Ricardo Araújo Pereira: ‘Donald Trump é imune ao discurso humorístico’ [vídeo]

O humorista pega numa declaração de um político e leva-a ao exagero, com gente como o presidente dos EUA isso é difícil.

Quando Deus expulsou Adão e Eva do Paraíso tornou-os mortais. O fruto da árvore do conhecimento tinha-lhes dado a inteligência e o sexo. Com Ricardo Araújo Pereira ficamos a saber que levamos também o sentido do humor em troca da morte. O humor é uma pequena anestesia que nos permite viver sabendo que vamos morrer um dia. Este é o ponto de chegada do livro “A Doença, o Sofrimento e a Morte Entram num Bar”. Comecemos então pelo início.

O que lhe deu para escrever este livro?

A primeira razão é que a Bárbara [Bárbara Bulhosa a editora da Tinta da China] quando me falou a primeira vez, o plano era eu escrever alguma coisa sobre eu a pensar sobre o meu ofício. A segunda coisa, é que quando se tem esta profissão, não se tem onde ir aprender. É uma coisa quase singular na criação artística em geral: um realizador de cinema estuda na escola de cinema; um compositor estuda no Conservatório; um ator estuda no Actors Studio, ó como é que se chama aquilo; um gajo que quer escrever, sobretudo escrita humorística, tem que fazer a sua própria escola. A terceira coisa, é que o professor Abel Barros Baptista me convidou, há uns anos, para dar umas aulas, na FCSH, sobre escrita humorística, numa pós-graduação que se chama Artes da Escrita. E isso também me obrigou a procurar uma certa sistematização. Este livro não habilita ninguém a escrever um texto humorístico, mas sinto que quando estava a começar talvez fosse interessante que alguém me tivesse dito duas ou três coisas que estão no livro.

O sentido de humor nasce connosco ou é possível aprendê-lo?

Ó Nuno, a gente nasce com quê? Se olhar para um bebé ele tem jeito para quê? Ele tem jeito para comer e dormir, e, vá lá, para respirar. De resto, a gente não nasce com jeito para nada. As pessoas podem ser capazes de fazer, dentro de certos limites, aquilo que lhes apetecer, se se dedicarem a isso. Também é verdade que há qualquer coisa na maneira que a gente consegue integrar a experiência, e isso não consigo explicar. Há pessoas que conseguem integrar a experiência e a forma de ver humorística mais rapidamente que outras.

O humor não é uma espécie de Gestalt, em que umas pessoas veem numa imagem uma taça e outras veem dois perfis juntos?

Acho que é uma maneira de ver, mas essa maneira de ver é voluntária e consciente. Um dos pontos de partida do livro é quase uma paráfrase do Kant, em que ele diz exatamente isso – acho que ele ficaria muito satisfeito por eu concordar com ele – , ele defende que o sentido do humor é um momento, consciente e voluntário, de ver e pensar as coisas de uma maneira que não é convencional.

Para este olhar, diferente da maioria, dar vontade de rir tem de cair num estereótipo apreendido por todos.

A questão é que a referência tem de ser partilhada, no sentido que se eu fizer uma piada muito engraçada sobre o Cavaco no Brasil ninguém ri. Às vezes sou convidado a ir a universidades e uma vez fiz uma piada muito gira sobre a Amoxicilina [penicilina semissintética usada no tratamento de infeções bacterianas] numa plateia de estudantes de medicina e eles riram. Tenho a certeza que se estivesse a falar num congresso de informáticos aquilo não teria nenhum efeito.

A parte do Brasil é uma boa questão, quando vai ao Brasil atua como faz cá ou para ter efeito tem que exagerar o estereótipo de português que os brasileiros têm?

Não é igual ao que faço cá, mas tem várias amarras. Uma é a língua: confesso que me sinto mais confortável a atuar para uma plateia de língua inglesa do que para o público brasileiro. Quando atuo no Brasil, antes de me apresentar no palco, tenho de rever o meu texto palavra-a-palavra: não poder ser “nódoa”, tem de ser “mancha”; não pode ser “percebo”, é melhor “entendo”. Memorizo e consigo fazer-me entender. Mas se acontece alguma coisa e me quero meter com alguém, isso pode falhar, porque posso usar uma palavra de uso incorreto lá. Tenho também de falar muito devagar. O que eu faço no Brasil são coisas que qualquer ser humano entenda.

Não pode ser política… embora eu tenha visto a noite de votação do congresso brasileiro pelo impeachment e tenha achado que havia uma certa concorrência desleal com os humoristas. É muito difícil fazer tipos estranhos, para criar humor, depois de ver aquelas pessoas ditas reais?

Isso parece uma tendência geral. É possível dizer o mesmo do vencedor das eleições nos EUA. Trump é imune ao discurso humorístico, porque ele já tem um discurso que é uma espécie de avesso das coisas. Já chega à mesa de trabalho do humorista virado do avesso, o que torna essa operação de o transformar mais complicada.

Aquele cabelo à Gilberto Madail torna mais difícil um humorista torná-lo risível?

Não é só o aspeto mas é o que ele diz. Normalmente a gente pega numa declaração de um político qualquer e exagera-a para a tornar mais absurda. Quando ela já é absurda, quando chega às nossas mãos, torna-se mais difícil fazer essa operação. Há características do Donald Trump que o tornam sui generis. Essa ideia de ele ser imune à sátira política é capaz de ser uma coisa engraçada para estudar.

Houve um humorista que até se declarou vítima disso. John Oliver, quando se ouviram os primeiros rumores que havia candidatura de Trump, disse que pagava para haver essa candidatura tão ridícula que ela era.

Por acaso é muito interessante todo o percurso que o John Oliver foi fazendo acerca Donald Trump: o primeiro passo foi esse: “candidata-te, pá. Candidata-te que vai ser um pagode”. A seguir ele candidata-se mesmo e o John Oliver faz uma coisa que é: “não vou falar dele. Não vou falar dele porque acho que não se deve dar atenção a isso. É lixo”. E a certa altura, com a evolução do fenómeno, ele disse: “ok, vou falar disto”. E fez uma coisa que ficou célebre e teve milhões de visualizações no YouTube, além da que tinha tido na televisão, que foi criar uma espécie de movimento a partir de um facto: ele descobriu que Donald Trump é familiar de imigrantes alemães cujo o nome original é Drumpf. Que é um nome com muito menos prestígio que Trump. As Trump Towers e tudo o que rodeia o nome dão-lhe um certo panache, mas Drumpf é uma coisa até patética. Então ele lançou um movimento para toda a gente lhe chamar Drumpf, criou uma aplicação que muda automaticamente todas as referências no nosso computador de “Trump” para “Drumpf”, sempre que consultássemos o Google, isso mudava automaticamente as referências a “Trump” para “Drumpf”. Criou uma linha de bonés com o slogan: “Let’s Make Donald Drumpf Again”, que esgotaram. A aplicação foi descarregada milhões de vezes e houve jornais que até garantiram: “John Oliver já está a ter um efeito nestas eleições”. Essa perspetiva é sempre precipitada, eu lembro-me que, na segunda eleição do Bush, o Bill O’Reilly convidou o Jon Stewart para o seu programa e disse-lhe: “sabes o que é trágico nisto é que tu vais ter uma influência no resultado nestas eleições”, pensando que ia prejudicar o Bush. Depois este ganhou com mais dez milhões de votos que tinha tido na primeira eleição. O poder dos cómicos está muito exagerado.

No entanto, às vezes, parece que há efeito. O seu sketch sobre Marcelo Rebelo de Sousa, no referendo do aborto, foi visto por milhões de pessoas e parece que teve o efeito de ridicularizar uma determinada posição.

Lembro-me do Miguel Sousa Tavares ter escrito isso no “Expresso”, que aquele sketch teve uma influência no resultado, mas isso não é baseado em nada. É baseado simplesmente numa impressão. Nunca ninguém apresentou um estudo com pessoas a dizer: “por acaso eu ia votar ‘não’ no referendo do aborto, mas depois vi o seu sketch e mudei de voto”. Nunca ninguém apresentou isso.

Mas desmoralizou um bocado. O Marcelo engoliu mal a coisa na altura.

O humor tem algum poder, mas é impossível de controlar. A prova disso é que há gente que argumenta hoje que nos EUA pode ter ocorrido o seguinte fenómeno: aquele tipo que era satirizado todas as noites com muita violência pelos melhores humoristas do mundo, levou muitas pessoas a reagirem. Uma parte do povo americano terá pensado: “coitado do homem, eles estão a fazer pouco dele, mas eu também estou a ser escarnecido. Fico com este tipo que a malta da cidade está a fazer pouco. Hollywood ri-se deste homem como se ri de mim. Vou votar nele!”

Então o efeito “o rei vai nu” é um mito. Não é verdade que o cómico possa olhar para a realidade com um olhar novo e reparar numa fraqueza do poderoso e isso ajude a mudar as coisas…

Este efeito existe, é preciso é não exagerar em relação a ele. Só a ideia de satirizar um objeto inclui uma homenagem até porque reconhece a existência desse objeto. Dou sempre um exemplo: depois da gente [os Gato Fedorento] colocar um cartaz no Marquês de Pombal a fazer pouco do cartaz dos nazis [outdoor do PNR que pedia a expulsão dos imigrantes], uma vez numa sessão de uma universidade, uma aluna negra levantou o braço e perguntou: “a vossa intenção com aquele cartaz foi satirizar o cartaz do PNR ou dar-lhe maior visibilidade?”. Houve um murmúrio na plateia que indicava que a resposta era clara e óbvia. Mas a pergunta tem razão de ser. Falou-se mais do cartaz dos nazis depois da gente pôr o nosso do que antes. E quando passavas no Marquês de Pombal, o cartaz dos palhaços estava impecável e o cartaz dos nazis estava todo pintado por cima. E isso cria um efeito de vitimização, a certa altura estão pessoas a dizer: “porquê que eles não podem falar também?”. Esse efeito não é negligenciável.

Às vezes em Portugal temos pouca sensibilidade para esses aspetos, até por uma questão de diferente memória histórica. Lembro-me que fez um anúncio com a cara pintada de negro a fazer de negro, o chamado blackface , que se fosse nos EUA levantaria uma enorme polémica…

Esse assunto interessa-me imenso. Primeiro porque blackface, em rigor, não é escurecer a pele para interpretar o papel de um negro. Blackface é uma caricatura grotesca de um negro, com os lábios grosseiramente exagerados, etc… O segundo ponto, o barulho que se gera à volta disso parece que se insere num ambiente cultural, muito inquietante para mim, em que do lado da esquerda há uma espécie de puritanismo em que há um certo antirracismo que consegue ser racista. O “Guardian” é uma espécie de bastião dessa maneira de pensar. Houve aquele caso do Bill Cosby [comediante negro que confessou sedar mulheres para as violar] e a Tina Fey e a Amy Poehler imitaram-no, numa cerimónia de entrega de prémios, e fizerem umas piadas sobre ele, enquanto imitavam aquela maneira de falar dele. Uma senhora escreveu um texto no “Guardian” a dizer o seguinte: “não me interessa o que ele fez, uma pessoa branca a imitar uma pessoa negra nunca é aceitável”. Este raciocínio: “eu não imito este senhor porque ele é negro” é obviamente parente do “eu não cumprimento este senhor porque ele é preto”. Na base dos dois está a ideia que ele não é igual a mim.

Mas não há algo que pode explicar que isso até pode ser aceitável, como há um historial dos negros estarem proibidos de representar, até durante muitos anos não podiam jogar futebol – os primeiros negros no futebol brasileiro tinham que maquilhar-se de branco para entrarem em campo …

Punham pó-de-arroz na cara, sim.

Não é pelo facto de sermos exteriores a essa situação de vítimas de racismo que somos menos sensíveis a esses factos?

Ó Nuno, eu sou sensível a esse problema. A questão não é essa. Se me disserem: “você não pode fazer de ator negro, porque há atores negros que precisam do papel. E hoje não faz sentido que o Laurence Olivier pinte a cara de negro para fazer de Othello, porque há atores negros que podem fazer o papel”, eu estou de acordo. Agora que um humorista não possa representar esse papel, de negro, eu não entendo. É o mesmo que dizer que o Terry Jones não se pode vestir de mulher porque há mulheres que podem fazer aquele papel. Ou que isso é um insulto machista. Não é assim que a coisa funciona nesse âmbito. Imitar uma pessoa é um processo humorístico.

Quando vê as reações ao que o Sinel de Cordes diz acha que há um policiamento do humor?

Acho que sim. No mundo em que eu gostava de viver acontecia o seguinte: o Rui dizia o que lhe apetecia e as pessoas diziam os que lhes apetecia sobre o que o Rui disse. E assim sucessivamente até ao infinito. Acham que o que ele disse é abominável? Chamem-lhe uma besta. Eu não percebo muito é o Facebook. Pensava que só recebíamos na nossa página coisas dos nossos amigos, e então se não gostávamos do que víamos deixávamos de ser amigos daquele senhor, e deixávamos de receber coisas dele. O que para mim é inaceitável é que as pessoas achem que têm o direito a não serem ofendidas. E pensarem que têm o direito a nenhuma das suas ideias serem contestadas ou postas em causa. O mundo em que eu gostava de viver é aquele em que se as pessoas se sentem ofendidas, por uma declaração, podem ofender o autor desta. Mas o mundo atual parece ser diferente. É um lugar em que uma pessoa diz uma coisa inadmissível e as outras ofendem-se e dão-lhe um tiro na nuca. Ou outras ofendem-se por uma coisa que o Sinel de Cordes escreveu no Facebook e vão tentar despedi-lo da SIC Radical. Acho isso bizarro. Se têm o direito de pedir isso, não têm direito de o conseguir. Muitas vezes hoje, e de uma forma preocupante, grupos de pessoas, umas organizadas e outras fruto da dinâmica das redes sociais, conseguem resultados inadmissíveis. Tenho assistido a coisas, felizmente mais no estrangeiro, que levam as pessoas a perderem o emprego e, às vezes, esse desemprego é por toda a vida. Há o conhecido caso de uma senhora que era diretora de comunicação de uma empresa e que fez uma piada antes de se meter num avião. Era uma piada sobre ela própria, sobre como é errada a ideia que a senhora era branca e, por isso, não apanhava sida, coisas de pretos. As pessoas leram aquilo, publicado nas redes sociais, literalmente, e quando ela aterrou foi despedida. E essa pena tornou-se perpétua. Desde esse episódio, ela sempre que vai a uma entrevista de emprego pesquisam-na no Google e não a contratam.

Mas não há um direito à ofensa que pode ir mais além da reação intelectual. Um grupo de judeus não pode contestar que em televisão de sinal aberto não se permita que se façam piadas que ofendam as vítimas do Holocausto, por exemplo?

É normal que as pessoas se ofendam. Mas sou avesso a proibições de que se digam coisas. Há uma discussão que eu tenho tido sobre o que é lícito dizer ou não é. É uma discussão, a maior parte das vezes, de surdos. As palavras não são atos. Se eu disser que vou matar uma pessoa tenho uma pena, se a matar tenho outra pena, por uma razão evidente: palavras são uma coisa e atos são outra. Do outro lado respondem-me: “mas as palavras não são importantes?”. Eu nunca disse isso, o que digo é que as palavras são diferentes das ações. Se a gente não parte desse princípio a vida torna-se insuportável.

Tendo lido a Bíblia sabe que “no princípio era o verbo” e que as palavras têm uma força material.

Claro que têm.

Vamos para um caso concreto que foi muito discutido: em que medida os piropos não podem condicionar a liberdade das mulheres circularem no espaço público sem medo.

Sou contra a lei do piropo. Abomino, como é evidente, os gajos que mandam piropos. Tenho duas filhas, o que eu lhes digo é o mesmo que diria se tivesse dois filhos: “se um idiota te diz uma coisa provocatória e estúpida, tu não ligas e segues, se te apetecer, quando estiveres a uma distância segura, dizes-lhe o que te apetecer”.

Têm sentido de humor as suas filhas?

Têm, às vezes até demais (risos). A questão do piropo é que às vezes coloca-se no mesmo prato coisas que são apenas parvas, como: “ó joia anda cá ao teu ourives”, com coisas realmente repugnantes. Finalmente, a questão do piropo é um ilícito que é difícil de provar: ou é dito nas obras à distância ou em surdina quando alguém passa. Eu lembro-me quando essa discussão parlamentar decorria, houve um deputado, favorável à lei, que disse: “porque nós temos que pugnar que desapareça a palavra que traumatiza e o olhar que invade”, já vamos no olhar que invade. A gente não pode legislar sobre olhares.

Espero que não tenha sido o Soeiro.

Foi o Soeiro, sim. O Soeiro falou do “olhar que invade”. Não é possível legislar sobre olhares.

A certa altura todo o desejo se torna uma coisa condenável.

Sim, embora não concordo com as pessoas que dizem que acabar com o piropo é acabar com a sedução. Dizer coisas do género: “até te arrancava os dentes da frente”, não é sedução, por amor de Deus, é só javardice. Na maior parte das vezes o piropo não é sedução é agressão, é feito para perturbar. Agora por mais abominável que seja o piropo, prefiro uma sociedade em que a gente arrisca a ser perturbada pelas palavras de outra pessoa que uma sociedade que policie as palavras. Sou muito avesso à proibição. O Supremos Tribunal dos EUA é muito pouco restritivo nessa matéria e eu gosto dessa abordagem. Às vezes só condena uma ameaça de morte se ela corresponder a requisitos que provem a iminência e a probabilidade daquilo acontecer. Nessa ponderação o Supremo Tribunal americano tem decisões que nos podem parecer surpreendentes, como quando autorizou uma manifestação nazi em Skokie, apesar de a cidade ter muitos cidadãos descendentes de sobreviventes aos campos de concentração. Apesar disso, o tribunal considerou que os nazis tinham direito a fazê-lo porque a liberdade de expressão estava acima da proibição. Há uma estudiosa judia sobre o Holocausto que destruiu em debate o conhecido historiados negacionista e revisionista inglês David Irving, com factos e argumentos, mas que sempre defendeu que não o deviam prender. O homem esteve preso por negar o Holocausto, coisa que a pensadora judia defendia ser um erro, porque prendê-lo faz várias coisas: torna-o um mártir da liberdade de expressão, faz parecer que há alguma coisa a esconder e alimenta as várias teorias da conspiração de que os argumentos dele são tão fortes e bons que a gente não consegue responder-lhes. E esta posição não é minha, já defendia o senhor John Stuart Mill quando afirmava que há uma razão para deixar os energúmenos falarem. Se as nossas ideias deixarem de ser contestadas, deixam de ser convicções e passam a ser dogmas. E a partir do momento que elas se tornam isso, deixamos de as conseguir defender, porque impedimos que elas sejam discutidas e postas em causa. Por isso tenho muita dificuldade em dizer: “o senhor pode dizer que a Terra é plana, mas não pode dizer que o Holocausto nunca existiu”.

Há um boato que garante que o humor tem de ser inteligente, mas sabemos que é possível fazer o humor com o racismo, a homofobia. É portanto uma declaração visivelmente exagerada, não acha?

É verdade. Às vezes a gente olha para o humor e acha que é só flores. “O humor é a arma dos fracos”, ouvimos dizer. E muitas vezes é porque os fracos não têm acesso a outras armas. O que faz um judeu no campo de concentração? Muitas vezes não tem outra maneira de reagir do que dizer uma piada ao amigo do lado. Contava-se muito aquela história em que o Hitler e o Goering sobem à Torre de Berlim e o primeiro diz: “Gostava muito de dar uma alegria ao povo alemão”. “Dá um passo em frente”, retorque Goering. Esse tipo de histórias que se contavam faziam qualquer coisa e ajudavam a aliviar aquele peso, mesmo que fosse durante muito pouco tempo. Ajudavam a manter alguma sanidade no meio daquilo tudo. Mas é possível também que humor seja a arma dos opressores. No Museu do Holocausto vi cartoons feitos pelos nazis que eram caricaturas grotescas dos judeus como raça gananciosa e com enormes narizes. Também é a arma dos fortes. Nas escolas, o bullying quando não é violência física é humilhação com escárnio e piadas.

Isso tem um ponto de possível duplicidade, numa agremiação que pertenceu em tempos [PCP] as anedotas anti-comunistas eram contadas, como graça, da mesma maneira que eram contadas lá fora pelos anti-comunistas. O mesmo conteúdo podia ter dois sentidos para grupos distintos: num grupo o cinismo humorístico era visto como espírito de corpo e no outro grupo era uma arma de contestação.

Se calhar, para um comunista estas anedotas eram só contadas perante pessoas que se admitia poder contá-las. Dentro do Hotel Vitória [sede do PCP na Avenida da Liberdade], se calhar um militante podia contar a outro: “sabes quais são as três vitórias da RDA (República Democrática da Alemanha)? São a saúde, a educação e o desporto. E os três fracassos? O pequeno-almoço, o almoço e o jantar”, mas talvez um militante do PCP não conte isso a um militante do PSD ou até fique ofendido se um militante do PS lhe contar.

Há um humor nacional e regional? Parece que há povos como os checos, no centro da Europa, que têm um humor muito próprio, mas ao mesmo tempo temos anedotas como as chamadas dos alentejanos que são iguais às anedotas que os franceses contam sobre os belgas, os americanos sobre os polacos e os brasileiros sobre os portugueses.

E são mesmo. Há piadas que viajam. O apuramento da verdade é uma das armadilhas de quem está sempre a fazer humor. Ouve-se uma coisa e diz-se: “adiro a esta ideia”. E o inverso? “Também é verdade”. É possível argumentar as duas coisas: as anedotas de alentejanos são as mesmas que os franceses contam sobre os belgas, que os americanos contam sobre polacos e que os brasileiros narram sobre portugueses; mas também é possível dizer que a gente não ri de uma comédia do Aristófanes como se ria na altura em que ela foi escrita: não sabe quem são os políticos de que ele está a fazer pouco e também há certos aspetos que deixamos de valorizar e que se valorizavam na época que escreveu o autor. Hoje é possível não rir quando o Falstaff está a fazer um discurso sobre a honra, a justificar a sua própria cobardia, dizendo que: “a honra é só uma palavra, é ar. Se eu perder uma perna na batalha a honra não me recoloca a perna. O tipo que está caído no campo de batalha não sente honra”. Este discurso é um discurso bem construído mas não nos faz rir à gargalhada, como fazia na época em que foi escrito.

Porquê?

Porque hoje a ideia de honra não tem muita importância e na altura era provavelmente uma das mais importantes coisas do mundo. Era um absoluto tabu dizer que a honra não era importante na altura e que ela era apenas ar.

É possível ter humor sem morte?

Lá está, o que digo no livro é que a gente só ri porque tem consciência da própria morte. É uma pequena anestesia que nos ajuda a suportar melhor essa ideia. Sem a qual a ideia de morte seria insuportável. Continua a sê-la, mas essa pequena epidural, essas pequenas picadas do humor, ajuda a suportar o peso da morte. Vamos simplificar isto para ficar mais claro: se a gente acompanhar um prisioneiro que sai da cela e vai até ao cadafalso a rir o tempo todo, pensamos: “isto é macabro. há qualquer coisa de muito estranho nisto”. Mas essa ideia de ir a rir no caminho da sepultura é de facto aquilo que nós fazemos, nós só não sabemos que o cadafalso está a 50 metros.

Não é contraditório com a célebre frase de Woody Allen que “é impossível ter uma consciência objetiva da morte e continuar a cantar afinado”?

(Risos) É possível que tenhamos a consciência que vamos morrer mas não totalmente. Eu lembro-me do António Lobo Antunes dizer quando teve um cancro e ele é médico : “a mim? Isso acontece-me?”. A gente tem muitas vezes essa forma de nos enganar de pensar que no fundo a morte não nos vai apanhar.

No fundo a morte existe mas é para os outros.

Isso é visível em funerais em que toda a gente se junta e mais longe há sempre alguém num grupinho que não resiste e conta uma anedota. Isso é uma maneira de aliviar a tensão, de desviar o facto de nós irmos ser proximamente os inquilinos daquela caixa.

Há em países que isso é mesmo assumido, penso que nos EUA há uma espécie de refeição em que com alegria se tenta celebrar o morto. Aqui é diferente.

Aqui as coisas são mais solenes. Há no meu livro uma coisa que aborda essa necessidade de solenidade e esse choque, quando o Samuel Johnson publica, seis meses depois da morte de John Gay, uma carta, numa revista, em que pede que alguém vá apagar o epitáfio humorístico deste na capela de Westeminster, em que Gay deixava para a posteridade o seguinte epitáfio: “Life is a jest; and all things show it,/ I thought so once; but now I know it.” (A vida é um chiste; e tudo se revela com clareza/ Pensei assim em tempos, mas agora tenho a certeza). Há de facto uma solenidade que rodeia a morte que se perde se fazemos piadas. E normalmente essa solenidade é necessária para impor esse receio. Se as pessoas não têm medo do que lhes sucederá depois da morte, até podem considerar que é lícito fazer o que lhes apetece.

Em matéria de inteligência artificial poderá haver uma época em que as máquinas tenham sentido de humor?

Isso é uma boa pergunta. Já é possível colocar uma máquina a jogar xadrez e derrotar o grande mestre Gary Kasparov, mas até agora não foi possível inventar uma máquina com capacidade para criar um texto humorístico. É possível fazer umas coisas à balda que às vezes por acaso produzem qualquer coisa com graça, mas não se conseguiu uma máquina que o faça “conscientemente”.

A humanidade e a consciência está no sentido de humor?

Se calhar está. É possível que a máquina não tenha a consciência que vai morrer como nós. É possível que só se ache graça a coisas quando temos essa ideia.

O humor seria um parente pobre do Eros em relação ao Thanatos. Estaríamos perante um triângulo amoroso que envolveria erotismo, morte e humor.

É isso mesmo. É possível estabelecer uma relação entre Eros e riso….

Mas o riso não dá muito jeito naquelas circunstâncias (riso).

Era aí que queria chegar: a relação entre os dois nessas circunstâncias é contraditória. Há uma solenidade no erotismo que o riso mata. Há um livro do Ian McEwan que conta a história de um casal muito inexperiente sexualmente que vai ter a sua primeira noite de núpcias: o rapaz deita-se na cama da estalagem em que estão e a cama range. E ocorre-lhe que aquela cama já tinha rangido muitas vezes, e de repente ocorre-lhe que todos os casais que fizeram aquela cama ranger estivessem ali presentes nesse momento e em fila para usarem na sua vez a cama. E este pensamento dá-lhe vontade de rir e ele pensa: “tenho que afastar esse pensamento da cabeça”. Porque o riso é inimigo do erotismo. Por outro lado, e aqui é que está a contradição, a gente pode julgar que o riso cria uma relação e uma intimidade que mais nenhuma coisa cria. Há uma cena no “Boston Legal” , uma série de advogados, em que um dos advogados confessa ao amigo: “acho que perdi a minha namorada – quando sai do meu gabinete a minha namorada estava a rir com outro homem”. O amigo até goza com ele e diz-lhe: “tens a certeza que estavam a rir-se, não estavam só a beijar-se?”. Esta ideia que o riso gera uma intimidade que nenhuma outra coisa consegue também faz muito sentido.

Há, no entanto, o fio da navalha: a sedução pelo riso ou ser considerado palhaço.

(Risos) É possível que sim.

Com tanta experiência nessa matéria do riso conhece esse fio da navalha.

Isso nunca me valeu de nada com o sexo oposto. Estou mais próximo da ideia que o riso destrói do que favorece. As meninas normalmente encantam-se por cantores, por uma razão é que é sempre uma encenação, uma pose. E o riso é o contrário: é uma desconstrução é dizer que: “olha a tua ilusão tem estes parafusos por trás”. E essa ideia é algo de desiludir e não cria o encanto necessário

Como é capaz de desconstruir as coisas, tão racional na política e em outros campos e é tão fanático no futebol?

Não me importo de ser fanático no futebol porque normalmente ninguém morre. Se achar que os rapazes vestidos de vermelho são obviamente muito melhor que os de amarelo. E se de repente um dos rapazes de vermelho trocar a camisola pela amarela, e neste momento eu achar que o odeio, não acontece grande coisa com isso. Consigo ser fanático no futebol. Quem é fanático na política e na religião provoca efeitos muito perigosos. É difícil interpor essa distância necessária ao humor em zonas de fanatismo. É por isso que os fanáticos raramente têm sentido de humor. É possível dar um passo atrás nesses temas menos importantes que são a política e a religião, e naquilo que interessa, a bola, isso é impossível para mim.

Não é possível dizer que sofremos de falta de paixão naquilo que é importante?

Da paixão certa. Muitas vezes o que vemos nos debates na política e nas redes sociais é excesso de paixão errada. A paixão é dirigida para a pessoa do adversário e não para as ideias do adversário. Tenho uma amiga que tinha dois cães em Braga. Os cães estavam presos a uma corrente porque se odiavam, passavam o dia todo a ladrar um com o outro. A minha amiga chamava-lhes o facho e o comuna. É um bocadinho isso que se passa nas redes sociais. As pessoas ladram muito. Aquilo é paixão mas não serve para nada.

Um dos sketchs mais geniais que fizeram na SIC Radical punha alguém a descrever pessoas por aspetos físicos: o coxo, o marreco, etc.. Não é sobre essa propensão humana?

Duvido que esse sketch pudesse ser feito hoje. Eu passo o tempo a dizer: “nisto aparece o coxo”, “o Zé” , respondem-me, acrescento, “e vem o marreco”, “o Fernando”, dizem-me e acabo a falar do “mariconço”. Penso que isso hoje seria impossível. No outro dia escrevi uma crónica a justificar-me, na “Visão”, pelo facto de dizer que sou um mariquinhas quando vou dar sangue, e que mariquinhas não tem nada que ver com um homossexual. Há pouco tempo uma pessoa que eu admiro muito contou-me a seguinte história: foi a um bar e pediu um gin tónico. O empregado disse-lhe que só tinha os copos normais e que não tinha aqueles balões “cheios de paneileirices”. Ao que o meu amigo respondeu: “fico ofendido que diga paneileirices que eu sou paneleiro e isso ofende-me”, e o homem desfez-se em desculpas. Quando há gente que diz ‘estes gins cheios de paneleirices’, quem é que associa isso a homossexual?

Mas isso não traduz uma subordinação de associar ao homossexual uma menor coragem?

Neste caso seria uma maior sensibilidade estética. O que acho é que as pessoas hoje tendem a interpretar as palavras literalmente. Assim como acham que o Cartão do Cidadão é só homens. Fazem interpretações literais. Assim quando o Platão diz: “todo o homem é mortal”, se calhar acham que as mulheres vivem para sempre. Se a gente vai investigar a origem das palavras e vai proibir as palavras de origem duvidosa a gente fica com um vocabulário muito reduzido. Por exemplo, a palavra auspício vem do latim e significa contemplar aves, baseia-se numa superstição romana, em que antes de se tomar uma decisão largava-se os pássaros e se eles virassem à esquerda, a sinistra, era mau, e à direta era sinal que as coisas iam correr bem. Portanto, quem diz hoje auspício está a reconhecer que a direita é boa e a esquerda é má. Ora não é isso que acontece.