. Claro que devíamos desligar, mas é impossível.

O que o fascina mais no coração?
A harmonia. Trabalho com corações malformados mas, mesmo assim, a harmonia. E o coração é uma bomba, aparentemente é um órgão estúpido.

Estúpido porquê?
É apenas uma bomba: aspira sangue e injeta sangue. Não é como o cérebro, com todas as suas interligações. Basta ver que não conseguimos substituir o cérebro, mas conseguimos substituir temporariamente o coração. Mas é um órgão aparentemente estúpido que é uma maravilha. A forma como o coração se consegue contrair é surpreendente. Cada célula do coração só consegue encolher 10 a 15%, mas o coração, no seu conjunto, consegue encurtar-se 60% numa contração devido ao seu desenho. Tem uma anatomia fascinante. E é óbvio que a alma não está no coração, mas há muita alma no coração. Quando se ama, o coração acelera. O coração vai atrás dos estados da alma e hoje suspeita-se até que o coração consegue influenciar o cérebro.

Vai continuar a seguir esta criança?
Será sobretudo a cardiologista Conceição Trigo a fazer o seguimento. Mas hei de vê-la certamente e tirar uma fotografia com ela.

Tem muitas fotografias das crianças que operou?
Muitas, temos o serviço cheio. E recebemos postais pelo Natal, muitas vezes durante anos. Às vezes não nos lembramos dos miúdos porque os vimos pequeninos, mas lembramo-nos dos pais e das mães. São cinco mil meninos, mais de 10 mil com os adultos. São muitas pessoas, é um estádio do Marítimo!

E sente-se com força para continuar?
Sim, claro. Tenho 63 anos, mas frescos.

Com coração de 30?
Gostava de poder dizer que sim, mas não tenho a certeza.