Da luta nos bastidores ao apoio a doentes e trabalho junto de minorias. Luís Mendão é uma das figuras mais reconhecidas na luta contra a sida no país. Foi diagnosticado há 20 anos. Durante três, ninguém suspeitou do que tinha. A começar por ele, na altura já ativista na área direitos cívicos e sócio da Abraço. A ingenuidade acabou, de certa forma, por salvar-lhe a vida: quando foi internado, estava a surgir a terapia antirretroviral combinada, que mudaria o curso da doença. No Dia Mundial da Luta Contra a Sida, o presidente do GAT – Grupo de Ativistas em Tratamentos abre o livro de uma vida que mostra também o quanto a epidemia mudou. Mas a luta tem de continuar: para pôr fim à discriminação e eliminar a doença.
Que idade tem Luís?
Nasci a 31 de janeiro de 1958, tenho 58. Tenho no Facebook a idade, não escondo nada. A verdade é que muitas vezes digo que sou mais velho. Os anos com sida contam por dois, sinto-me como se tivesse 75 ou 80. Fui diagnosticado há 20 anos.
Quem era o Luís antes do VIH?
Estudei bioquímica em Lisboa, depois em Paris. Estive um ano em Itália a trabalhar numa vinha entre Florença e Siena, talvez a casa mais bonita onde vivi. Depois vim ajudar um primo a fazer uma discoteca, na altura uma coisa branchée.
Onde era a discoteca?
Chamava-se Belle Époque e foi das discotecas mais conhecidas na margem Sul. Durante 15 anos funcionou tão bem que acabei por me dedicar àquilo. Abríamos aos fins de semana, natal, Páscoa e nos meses de verão, o que nos permitia férias que nunca mais acabavam. Acabei por viver praticamente toda a década de 80 com seis meses de férias por ano.
Desistiu por completo pela bioquímica?
Sim. Quando acabei os estudos achei que não era suficientemente bom para fazer investigação e não queria dar aulas, foi aí que fui para Itália trabalhar. Fiquei a viver com uma família de quem gostava muito, uma mãe e três filhas. Namorava a filha mais velha e vim-me embora quando ela se apaixonou pelo meu patrão e a situação ficou tensa. Mas a vida dá muitas voltas e mais tarde acabei por casar com a irmã mais nova. De regresso a Portugal, e com o tempo livre da discoteca, que além disso me dava um vencimento maior do que tenho hoje, acabo por me envolver mais politicamente e em movimentos cívicos.
Quais eram as causas?
Cresci ainda no fascismo e fiz o liceu em Setúbal, uma zona muito politizada. Logo aí comecei a envolver-me nos movimentos cívicos antifascistas e depois no final dos anos 70 acabei por juntar-me ao Partido Radical, que tinha sede em Itália.
Fazia parte da luta armada?
Não, de todo. Apesar do nome, era um partido não violento, com uma filosofia gandhiana. Tínhamos posições fortes mas sempre pelo caminho da não violência. Era o momento alto das Brigadi Rossi e dos movimentos revolucionários armados, também em Portugal, e tínhamos grandes discussões com a extrema esquerda da altura. Organizávamos debates sobre o divórcio, o direito à interrupção voluntária da gravidez, o direito à objeção de consciência, pela luta contra fome. E, por fim, participei nos movimentos pelo fim da epidemia das drogas injetáveis. Era pelo radicalismo de esquerda, na aceção francesa do que é ser radical e não o entendimento que se tem hoje do extremismo de esquerda ou direita. Queríamos ir à raiz dos problemas.
Envolveu-se na luta antiprobicionista das drogas.
Criámos a primeira associação antiproibicionista quando começámos a ver que a opção de proibir o consumo não fez mais nada do que criar mercados clandestinos, máfias e encher as prisões de utilizadores. Tornou-se um problema sério num problema gigantesco. Foram os primeiros passos para a descriminalização.
Sentiu na pele o problema da droga?
Entre 1978 e 1979 tive um período em que usei heroína. Era uma coisa dos intelectuais chiques, antes da democratização que afetou tantas famílias, sobretudo nos bairros mais pobres.
Lembra-se da primeira vez que consumiu?
Foi em Londres, numa festa privada. Primeiro apareceu a cocaína, depois a heroína.
Sem noção do perigo?
Conhecia a história do ópio e sabia que causava dependência física. Sabia que a dependência física era facilmente ultrapassada mas a dependência psicológica não, que levava a muitas recaídas. Mas eu era, como muitos da minha geração, muito experimentalista. Não passei pela miséria de muitos: comecei a ter dificuldades económicas porque gastava o dinheiro que ganhava não fui à falência, não roubava, nem perdi a minha rede social.
Como parou?
Fiz uma coisa que hoje se usa pouco que é o método cold trukey, parar abruptamente. Meti-me num barco e andei dez dias em alto mar.
Sozinho?
Não, pedi a pescadores e fui com eles.
E eles aceitaram?
Aceitaram. Encararam aquilo com normalidade, um miúdo que queria ajuda.
Como foram esses dias em alto mar?
A ressaca da heroína dá dor e ansiedade. Eu não usava doses muito grandes, tinha uma certa noção de que doses maiores levavam à habituação mais rapidamente, e também não tinha utilizado tanto tempo que tivesse perdido a noção do resto da minha vida. Aguentei e nunca mais. Uma vez, mais tarde, estive para fazer um vídeo sobre como se injetava heroína de forma segura mas os médicos não me deixaram. Envolvi-me muito nessa luta. No final dos anos 80, quando começou a ser óbvio que a sida estava a atingir esta população, as consequências tornaram-se mais dramáticas. Nessa altura a sida era a maior causa de morte em Portugal nas pessoas entre os 18 e os 24 anos, a maioria utilizadores de droga .
Lembra-se da primeira vez que ouviu falar da sida?
Perfeitamente. Terá sido em 1981 ou 1982. Primeiro saiu a notícia de que havia uma espécie de cancro gay entre homossexuais. Lembro-me de uma conversa com colegas e professores em que questionávamos isso: como era possível uma doença aparecer numa comunidade e ser definida como um cancro quando as pessoas bioquimicamente são iguais às outras?
Qual era o argumento?
Havia uma tentativa de explicação de que resultaria do enfraquecimento do sistema imunitário pelo uso de poppers. Havia uma subcultura de homossexuais masculinos que usavam muito esta droga legal durante as relações. Inibe a dor e estimula a atividade física.
Ainda se usa?
Era muito usado, creio que terá caído em desuso. Depois começaram a chegar relatos de pessoas que tinham o vírus mas não usavam poppers, o que enfraquecia a teoria. Passou-se à discussão dos quatro “h”: os hemofílicos, os homossexuais, os haitianos – houve um explosão precoce da doença no país – e os heroinómanos. Dizia-se, embora não esteja historicamente provado, que Reagan tentou negar a situação: “encontrem uma cura mas não se apressem”. Como quem estava a morrer eram, tirando os hemofílicos que eram doentes, os homossexuais, os toxicodependentes e os negros, era como uma espécie de limpeza social.
Sentiu-se esse atraso de facto?
Podemos olhar para trás e ver que os primeiros casos aconteceram em 1981 mas só em 1984, quando começa a haver uma maior pressão das pessoas e algumas figuras conhecidas com amigos a morrer, é que há a ligação ao sangue, e o vírus é isolado.
Fica assustado?
O que me assustou mais foi termos trabalhado tanto para ter sociedades mais abertas, mais livres, e de repente aparecia uma coisa que estigmatizava quem era diferente. Comecei a ver que íamos entrar numa sociedade mais intolerante e entrámos. Mesmo em Portugal chegámos a ouvir discursos de que, exceto em relação aos hemofílicos, de que as pessoas tinham VIH porque faziam coisas que não deviam fazer. Era o castigo. Uso de drogas, ter vários parceiros, relações homossexuais. Era novo e a entrada numa era de abstinência assustava-me.
Era um homem de muitas namoradas?
E namorados.
Assumido?
Sim. Havia meios onde a bissexualidade e a homossexualidade não era um problema grande, fora disso havia muito estigma. Mas Portugal passou a ter a certa altura a visão de aceitar sem tornar visível: podes ser quem quiseres desde que não se saiba, para não embaraçar.
Os seus pais aceitaram?
Havia coisas que não se discutiam mas não se escondiam. Foi o que aconteceu comigo. Foi mais difícil para mim dizer aos meus pais que tinha sida, pelo sofrimento associado. Estava muitíssimo doente quando fui diagnosticado, disse-lhes que estava doente mas não disse com o quê. Só mais tarde quando quis torná-lo público e ter um papel na luta contra a doença é que falei com eles. Eu fui diagnosticado em 1996 e o GAT – Grupo de Ativistas em Tratamentos – surge em 2001.
Como foi o diagnóstico?
Em 1993 comecei a sentir-me estranho. Até aí tinha tido uma vida boa, com muita liberdade, mas aí começa tudo a correr mal, fisicamente, nos negócios. Andei três anos a sentir-me mal sem saber o que era.
Mesmo estando informado, envolvido em movimentos cívicos, não suspeitou?
Por estranho que pareça não. Tinha feito um teste em 1985 e não estava infetado e sempre achei que a minha vida, apesar de bastante livre, era segura. Claro que depois encontrei situações de risco, como qualquer pessoa que tenha uma vida sexualmente ativa encontrará. Mas nunca pus essa hipótese e fui várias vezes ao médico com sintomas estranhos e nunca o sistema de saúde me propôs o teste. E, na altura, já estávamos nos anos 90 e a epidemia era mais conhecida e falada.
Que sintomas tinha?
Cansaço extremo, herpes zóster – que normalmente só aparece na infância ou na terceira idade.
Emagreceu?
Sim, mas também comia menos. No princípio até perdi algum excesso de peso, por isso não me preocupei. Depois as coisas começaram a desmoronar-se. Lembro-me de falar com amigos e dizer que tinha a sensação de que podia fechar os olhos e morrer. Desligar e pum. Ia aos médicos e diziam-me que tinha uma depressão. Custava-me a aceitar: eu queria fazer coisas, mas não conseguia. Estava a dar aulas e o cansaço era de tal ordem que punha um despertador no quarto, outro no corredor e outro na casa de banho para me forçar a sair da cama. No inverno de 1996 cheguei a fechar o gás para tomar banho de água gelada e acordar. Lembro-me da primeira vez que entrei no carro e segurei nas pernas para fechar a porta, como fazem as pessoas com 80 anos. Tinha 30 e tal anos, sentia que estava perto do fim.
E estava?
Estava. No final do verão de 1986, uma amiga, enfermeira holandesa, veio passar 15 dias à minha casa em Sesimbra. Nos anos anteriores íamos sempre sair à noite mas passei o tempo a inventar desculpas. Ela ia embora num sábado e por fim disse-lhe que saíamos na sexta. Chega o dia, estávamos a jantar e pensei: se me conseguir levantar da cadeira e ir para o sofá, já será muito. Decidi contar-lhe o que se estava a passar e ela obrigou-me a chamar a médica que me seguia habitualmente em Sesimbra e esta mandou-me para o hospital. Fui para Santa Maria e já não saí.
Descobriram logo?
Começaram a fazer exames e só ao fim de seis ou sete dias é que me disseram. Acho que estavam convencidos de que eu sabia e tinha decidido não tomar medicação. Tendo o percurso que tinha, até era sócio da Abraço, devem ter pensado que era impossível que não soubesse. Mas só me faziam perguntas do género “esteve em África?” Passada essa semana, o médico apareceu e começou a dizer que a situação era muito séria e “até podia ser sida”. Fez-se luz. Disse: “claro que é sida, é óbvio”. Tinha tido situações de risco e os sintomas encaixavam. E eles sabiam. Naquela altura dar um diagnóstico de sida era dizer que a pessoa ia morrer muito em breve. Nenhum médico dizia a um doente pode ser sida sem saber. Era o mesmo que dizer a um doente ‘olhe, pode ser cancro’.
Como reagiu?
Só pensei “vou morrer a tratar de papéis de finanças, de bancos”. Precisava de tempo para tentar que as coisas não ficassem mais complicadas para quem ficava cá.
Mas aceitou a morte?
Sim, não tinha dúvidas. Sabia que ao contrair VIH, uns progrediam rapidamente para sida – nuns casos levava oito a dez anos e noutros mais tempo. Mas a partir do momento que se tinha sida o tempo normal de sobrevivência eram dois ou três anos no máximo e eu já teria sida há muito tempo.
Uma pessoa numa situação destas tenta pensar como apanhou o vírus?
Durante muito tempo disse que não fazia ideia. Em última análise, podia ter sido pelo uso de drogas, mas tinha feito um teste depois de deixar de consumir. Mas podia ter sido de todas as maneiras: hetero, homo, drogas. Só sabia que não tinha sido transmissão vertical porque não tinha passado de mãe para filho. Mais tarde lembrei-me que dez anos antes, em 1986, estive numa altura muito mal. Terá sido a primo-infeção, a infeção aguda que surge antes da fase sem sintomas. E com base nisso hoje creio que saber exatamente quando foi.
Como se guarda uma memória dessas? Fica-se com raiva de não ter tido mais cuidado?
Não. A minha filosofia de vida foi sempre que o que está feito não pode ser mudado. Viver agarrado a momentos onde não se tomou a melhor decisão é inútil, só causa sofrimento. Não se deve fazer de conta que não existiu: aprende-se e segue-se. Fiz o mesmo perante o diagnóstico. Nunca pensei “o mundo caiu-me em cima”. Pensei que não ia fazer 40 anos, mas tinha tido uma vida de que não me arrependia nada e que queria viver o último ano a que tinha direito da melhor maneira.
E passaram 20 anos.
Fez 20 anos em setembro, fui diagnosticado a 7 de setembro.
Como é que se safou?
Fui diagnosticado em Santa Maria com uma contagem de dois CD4. A contagem destas células do nosso sistema imunitário mede a progressão da doença. O normal são 1500, quando se chega às 500 por mililitro de sangue é um sinal de alerta. Às 350 é um sinal laranja, às 200 é um sinal vermelho. Ter menos de 200 é indicador de sida. Há efeitos que só surgem quando se tem menos de 200, outros menos de 100 e outros 50. Quando fui diagnosticado tinha 2. Quando se vê esse número na tabela já se está no sítio dos mortos.
Os médicos nunca tinham visto nada assim?
Têm aparecido pessoas com o mesmo estado imunitário. Poucas na minha altura sobreviveram. Fiz um tratamento muito complexo, estava a perder a visão, uma das coisas que só acontece quando o estado imunitário está nessa fase tão debilitada. Depois, quando ia iniciar o tratamento do VIH, uma amiga médica foi visitar-me a Santa Maria e disse-me que, se estivesse no meu lugar, gostava de ser tratada pelo Kamal Mansinho, na altura era o médico de referência. Tive alta de Santa Maria e fui para o Egas Moniz, onde o Kamal Mansinho me pôs a fazer o tratamento tríplice, o novo esquema de antirretrovirais com três moléculas que na altura estava a começar. O Egas Moniz foi o primeiro hospital do país a ter o tratamento. Em Santa Maria faziam o tratamento duplo e não tenho dúvidas que teria morrido se lá tivesse continuado. O controlo de infeção foi imediato. Claro com muitos efeitos secundários, o corpo a mudar do dia para a noite, o colesterol no céu.
Teve logo a perceção de estar safo?
Não, nem nunca mo disseram. Para mim ia morrer antes do final de 1997. Até porque a minha reação foi: quero fazer o que estiver disponível, não quero pensar nos tratamentos que podem chegar nem viver na expectativa. Aceitei a morte, não tive momentos de depressão. Passados dois meses ou três os resultados das análises eram surpreendentes mas quando o Kamal Mansinho me perguntava as expectativas eu dizia que precisava do inverno para resolver os problemas. Se tivesse uma primavera tranquila era bom, se por um milagre tivesse o verão, a minha estação preferida, ouro sobre azul.
E quando passou um ano?
Quando chegou ao final do verão é que eu disse ao Kamal Mansinho: não sei o que fazer, não tenho trabalho, não tenho dinheiro, disse adeus às pessoas e agora já me sinto meio envergonhado. Disse que morria no máximo num ano e ainda atendo o telefone. E foi aí que ele me disse: vocês são a primeira leva de doentes que nunca tinham sido tratados, chegaram em estados muito avançados e foram tratados com três medicamentos. Os resultados são muito bons, mas estamos a aprender convosco, não sabemos dizer o que vai acontecer. “Feche o calendário da morte, a vida passou a ser imprevisível”.
Acabou por ser uma sorte não ter sido diagnosticado um ano antes.
Sim, embora tenha sido no limite. Dois ou três meses antes teria menos sequelas.
Continuou a viver o presente ou assumiu que era um doente crónico?
Imaginamos que vamos morrer rápido, mas não sabemos quando. Não é seis meses, não é um ano, mas não sabemos quantos.
E agora?
Agora parece que fui condenado à vida eterna [risos]. Estive internado em 1996, depois em 97, 98, 99 e 2001. Em 2003 estive de novo a morrer. Em 2005 vinha dos EUA tive uma embolia pulmonar quase a aterrar em Londres e estive nos cuidados intensivos 25 dias, entre cá e lá. A última numa situação tão crítica foi em 2007, se não acontecer nada vai fazer dez anos.
São duas vidas, antes e depois do VIH?
São mas não são completamente separadas. A doença e o diagnóstico abriu oportunidades de fazer coisas que de outro modo não teria feito e muitos destes anos, com muitos problemas, foram dos mais felizes da minha vida. E sobretudo permitiu-me o contacto com instituições, pessoas, personalidades, e em alguns momentos sinto que pude fazer a diferença.
A doença deu-lhe mais do que tirou?
A doença tira muito, tira força, resistência. Para mim foi dessexualizante. A sexualidade era o contrário da doença, era liberdade. Essa porta fechou-se. Depois reabriu de outra forma, casei mas passei para uma vida muito diferente da anterior, para uma relação monogâmica, que durou oito anos.
Foi a primeira relação mais estável com uma mulher?
Não. Eu era um verdadeiro bissexual, tive relações com homens e mulheres.
E amou mais mulheres ou homens?
Amei sempre mais as mulheres. As relações com os homens, exceto um, foram sempre mais de atração, mais imediatas. A nossa imagem muda, o que é difícil. Olhando para mim vê a história de 20 anos de sida. Não me consigo imaginar, a não ser numa relação monogâmica que tem muito além de sexo, numa relação de desejo sexual correspondido. Claro que há um lado positivo. Há muitas coisas que parecem muito importantes na vida e que, num momento em que se pode morrer, passam a ter exatamente a importância que têm. O desprendimento da posição social, aparência, posse ou poder pode ser muito libertador. Aprendemos a viver com limitações. Mas tenho uma barriga enorme, a cara magra, os braços inchados, as minhas mamas aumentaram de tamanho.
Vai à praia?
Vou mas sempre vestido. E não é porque não me sinta bem despedido com algumas pessoas. Mas vão olhar e isso é desconfortável para elas. Também sei que quando vemos alguém com uma diferença muito óbvia não queremos olhar mas olhamos. Sempre quis que olhassem para mim e vissem o Luís, que não vissem primeiro a doença.
Ao longo destes 20 anos, o que custou mais? O estigma? Perder amigos?
Talvez o mais difícil para mim, que acabei por me envolver no ativismo, tem sido a dificuldade em implementar as melhores soluções para diminuir a transmissão, melhorar a prevenção, diagnosticar mais cedo, o que tem vantagens enormes: hoje alguém que seja diagnosticado cedo, com os tratamentos que existem, consegue ter uma esperança e qualidade de vida igual a qualquer outra pessoa.
E o estigma?
Percebo perfeitamente que alguém pela sua cultura, pela forma como foi educado ou simplesmente porque há pessoas melhores e outras piores, não goste de pessoas com sida. O que não posso admitir é que, na sociedade, isso seja posto em prática. Há uma grande diferença. Não me importo que a senhora do guiché pense o que quiser de mim, mas a mim e aos outros tem de tratar como cidadãos. Não acredito na reforma das mentalidades, acredito na reforma do sistema.
Continua a haver muita discriminação?
Demasiada, em tudo. Mas no sistema de saúde ainda é mais inacreditável. Há pouco tempo acompanhámos uma mulher que foi a um centro de saúde e recusaram tirar-lhe o dispositivo anticoncecional porque era seropositiva e não tinham condições. Se não têm condições para tirar um dispositivo a uma seropositiva, uma coisa de rotina, não têm condições para tirar nada a ninguém. Naquele caso sabiam que era seropositiva, se não soubessem como era? Mas há coisas tão ou mais graves. Em muitos hospitais portugueses, sem explicação plausível, deixam-se os doentes de VIH para o fim do dia de operações. Se é preciso fazer uma limpeza especial depois de passar uma pessoa seropositiva, é preciso fazer para todos. São regras de higiene básicas.
Não teve problemas com a família?
Não. Nem com os amigos: contei a toda a gente e só tive uma amiga, médica, que reagiu mal. Mesmo pessoas que viviam aterrorizados com a doença aceitaram.
Mas abraçavam-no da mesma maneira?
No princípio devo dizer que era eu que tinha medo, houve esse pânico. Dois dias depois de sair do hospital estava a cozinhar e a dada altura cortei-me. Atirei tudo e fomos jantar fora. E durante um ano não fui capaz de pegar numa criança pequena ao colo. Depois consegui resolver esse receio, infundado. As formas de transmissão são bem conhecidas, é quase matemática. Temos o caso de 12 mil crianças que foram infetadas com o vírus da sida na Roménia, provavelmente num incidente com vacinas contaminadas. Estas crianças têm agora entre 24 e 28 anos, ainda estão vivas quase 6 mil. Quando foram diagnosticadas começaram a ser seguidas, isto ainda nos anos 80, e tem permitido perceber como é difícil a infeção. Estas crianças tiveram uma infância normal: partiram cabeças, passaram pelas dentadas na escola e toda a espécie de acidentes. Em dezenas de anos de observação, não há nenhum caso reportado de transmissão que não seja por via dos fluidos sexuais ou sangue, mas não basta tocar no sangue. Se uma pessoa com VIH se corta e o sangue cai na pele de outra pessoa, não há transmissão. É só por via de injeção ou transfusão de sangue contaminado. O vírus morre muito depressa exposto ao ar. É como na saliva: estão lá pedaços de vírus, mas estão mortos.
Tem medo que o tempo esteja a acabar?
É estranho. Com todo o envolvimento que tenho no GAT e noutras organizações, já muitas vezes pensei que não faz sentido continuar a assumir responsabilidades. Mas depois uma pessoa tem projetos, tem planos. E se eu morro? Era uma pena. Se calhar sim, estou menos preparado para morrer hoje. Ninguém esteve tão preparado para morrer como eu estive, tão pacificado com a ideia e até achar que seria um alívio perante o sofrimento. Cheguei a tomar medicamentos 10 vezes por dia, com grandes sequelas. Estou menos preparado mas não tenho mesmo medo da morte. As nossas sociedades têm tornado a sobrevivência, o estar vivo, um objetivo maior do que a qualidade de vida e da dignidade humana, o que questiono fortemente. Já disse ao meu médico: se ficar incapaz, se a minha cabeça não funcionar, não quero continuar a ser tratado. Talvez não vá ao ponto de dizer deem-me uma injeção para acabar comigo, mas quero que parem de me tratar e deixem as coisas acontecer normalmente. Esse encarniçamento para manter as pessoas a todo o custo não me parece bem.
Tem vivido isso de perto?
De mais. Na minha família, tem havido um envelhecimento com grande sofrimento e prolongado. Não percebo porque é que o meu avô materno teve uma série de intervenções dolorosas aos 81 anos. Viveu até aos 84 anos e não vejo que ganho foi para ele ou para a família. O meu pai foi diagnosticado com um cancro num estado muito avançado em 2003, eu estava também muito doente. Quando pusemos a hipótese de ele não ser operado e não fazer os tratamentos, senti-me completamente assediado e coagido pelos médicos. Como é que eu pensava em diminuir as hipóteses do meu pai… o que fazemos para ganhar meses de vida, muitas vezes sem dignidade e respeito pela vontade das pessoas, irrita-me. Os custos do último ano de vida em Portugal são assustadores, todos os recursos envolvidos, será que não poderiam ser aplicados de outra forma? Não tenho nenhuma solução além de as pessoas poderem decidir, como já podem, que não querem ser ressuscitadas.
Sobreviver à sua mãe é importante?
É o normal, os pais vão primeiro que os filhos. E hoje esta normalidade nas pessoas com sida já é possível, o que era impensável há 20 anos.
Assinala-se o Dia Mundial da Luta Contra a Sida. Como estamos?
Houve avanços extraordinários nos tratamentos, os novos casos parecem estar a diminuir. Mas vejo com grande preocupação o que está a acontecer em Portugal: temo que estejamos a perder oportunidades para diagnosticar mais cedo, para prevenir mais. E há sinais preocupantes.
Por exemplo?
A saída do professor Kamal Mansinho da direção do Programa Prioritário do VIH/Sida. É provavelmente o médico mais respeitado na área e tem um caráter excecional.
Invocou razões pessoais para sair.
Sim, falei com ele e explicou os motivos. São respeitáveis. O que digo é que se ele tivesse encontrado as condições de trabalho que lhe permitissem encarar com otimismo o papel que tinha, talvez estes motivos pessoais fortes fossem conciliáveis. O que me parece é que em 2016 não conseguimos garantir as condições de trabalho a um dos nossos maiores especialistas.
O GAT tem alertado para falhas no stock de material distribuído pela DGS para prevenção do VIH. Isso mantém-se?
Estamos a voltar aos níveis normais mas não estamos a 100%, o que é inaceitável. Uma infeção por VIH custa ao sistema meio milhão de euros ao longo de uma vida. Se um preservativo que custa dez cêntimos puder evitar uma infeção, não desbloquear essas verbas é disparatado. Estamos convencidos de que é preciso e é possível fazer mais.
Como?
Portugal gasta 250 milhões de euros por ano em medicamentos para o VIH/sida. Não há razão para pagar a medicação a estes preços. As empresas devem ter em conta a situação financeira do país e definir preços justos. Não se pode perder a oportunidade de já em 2017 renegociar, reduzir em 50 milhões a despesa e alocar essa verba para uma prevenção maior, mais diagnóstico, tratamentos de qualidade, que não são iguais em todos os hospitais.
Vamos cumprir a meta da ONU de eliminar a epidemia da sida até 2030, diagnosticando 90% dos casos, tendo 90% das pessoas em tratamento e, destas, 90% com cargas virais indetetáveis?
Não. Mas penso que era importante falharmos da melhor maneira possível, aproximando-nos o máximo possível dessas metas.
Não vamos nós, Portugal, ou ninguém?
Vamos falhar nós e outros, mas alguns países talvez consigam. Em Portugal, com a sociedade civil que temos e com o conhecimento que temos, não é aceitável que não resolvamos estes problemas melhor. Continua a haver políticas de quintal e de interesses que se sobrepõem à boa política. Sinto-me feliz pelo muito que foi feito, mas também frustrado.
Não tem medo da morte, mas o que o prende à vida?
Esta ideia de que faço parte da humanidade e que podemos dar alguma coisa. Claro que a vida faz sentido se tirarmos dela o prazer, a beleza, mas faz muito mais se contribuirmos naquilo que acreditamos que vale a pena mudar.
Era assim que gostava de ser lembrado?
Sim: “Luís Mendão que mesmo em circunstâncias muito difíceis procurou sempre fazer o melhor”.
O que está por realizar?
O fim de novos casos de sida e ver o fim da descriminação.
E a cura?
É a coisa que menos me importa. Pode parecer egoísta e é um objetivo importante: acho até que vamos ter a cura antes de ter vacina, mas hoje o que temos já permite uma vida com grande qualidade. Mas não conseguia agora imaginar uma vida sem VIH, se calhar é por isso.