P rofessora de Estudos Clássicos em Cambridge, onde também se doutorou, Mary Beard tem um percurso académico impecável e um currículo esmagador. Mas não é uma académica convencional. Blogger muitíssimo ativa, feminista, editora do The Times Literary Supplement, tem feito documentários para a BBC e contribuído para que cada vez mais pessoas se interessem por este período da História.
Nascida na pequena e muito antiga vila de Much Wenlock no primeiro dia do ano de 1955, foram as visitas ao Museu Britânico na infância que despertaram o interesse pela Antiguidade. Mas foram as escavações que fez quando era adolescente que a levaram a querer estudar a Roma antiga. «Li uma boa dose da literatura que [os romanos] nos deixaram (ninguém leu tudo) e estudei as centenas de milhares de livros e documentos escritos ao longo dos séculos sobre eles, desde Maquiavel e Gibbon a Gore Vidal e mais além. Tentei decifrar as palavras gravadas em pedra e desenterrei-as, literalmente, em locais arqueológicos molhados, ventosos e pouco glamorosos na Britânia romana».
Tendo em conta que o ano de 753 a. C. é apontado como a data de fundação de Roma e que Beard termina o seu livro em 212 d.C. – ano em que «o imperador Caracala decretou que todos os habitantes livres do Império Romano, onde quer que vivessem, desde a Escócia à Síria, fossem cidadãos romanos» – SPQR cobre perto de mil anos de História. Uma História com todos os ingredientes: amor, traições, dinheiro e rios de sangue. SPQR significa Senatus PopolusQue Romanus – ‘O Senado e o Povo de Roma’, sendo possível, ainda hoje, ver essa sigla em muitos locais, como as tampas metálicas da rede de esgotos da Cidade Eterna.
Considera SPQR – Uma História da Roma Antiga o seu magnum opus? É a síntese do trabalho da sua vida?
De certa forma sim. Com isto quero dizer que junta os pensamentos de uma vida inteira sobre a Roma Antiga, e os resultados de 40 anos a ensinar e a falar sobre Roma. É o tipo de obra que podemos escrever quando temos 60 anos… provavelmente não antes disso, nem muito depois!
No prefácio faz referência a mitos e a meias-verdades sobre Roma que as pessoas tomam como factos. Qual é a ideia errada sobre Roma com que se depara mais frequentemente e que sente que é seu dever combater e clarificar?
Penso que o maior erro que as pessoas cometem é imaginarem que Roma foi algo excecional desde o início: que ‘nasceu’ diferente e que era mais propensa à violência e à expansão militar do que os seus vizinhos. Não era. Uma das grandes questões é quando Roma se tornou realmente excecional.
E como professora ouviu muitos disparates nas suas aulas?
Nesse aspeto os meus alunos não são muito diferentes das restantes pessoas.
No capítulo 11 deste livro, ‘Ricos e pobres’, refere quanto os romanos se divertiam com uma linguagem ordinária e piadas escatológicas. Podemos dizer que este é um traço comum ao povo romano, independentemente do extrato social?
Muitos pensam que este aspeto da cultura romana estava associado aos mais pobres. Mas tenho a certeza de que era um fenómeno romano transversal. Como alguém disse sobre o século XVIII britânico: ‘Havia muitas piadas baixas na alta sociedade’.
Há uma questão que o leitor atual se pode colocar: apesar de toda a sofisticação, luxo e trabalho escravo ao dispor dos patrícios romanos, será a nossa vida mais confortável do que a deles, uma vez que temos eletricidade, automóveis, ar condicionado, etc.?
Sim, infinitamente mais confortável… e muito mais higiénica. Penso muitas vezes nas grandes termas de Roma. Deviam ter uma aparência esplêndida e luxuosa, mas provavelmente também eram imundas. Um escritor romano recomendou que não se fosse às termas com uma ferida aberta – pois corria-se o risco de apanhar gangrena.
O que a levou a querer estudar a Roma Antiga? Um professor? Um livro? Uma viagem?
Foram as visitas que fiz ao Museu Britânico quando tinha cinco anos que me inspiraram a estudar o mundo antigo, ainda que na altura não especificamente a Antiguidade Romana (penso que de início até foi a Grécia que mais captou a minha imaginação). Voltei-me efetivamente para Roma ao fazer escavações arqueológicas na antiga Britânia, quando era adolescente. Apesar de termos apenas encontrado umas peças de olaria não muito impressionantes, essas escavações proporcionaram-me um contacto imediato com o mundo antigo.
Na Bibliografia de SPQR refere, e passo a citar, «aprendi muito com Christopher Kelly, The Roman Empire: a very short introduction». Eu pensava que a Mary Beard sabia tudo o que há para saber sobre o mundo romano. Embora seja uma autoridade, ainda aprende com os outros?
Graças a Deus, uma pessoa está sempre a aprender com os colegas e com os seus livros. Há uma quantidade infindável de vestígios do mundo romano, que nenhum indivíduo poderia dominar na totalidade. Mas sobretudo uma pessoa aprende com as interpretações feitas pelos outros e com as possibilidades de interligações que elas trazem.
É por isso que no seu livro sobre Pompeia, e neste também, é tão cautelosa e faz questão de chamar a atenção para tudo aquilo que ainda não sabemos?
Sim. Penso que é importante ter consciência de que há muita coisa que se pode aprender sobre a Antiguidade, mas ao mesmo tempo há muita coisa que não sabemos. Não devemos ter medo de ser muito honestos acerca das áreas em que somos mais ignorantes.
Leu as obras monumentais de Edward Gibbon (O Declínio e Queda do Império Romano) e de Theodor Mommsen (História de Roma)?
Sim… ainda que não os tenha lido palavra por palavra!
Poderia apontar, sucintamente, o que faz deles grandes obras e, ao mesmo tempo, quais são as suas principais fragilidades?
São livros muito diferentes. Gibbon era um livre-pensador, um escritor brilhante e tinha uma intenção ideológica (embora os seus pontos de vista agora nos pareçam muito típicos do século XVIII). Mommsen era um grande sistematizador. Movia-o a confiança de que seria capaz de definir a Lei romana, a Constituição romana e por aí adiante. Conseguiu um feito muito relevante, mas encorajou-nos a pensar que os romanos eram um pouco mais organizados, um pouco mais sistemáticos e talvez um pouco mais prussianos do que eram na realidade.
Qual é, na sua opinião, o lugar onde podemos ter um melhor vislumbre do que era o mundo romano, o lugar onde mais se respira ‘o ar de Roma’? Na própria cidade? Num monumento? Em Pompeia?
A minha primeira escolha seria Pompeia. Ali temos a sensação maravilhosa do que seria passear por uma rua romana. Óstia, a cidade portuária que servia Roma, também é boa para isso (e tende a estar menos sobrelotada do que Pompeia). Em seguida iria para o Norte de África. Visitei recentemente Timgad, na Argélia, e foi extraordinário: é uma pequena Roma à beira do Sahara.
E qual considera ser melhor reconstituição de Roma no cinema ou na televisão? Viu a série Rome, que passou recentemente?
Sim, vi a série Rome. O enredo aborreceu-me um pouco, mas a reconstrução material do mundo romano era brilhante. Também achei as reconstruções do filme Gladiador muito boas, não apenas os combates de gladiadores, mas também todo o cenário de guerra no início.
Mary Beard respondeu às perguntas do SOL por email