Mais acostumado a ouvir ecos do que outras vozes, Fidel Castro exercia o poder falando muito e escutando pouco. Disto, em consonância com os seus inimigos, o acusou o poeta uruguaio Eduardo Galeano. Mas, ao contrário deles, o poeta reconheceu que Cuba e a sua revolução, “crescida no castigo, é o que conseguiu ser e não o que quis ser”.
Por sua vez, o escritor argentino Martín Caparrós notava este sábado na edição castelhana do “The New York Times” que, em nome da revolução, os militantes que procuraram construir uma sociedade capaz de sacudir-se da opressão e de se valer por si mesma, acabaram por criar a mais frágil das utopias, uma ficção em que nem mesmo eles acreditavam, e é prova disso a pouca confiança que nela tinham, na medida em que nunca permitiram que se governasse.
Para ilustrá-lo, Caparrós lembra um episódio que pode ser lido de duas maneiras radicalmente diferentes. Uma reflete a força e a energia contagiante que permitiu que Castro sobrevivesse a 637 atentados contra a sua vida, sobrevivendo a 10 presidentes dos EUA; o outro reflecte o lado mais patético de um líder que não se podia dar ao luxo de relaxar por um momento, como se arriscasse acordar despojado do seu sonho. Foi há 12 anos, durante um comício, ao descer do palco tropeçou e fracturou um braço e um joelho. Quando se preparavam para o operar – segundo o relato oficial –, o comandante “explicou aos médicos que, dadas as circunstâncias actuais, era necessário evitar a anestesia geral para estar em condições de atender a numerosos assuntos importantes”. E este relato adianta que fosse durante a intervenção como no recobro, “continuou a receber informações e dando instruções sobre como lidar com a situação”. Caparrós prefere a inclinação parodística deste episódio, como ele evidencia o fabuloso fracasso de um homem que, estando no poder há 45 anos, “não tinha conseguido organizar um governo e uma sociedade que pudessem passar sem ele umas duas ou três horas”.
Se a história é escrita pelos vencedores, na escala distorcida que vai de herói a tirano, mais útil a contos de fadas do que a tratar a complexidade e os dilemas do mundo em que vivemos, Castro estará condenado a vagar pelos livros de história no papel de um dos grandes vilões do século que, com ele, parece ter-se encerrado. Mas se a história mais do que servir sentenças merece ser relida, se a cultura vive do reforço da atenção, e se houver tempo ainda para centenas de indecisões, e centenas de visões e revisões, antes de ser hora de tomar o chá e a torrada – como num dos poemas que mais disse ao início do século XX –, então, entre inocente ou culpado, o debate sobre o veridicto a atribuir a Castro talvez seja um dos mais instigadores que se pode ter para entender a intrincada teia de sombra e luz que define o século passado.
Verifica-se hoje com alguma clareza como a revolução cubana se fez em grande medida do seu atraso no tempo, a sua alma define-se entre os anacronismos e as contradições que são tão próprias da vida naquela ilha, e não há quem tenha lido os seus escritores, ou viajado até lá e passeado pelas ruas de qualquer das suas cidades, sem reparar como Caparrós, nessa piada de mau gosto que vê como o seu encanto se faz de um ambiente de ruína, um ar de antigo postal animado, com os seus edifícios destruídos, tendo como ícone por excelência os velhos modelos automóveis que os americanos abandonaram quando a revolução se implantou, em 1957. De Cuba fica-nos uma certa nostalgia que nasce da contradição com o avanço e modernização do resto do mundo, um olhar a partir de cidades inclinadas para um futuro de vertigem e sufoco.
Talvez um dos prismas mais férteis para se encarar a Fidel Castro seja na sua relação com a própria produção cultural cubana, com a ilha que muitas vezes se viu arrastada pela corrente do autoritarismo, a dar origem a um “arquipélago de exílios exteriores e interiores”, como escrevia este sábado Romina López La Rosa no “La Vanguardia”. A revolução cubana conheceu as várias etapas de uma vida, da infância e juventude, exuberantes e desafiadoras, a uma idade madura em que para garantir a sua sobrevivência em muitos momentos traiu o idealismo das suas origens, acabando por, em muitos aspectos, configurar “a pior das refutações” do socialismo como valor resistente ao imperialismo norte-americano. Nesse sentido, como refere Caparrós, a morte de Fidel Castro parece coincidir com os últimos estertores de uma ideia de revolução que acabou por ser desfigurada pelo autoritarismo de um homem que não soube escapar à “tentação de si mesmo”, e acabou por servir de exemplo a uma série de outros líderes da suposta esquerda latino-americana que instituíram uma forma de monarquia paranóica e em constante estado de negação.
Recuperando os dias da infância, La Rosa lembra o período em que a revolução cubana e os intelectuais de esquerda caminharam juntos. Os anos 60, em que Havana melhor vestiu o traje da utopia, com escritores, pintores, artistas e músicos a desfilarem nas suas ruas, num desses momentos raros em que a esperança parece vencer todo o cinismo. Foi o período a que, no livro “Y Dios entró en La Habana”, Manuel Vázquez Montalbán, chamou de “a idade da inocência”. Naqueles anos em que, à semelhança do que acontecera na Moscovo dos anos 1920, Havana se tornou “a Meca de todos os violadores de códigos do mundo, que buscavam em Cuba um novo destino social capaz de entender os novos tempos”.
Um dos momentos altos da lua de mel dos intelectuais com El Comandante, foi a visita de um mês, ainda em 1960, do casal Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir. “Ele é toda a ilha”, escrevia, deslumbrado, Sartre após conhecer Castro, no auge da revolução. O filósofo relatou de forma apaixonada a sua estadia em 16 artigos escritos para o jornal “France-Soir”, sob o título “Tempestade sobre o Açúcar”, e estes ajudaram a criar a aura que envolveu naqueles anos o regime, transformando os dirigentes revolucionários em heróis românticos”.
Nesta mesma sintonia, o escritor colombiano Gabriel García Márquez, ao lado dos argentinos Rodolfo Walsh e Jorge Masetti, foram os fundadores da agência de notícias Prensa Latina, um serviço de notícias lançado pelas autoridades cubanas para contrariar a narrativa dos media norte-americanos. Até ao último dos seus dias este Prémio Nobel da Literatura nunca rejeitou o laço que o unia ao líder cubano, mas a amizade dos dois admitia que Márquez assumisse algumas nuances no seu apoio ao regime, e o colombiano nunca deixou de criticar alguns dos excessos na revolução de Castro.
Mas houve um momento de ruptura em que muito poucos foram os intelectuais que permaneceram cegamente ao lado da revolução, um choque que não só custaria a Castro muitas das suas alianças, como a partir dali colocaria em oposição duas barricadas que se manteriam em aceso confronto ao longo de décadas entre os intelectuais ibero-americanos. Este deu-se em 1971, no culminar do processo de burocratização do governo de Cuba, quando o poeta Heberto Padilla foi encarcerado. Ele e alguns dos seus companheiros foram os primeiros a mostrar-se desiludidos ao considerar que a revolução tinha traído os seus próprios ideais.
Padilla, que tinha vivido de forma entusiástica os primeiros passos da construção do Estado dos trabalhadores, escreveu em 1968 um livro de poemas cujo título era “Fora de Jogo”, e que criticava o rumo adoptado por Castro. Leia-se o que dizia no poema “Poética”: “Diz a verdade./ Diz, ao menos, a tua verdade./ E depois,/ deixa que alguma coisa aconteça:/ que te rasguem a página amada,/ que te abatam a porta à pedrada,/ que a multidão/ se amontoe sobre o teu corpo/ como se fosses/ um prodígio ou um morto”.
Após ser libertado, Padilla viu-se submetido ao tipo de julgamento público que o mundo tinha ainda fresco na memória da perseguição estalinista. Fidel dava assim curso à célebre frase que havia pronunciado dez anos antes, na Biblioteca Nacional cubana: “Quais são os direitos dos escritores e dos artistas, revolucionários ou não revolucionários? Dentro da Revolução, tudo. Contra a Revolução, direito nenhum”.