Há uma denúncia constante do drama, sobretudo se não respeita as devidas distâncias, e ao mundo devolve, nu, o reflexo da careta bestial que fez há pouco, ou lhe sublinha os desaforos, proferidos ou escritos, deixando entrever a sombra das suas intenções. Talvez tenhamos sempre relutância em aceitar que o presente possa reclamar, a partir de contornos patéticos, uma condição histórica.
Mas, em qualquer época, contra os pessimistas, há que tomar precauções. Foi assim que, em janeiro de 1933, quando Adolf Hitler chegou ao poder, as obras teatrais de Ödön von Horváth foram proibidas, o seu nome apareceu no índex e, considerado um “autor degenerado”, não demoraria muito para que os seus livros estivessem entre as pilhas queimadas nas ruas. Mudou-se para Viena, naquela que seria a primeira escala numa interminável emigração, passando por Praga, Zurique, Amesterdão e Paris.
Aquele que foi um dos muitos e um dos maiores “daquela nebulosa de génios que alumiou com sete candelabros de ouro o chamado ‘apocalipse jubiloso’, o de Viena, entre os finais do século XIX e os inícios do século XX”, como escreveu João Bénard da Costa, era 100% ariano, e por isso o seu exílio foi o de um crítico que, como outros intelectuais, supôs inicialmente que o nazismo seria travado a tempo. Morreu com apenas 36 anos, na primavera de 1938, o ano do “Anschluss”. A 1 de junho, foi ver a “Branca de Neve e os Sete Anões”, em estreia europeia numa sala dos Campos Elísios. Durante a projecção, uma trovoada foi torcendo os céus, e à saída, quando atravessava a avenida, um grande relâmpago fendeu ao meio um castanheiro e um dos ramos apanhou-o na parte posterior do crânio, dando-lhe uma morte das mais estúpidas.
Horváth estava a contar os dias para se mudar para os EUA, onde tinha um tio a viver, e na esperança de vir a escrever guiões para Hollywood, indústria que naqueles anos soube acolher os talentos de tantos outros renegados da Alemanha nazi. Tinha-se reunido com o realizador Robert Siodmak, que planeava adaptar ao cinema o seu romance “Juventude sem Deus”, um retrato terrífico da juventude hitleriana.
Antes de viajar para França, conta o jornalista Eduardo Berti no “La Nacion” que, na passagem por Amesterdão, uma espécie de pitonisa lhe tinha dito que a estada em Paris haveria de se lhe revelar decisiva. Sendo supersticioso, Horváth terá sonhado que uma árvore de uma altura imensa se abateria sobre ele no meio de um bosque. Meses antes, enquanto escrevia “Juventude sem Deus”, deu a uma das personagens uma morte parecida à sua, na sequência de uma pancada no crânio.
Outro pormenor do dia da sua morte, ofereceu-nos Tiago Bartolomeu Costa a propósito de “Em direcção aos céus”, peça deste autor que a Companhia de Teatro de Almada estreou no nosso país em 2013. No bolso, o cadáver estendido nos Campos Elísios, tinha um bilhete onde podia ler-se a esperança de uns últimos versos: “E as pessoas vão dizer/ Que, num longínquo amanhecer,/ Saberemos distinguir/ A mentira e a verdade.// Que a mentira desaparecerá/ Quando estiver no poder,/ Que a verdade surgirá/ Quando parecia morrer.”
Amanhã, a CTA estreia em Portugal outra peça deste autor que, aos 24 anos e depois de ter estudado em Munique, se instalou em Berlim, cidade onde escreveu e viu serem levadas à cena as suas primeiras peças de teatro. Além de algumas peças radiofónicas, e de textos dispersos por várias revistas, num período de década e meia escreveu 18 peças de teatro, tornando-se um dos grandes cronistas do fracasso da classe média alemã em reconhecer o perigo da ascensão do nazismo.
Pensa-se que, ao ver as suas peças proibidas, Horváth assumiu a partir dali os seus textos como um fim em si mesmos, e daí ter escrito os romances “Juventude sem Deus” e “Um filho do nosso tempo”. Fê-lo de forma arrebatada, em apenas sete ou oito meses, livros urgentes e angustiados, nos quais ressalta, segundo Berti, um “laconismo implacável, anunciando um mundo, então iminente, no qual a expressão dos homens ‘se tornará tão rígida como o rosto de um peixe’”. Um dos personagens alerta que a guerra que se avizinha será “mais intensa, mais violenta, mais brutal” que todas as anteriores. Horváth pressentiu, assim, que o homem estava prestes a atravessar uma tenebrosa fronteira que iria colocar em crise a própria noção de humanidade.
Na sala principal do Teatro Municipal Joaquim Benite, Rodrigo Francisco volta a assinar a encenação, num espectáculo que em vários momentos cruza o plano temporal, e a partir da realidade dos anos 30 numa pequena cidade no Sul da Alemanha, desdobra a consciência através de ecos que soam como gritos dos dias de hoje, tendo esta peça sido escolhida para recolocar ao presente o mesmo desafio que colocou no passado: que resposta devem as democracias europeias dar perante a emergência dos movimentos de extrema direita, alguns dos quais assumidamente neo-nazis.
O encenador explicou ao i que, se “as primeiras obras de Horváth são marcadamente marxistas, a partir de certa altura ele começa a procurar retratar a Humanidade tal como ela, infelizmente, é”. (Propositada ou inadvertidamente, Rodrigo Francisco cita com uma curiosa adaptação o dramaturgo, que disse certa vez que o seu “ único desejo é descrever o mundo tal como ele, infelizmente, é”.) “Ele [Horváth] dá uma no cravo e outra na ferradura”, adianta Francisco. “Faz a denúncia do perigo que representam os nazis, mas também uma grande crítica aos socialistas da República de Weimar, que não souberam defender a democracia, e, sobretudo, à extrema esquerda que muitas vezes, e isto é um dado histórico, se aliou aos fascistas. Horvath tem essa amplitude crítica, e a coragem de denunciar o mal dos dois lados da barricada. A sua obra é absolutamente coerente nesse aspecto, pois nunca deixa de apontar o que está mal na própria esquerda, fazendo a auto-crítica que me parece que cabe às pessoas de esquerda fazerem.”
A acção desenrola-se na cidade de Murnau, na Baviera, em torno da taberna do senhor Josef Lehninger, que aluga a sua chafarica, à tarde, aos fascistas para que celebrem o Dia Alemão, e, à noite, aos republicanos, para os festejos da Noite Italiana. Se há uma série de piscadelas de olho do quotidiano dos anos 30 ao dos dias de hoje, essa é uma opção notória, de tal modo que há uma série de elementos nesta peça que buscam uma vertigem contemporânea. Há detalhes no vestuário, provocações discretas e outras bruscas, atordoantes, como a escolha de ter os fascistas em trajes académicos.
Esta é uma encenação que corre alguns riscos, desde logo pela crueza e até grosseria como o palco e os personagens, sem buscar um efeito de naturalismo, estão na rua. Há um constante efeito de descendimento, como se em vez de um espectáculo nos fosse dado a ver que algo mais próximo da arruaça, uma sucessão de actos meio desfocados, onde o que mais se sente é a barulheira e o tumulto. Da boca das personagens, mais do que falas, saem urros, e não há nem nos gestos o menor verniz. É a reprodução na escala tacanha de uma cidadezinha daqueles abalos que alhures se adivinham, só que menos do lado da comédia e mais do lado da tragédia.
Tudo sucede de forma um tanto espalhafatosa; os actores encarnam personagens a que só pontualmente emprestam mais substância que o grau caricatural, servindo-os como os limitados tipos que se repetem de forma universal ocupando os lugares de peões num dado momento social. Ressalta assim uma espécie de aturdimento, nesta visão dos acontecimentos e dos seus protagonistas em que parece triunfar uma certa intercambialidade dos papéis. Indo às últimas consequências, abre-se uma perspectiva desoladora que torna evidente como Horváth se mantém equidistante tanto face aos revolucionários como aos burgueses, aos burocratas ou aos próprios fascistas. Uns limitam-se a oferecer uma odiosa contracena face aos restantes, e assim o carrasco pode esconder-se na pele de qualquer um. Aqueles que são os heróis de ontem, facilmente podem revelar-se os vilões de hoje ou amanhã. E é aqui que a palavra vilão se permite abarcar ao mesmo tempo dois sentidos, o de alguém abjecto e vil, e o do habitante de uma pequena localidade, a quem cabe desempenhar um papel-tipo, despojado da sua interioridade, e, com o extremar das circunstâncias, acabando, fatalmente, por ver-se a ajudar um plano grotesco, tão patético quanto criminoso, tão digno de ser ridicularizado quanto temido.
O poeta colombiano Juan Manuel Roca tem uns versos que poderia ter trocado com Horváth, pelo muito que dizem respeito à qualidade terrível da sua representação da humanidade. Surgem no poema “Canção do que fabrica espelhos”, e vão nisto: “Fabrico espelhos:/ Ao horror acrescento mais horror,/ Mais beleza à beleza. (…) Quando o espelho entrar noutra casa/ Apagará os rostos conhecidos,/ Porque os espelhos não contam o seu passado,/ Não denunciam antigos moradores./ Alguns constroem prisões,/ Grades para jaulas./ Eu fabrico espelhos:/ Ao horror acrescento mais horror,/ Mais beleza à beleza.”