Ave raríssima lhe chamaram, difícil de classificar, difícil até de descrever.
Numa curiosidade insaciável, às vitrinas do primeiro salão de cabeleireiro unissexo do País, de Isabel Queirós do Vale, onde exerceu com enorme sucesso a sua profissão de barbeiro (sempre recusou o título de cabeleireiro), afluiu um rio de gente para ver e fotografar a sua figura exótica.
Com a tesoura celebrou um pacto: «a tesoura ganha para a música». E o som da tesoura fez-se ouvir na sua própria barbearia. Era ainda antes da aura de prestígio que haveria de envolvê-lo no início dos anos ‘80 e do tempo do ícone que rapidamente viria a ser o António Variações, um nome que o próprio fez questão de aclarar: «Variações é uma palavra que sugere elasticidade, liberdade. E é exactamente isso que eu sou e que faço no campo da música. Aquilo que canto é heterogéneo».
Cantor e compositor inimitável, renovou a música ligeira portuguesa e marcou indelevelmente a história das mentalidades do Portugal contemporâneo: voz surpreendente, de larga amplitude, impregnada de fado, conjugando originalmente o folclore com sonoridades cosmopolitas – o rock, o pop, o blues; música difícil de catalogar, tanto assim que o próprio a descreveu como algo situado «entre a Sé de Braga e Nova Iorque»; letras poderosas contendo o registo da observação quotidiana e a sua vida de solidão imensa; energia avassaladora a ondear num corpo que exibe o seu lado de performer extraordinário; imagem singularíssima, com uma popularidade visual que fez dele um artista antes mesmo de o ser, decorriam então em Portugal os anos ‘70, adoecidos de tristeza.
Nasceu no lugar do Pilar (Amares, Braga), «demasiado cedo» – observou com a lucidez de quem se sabe para além do seu tempo. É, aliás, através do que muitos classificaram de «heresia» que emerge no mercado discográfico, em Junho de 1982, depois de algumas aparições extraordinárias na Rádio (Meia de Rock, da Renascença) e na Televisão (O Passeio dos Alegres, de Júlio Isidro) e de quatro longos anos sobre o contrato assinado com a editora Valentim de Carvalho. «Povo que Lavas no Rio» era essa ‘heresia’, uma versão do tema da sua musa Amália, integrando o lado B do maxi single Estou Além. Seguir-se-á o LP Anjo da Guarda (1984), incluindo os êxitos «O Corpo é Que Paga» e «É P’ra Amanhã», a silenciar as vozes mais detractoras.
Quando «Canção de Engate» (Dar e Receber, 1984) invade as rádios portuguesas, já a morte o cercava numa cama de hospital, que nele o triunfo coincide com o fim. Em vida foi-lhe atribuído um único prémio: um dos mais mal vestidos de Portugal. Recebeu o galardão, em Novembro de 1983, não sem contestar a capacidade do júri para avaliar estilos de bem-vestir: «o estilo sou eu!».
Sonhou, desde a primeira infância, repartida entre os estudos e o trabalho no campo a que se furtava, com a música e o mundo do espectáculo. Num desfile de modelos excêntricos e adereços bizarros, ao olhar de uma Lisboa que então sofria acentuadamente da doença da homogeneidade, fez da rua o palco que, ao fim de vários anos de tentativas e muitas decepções, se multiplicou por fim em espectáculos ao vivo.
Inconformado com a imobilidade do berço minhoto, à capital chegou, menino feito adulto, em 1957, iniciava a Radiotelevisão Portuguesa as suas emissões regulares. E há-de sustentar-se de trabalhos tão variados quanto ocasionais: aprendiz de escritório, barbeiro, balconista, caixeiro. Depois do serviço militar, em Angola, ruma a Londres para uma estadia breve, a que se segue Amesterdão, cidade onde todas as diferenças se conjugam. Aqui, adquire um significativo pecúlio de vivências e um curso de cabeleireiro.
Foi um ser em mudança, uma existência em trânsito, cantada numa busca sempre insatisfeita de que Manuela Gonzaga, a sua mais dedicada biógrafa, deu desenvolvida conta. O melhor de António Variações será a marca incomensurável da diferença.