A edição de 2017 do Guia Michelin, apontada como a bíblia dos melhores restaurantes do mundo, vem recheada, como nunca, de restaurantes portugueses. São cinco restaurantes com duas estrelas Michelin e mais 16 com uma estrela. Ao todo, uma constelação de 26 estrelas a brilhar em restaurantes portugueses, isto num país que, no guia deste ano que está prestes a terminar, tinha 14 restaurantes premiados; que no ano anterior tinha 12 e no de 2013 tinha 11. Há cinco anos havia apenas um restaurante premiado com duas estrelas Michelin. Na quarta-feira ficámos a saber que, em 2017, serão cinco – e a terceira estrela, que será inédita em Portugal, não andará a viajar longe…
Será que os exigentes inspetores do Guia Michelin, a instituição gastronómica que conheceu a primeira edição em 1900, abriram agora os olhos para a cozinha portuguesa? É uma mistura de vários fatores que explicam a alteração no panorama. Os portugueses sempre gostaram de comer e uma das características da cultura gastronómica lusitana é a capacidade que tem de aproveitar tudo para encher os pratos de sabor. Em Portugal, quando se desmancha um porco ou uma vaca num talho, até os pezinhos se comem. O sabor, na verdade – e podemos dizê-lo, orgulhosamente – sempre esteve lá e de forma imbatível. Mas as diretrizes do Guia Michelin, que aponta, há vários anos, para cozinhas mais requintadas, embatiam sempre na aparente simplicidade dos pratos portugueses.
A tendência tem vindo a ser, paulatinamente, alterada, mas também se sabe que a mentalidade francesa é resistente à mudança. É verdade que os critérios de avaliação do guia têm vindo a ser revistos: há uns anos era muito difícil para um restaurante que não colocasse toalhas na mesa ter uma estrela Michelin. Outra coisa que, em Portugal, sempre fez muita confusão aos inspetores foi o facto de, por exemplo, o peixe ser servido inteiro, na espinha.
O aparecimento de outros respeitosos guias ou sites de classificação dos melhores restaurantes do mundo agitaram o Guia Michelin: a não ser que seja por uma opção estética muito vincada, não irá encontrar uma toalha de mesa num restaurante com estrelas Michelin. Hoje a identidade de cada país parece ter ganho a importância aos olhos dos inspetores, que já sabem que o restaurante em que se sentam em Paris não tem que ter os mesmos sabores que os de um restaurante em Leça da Palmeira.
Por outro lado, e isto talvez seja o que mais importa sublinhar, os chefes portugueses têm trabalhado muito, desenvolvendo um esforço criativo enorme na busca de conceitos. A última década e meia, para grande parte destes cozinheiros premiados, foi passada em formação, em estágios nas melhores cozinhas do mundo, onde souberam aprender e ganharam confiança para arriscar.
Entre cedências e trabalho árduo encontra-se a resposta para o facto de Portugal ser uma potência em crescente na constelação Michelin. Num ranking global, Portugal ocupa hoje a 13.ª posição – de um total de 28 – no número de restaurantes com maior número de estrelas Michelin, superando, por exemplo, a refinada cozinha escandinava.
A busca pelo sabor
A boa saúde do setor do Turismo em Portugal ajuda, mas não justifica toda esta chuva de estrelas – que ainda podia ser maior, mas já lá vamos. De facto, há um trabalho muito intenso da parte dos chefes portugueses na consensual procura do sabor. É o que todos respondem quando lhes perguntamos o que é mais importante no momento em que começam a desenhar um prato. “Comparando com outra arte: um pintor pinta um quadro e não precisa de ser bonito, precisa é de transmitir qualquer coisa. Um arquiteto faz uma casa que tem de ser habitável. Um prato tem que ser para comer! Uma grande ideia, na cozinha, tem que representar sempre muito sabor”, disse ao B.I. o chefe José Avillez, que, com o seu Belcanto, conseguiu trazer, em 2016, o primeiro duas estrelas Michelin para Lisboa.
O proprietário do Belcanto, do Cantinho do Avillez, do Mini Bar ou do mais recente Bairro do Avillez é um dos exemplos mais mediáticos da forma como se trabalha em Portugal: com exigência, método e consistência. Mas há muitos mais que o fazem da mesma forma: o chefe Alexandre Silva, que parece divertir-se à séria na cozinha do seu Loco, em Lisboa; o chefe Henrique Sá Pessoa que optou por consolidar ideias para agora conseguir chegar ao reconhecimento; ou o chefe Ricardo Costa, um dos maiores talentos da gastronomia portuguesa que já tinha conseguido uma estrela no restaurante Largo do Paço, em Amarante, e haveria de conquistar a primeira do The Yeatman, em 2012, para agora lhe somar a segunda.
O diretor do Guia Michelin para a Península Ibérica, Angél Pardo, tinha prometido um “ano bombástico” para a gastronomia portuguesa. Durante umas semanas, e depois das declarações do responsável a jornalistas espanhóis, a prometer a duplicação das estrelas em Portugal, até se esperavam mais algumas estrelas no firmamento. Na verdade, será apenas uma questão de tempo: depois do melhor ano de sempre de Portugal no Guia Michelin, a expectativa é que a edição do próximo ano volte a ser de muito sucesso para os restaurantes portugueses. Mesmo que os menus destes restaurantes não sejam para todos os bolsos, desperta-se a curiosidade do público e apura-se o palato. Há muitos restaurantes e novos conceitos a serem trabalhados: será apenas uma questão de tempo para que o trabalho e a consistência das cozinhas sejam ainda mais reconhecidos.