A guerra síria
O ex-primeiro-ministro português designou a guerra civil na Síria como um dos seus principais objetivos. O conflito germinou sob o olhar do seu antecessor, radicalizou-se aproveitando o imobilismo do Conselho de Segurança e pelo caminho matou qualquer coisa como 400 mil pessoas, causando ondas de instabilidade e uma vaga de refugiados que quase desintegrou a ordem europeia – que, apesar de ter recebido uma pequena parte dos cinco milhões de refugiados sírios, ainda está a sarar as feridas de 2015. “Creio que a primeira prioridade da comunidade internacional é pôr um fim a este conflito”, disse Guterres em outubro.
O ex-primeiro-ministro sabe que não há muito que possa fazer como secretário-geral que altere substancialmente a ordem da guerra síria e que acima dele estarão os interesses americanos e russos – e também iranianos, turcos e sauditas, por exemplo. Tem, em todo o caso, o benefício de entrar num período definidor do conflito que exigirá uma nova abordagem: a oposição armada está prestes a perder Alepo, o que lhe retirará quase toda a relevância política. A isto soma-se o facto de o próximo presidente americano parecer muito menos interessado no destino do ditador Bashar al-Assad do que no fim do Estado Islâmico, abrindo uma porta para o entendimento com Moscovo e o caminho a uma resolução política.
Mas ninguém espera que a guerra acabe. Quando muito, transformar-se-á numa insurreição rural, segundo diz a maioria dos observadores do conflito, que pode ser tão violenta e complexa como hoje. Nesse caso, a experiência de Guterres como líder do gabinete de refugiados e o conhecimento que tem do terreno sírio parecem estar a ser bem recebidos por quem está próximo dos rebeldes.
Refugiados e migrantes
Não é por acaso que o novo secretário-geral das Nações Unidas foi também por dez anos o líder do seu órgão de proteção de refugiados. Não se trata apenas da crise que assolou a Europa no último ano, um continente próspero que continua mais ou menos distante dos grandes focos de crise. Há hoje 65 milhões de refugiados em todo o mundo, mais do que em qualquer outro momento depois da II Guerra Mundial.
Se é verdade que Guterres defende uma abordagem “holística” às crise mundiais, “atando as pontas soltas” no que diz respeito às origens do conflito, da desigualdade e também das migrações, também não deixa de ter ideias concretas para aplacar a crise de hoje. Guterres quer dar ênfase à prevenção através da prosperidade – “a migração deve ser uma opção, não uma necessidade; deve nascer da esperança, não do desespero” -, mas no seu programa defende que “os países que acolhem mais refugiados e são pilares da estabilidade regional e a nossa primeira linha de defesa na segurança coletiva devem ser as prioridades para as agências de desenvolvimento e cooperação das Nações Unidas, mesmo que sejam países de rendimentos médios”. Mas por muito que Guterres conheça os problemas íntimos da assistência a refugiados, não deixará de ter nas mãos um frágil acordo de contenção de deslocados entre a UE e a Turquia e um líder americano pouco disposto a acolher pessoas do Médio Oriente.
Terrorismo
O grupo Estado Islâmico será muito menos ameaçador no dia em que António Guterres tomar posse do que nos anos em que era chefe da ACNUR. Mas isso não quer dizer que a ameaça terrorista global vá recrudescer. O previsível fim do Estado Islâmico não deve aplacar a sua chamada à violência indiscriminada, os talibãs ganham terreno no Afeganistão, o caos líbio não se alterou e nada de diferente acontecerá nos próximos anos no que restar da Síria. O terrorismo com origem no Médio Oriente, para além disso, é só uma fração da ameaça. Guterres reconhece–o: “A natureza do conflito está a alterar-se, com mais agentes armados e muitos com métodos assimétricos.”
Também neste tema o ex–primeiro-ministro sugere uma abordagem “holística”, que tem tanto de combate armado como de prevenção e de liderança moral da ONU. “A prevenção também é crucial para combater o terrorismo. A força deve ser usada quando necessário e de acordo com a Carta das Nações Unidas. Mas não nos esqueçamos que este é também um combate por valores, uma batalha comum. Os ataques terroristas não atingem apenas as suas vítimas diretas, mas todos os que subscrevem os objetivos e princípios dessa Carta. A comunidade internacional tem o direito legal e o dever moral de agir coletivamente para terminar o terrorismo.”
Prevenção de conflitos
Guterres quer coordenar os três pilares das Nações Unidas – a intervenção humanitária, as ajudas ao desenvolvimento e a manutenção da paz – para impedir que novos conflitos despontem. Muito deste esforço está centrado no financiamento dos programas da organização, sistematicamente atrasados em relação ao andar das guerras – dizem os diplomatas da ONU que só existe dinheiro quando os conflitos explodem, e não quando podem ser evitados. Aqui, os olhos voltam-se não só para as guerras que ardem em lume brando, como no Sudão, Nigéria ou Iémen, mas também para focos de tensão que em breve se podem transformar numa nova Síria, como o Congo, por exemplo, ou, num cenário mais negro, num novo conflito global, no mar da China Meridional ou no leste da Europa.
“Os agentes humanitários e os do desenvolvimento devem trabalhar em conjunto desde o início da crise”, sugere Guterres no seu programa, reforçando o que diz ser uma “arquitetura de paz” que se baseia, diz, na procura de “soluções políticas” e construção de “instituições”.
Proliferação nuclear
Durante muitos anos, as grandes potências defenderam que a segurança do mundo estava diretamente ligada ao limitar da proliferação de armas nucleares em poucos países: EUA, Rússia, China, Reino Unido, França, Israel, Índia, Paquistão e Coreia do Norte. O acesso das armas nucleares a países como Israel, Índia, Paquistão e Coreia do Norte já aumentou em muito o risco de ser desencadeado um conflito nuclear.
A eleição de Donald Trump veio complicar ainda mais este cenário. No decurso da campanha, o multimilionário defendeu que a Coreia do Sul e o Japão deviam ter armas nucleares para contrabalançarem o poderio militar da China e o facto de Pyongyang já ter a arma atómica. Para além disso, Trump falou várias vezes na sua intenção de revogar o acordo com o Irão em relação ao nuclear, o que abriria a porta a um rearmamento do Irão e a que os radicais de Teerão conseguissem recomeçar esse programa. Em 1990, Trump defendeu que conseguiria um bom acordo nuclear com os soviéticos se o negociador dos EUA chegasse tarde à reunião, se voltasse para o soviético e lhe dissesse “fuck you”.
Reforma da ONU
António Guterres ganhou a reputação de reformador nos seus anos como chefe da agência para a proteção dos refugiados das Nações Unidas. Cortou cerca de um terço dos seus custos, dispensou cerca de metade dos seus funcionários e manteve-se à tona na resposta à crise. O próximo secretário-geral quer manter a fama. No seu programa diz procurar uma organização “menos burocrática e mais eficiente, produtiva e orientada para o terreno; que simplifique os processos, elimine custos estruturais redundantes e aproveite ao máximo a tecnologia moderna e a inovação”. Ou, como disse esta semana na cerimónia de juramento em Nova Iorque, quer tornar o monstro mais ágil: “Não é possível demorar nove meses para deslocar um funcionário para o terreno”, disse Guterres, criticando também as regras orçamentais que, segundo ele, parecem servir mais “para impedir do que para permitir as nossas funções”. O “Wall Street Journal” chegou a criticar o seu mandato como chefe do ACNUR, dizendo que Guterres não era mais do que “um socialista de sempre que geriu mal uma organização humanitária global”. O consenso, porém, é outro: Guterres põe a ênfase na ação, na rapidez, na intervenção e no acordo, o que o coloca um patamar acima do contido Ban Ki–moon. O homem branco que venceu a expectativa de que seria uma mulher do leste europeu a governar a ONU quer também mais paridade de género e diversidade regional entre os quadros da organização, “com objetivos e calendários claros”.
Ambiente
O tema de eleição de Ban Ki–moon que Guterres terá de preservar frente a uma grande adversidade chamada Donald Trump. O próximo presidente americano é uma incógnita quanto ao que pode fazer depois de tomar posse e parece viver ao sabor do vento no que diz respeito ao combate às alterações climáticas. O certo é que prometeu ao longo da campanha suspender as fundamentais contribuições financeiras dos Estados Unidos para a ação climática da ONU e rasgar o Acordo de Paris, aquele que é discutivelmente o maior sucesso do antecessor de Guterres e que estabelece objetivos para a redução nas emissões de gases com efeito de estufa para quase 200 países.
Trump, aliás, já apontou como administrador da agência americana de proteção ambiental um aliado próximo da indústria de combustíveis fósseis que diz não acreditar totalmente na teoria do aquecimento global – algo que o próprio Trump sugeriu. Obama fez do tema das alterações climáticas uma prioridade americana, abrindo caminho à assinatura do Acordo de Paris. Um presidente americano disposto a deixar cair o entendimento abre portas a que outros países não obedeçam aos objetivos nas emissões, sobre os quais já não existem mecanismos que obriguem a cumprir. Quando elaborou o seu programa, ainda antes da eleição de Donald Trump, Guterres escrevia que os novos acordos ambientais “representam uma oportunidade única que deve ser preservada”. Esta semana, num mundo substancialmente diferente, afirmou o seu otimismo. “Acredito que este avanço é imparável”, disse o próximo secretário-geral acerca da agenda para as alterações climáticas.
Trump e os populistas
Talvez o maior obstáculo diante de Guterres seja o aparente ruir da ordem liberal do pós-Guerra Fria. Aqui entra não só a mão de Donald Trump, que de todos pode causar mais dano, mas também as dos movimentos populistas da direita nacionalista que germinam pela Europa, onde o próximo secretário–geral não pode contar nos próximos tempos com grandes aliados – Matteo Renzi perdeu o poder em Itália, em França pode ainda nascer o fim da UE com a eleição de Marine Le Pen, por muito improvável que isso pareça; o Reino Unido está ocupado a negociar a sua saída da comunidade e mesmo a Alemanha tem eleições com que lidar em 2017. O ex-primeiro–ministro português parece tê-lo antevisto nos finais de 2014, numa entrevista ao “Público” em que descrevia os mesmos desafios que agora terá de enfrentar. “Hoje não vivemos num mundo bipolar, não vivemos num mundo unipolar, mas também não vivemos num mundo multipolar. Vivemos num mundo relativamente caótico em que as relações de poder deixaram de ser claras.”
Guterres herdará de Ban Ki-moon uma organização fragilizada não apenas pelo ceticismo em torno das instituições tradicionais de poder, mas amputada também pelo isolacionismo. Se há algo que une Le Pen a Trump é a ideia de que a ordem multilateral está por detrás de muitos dos problemas que prometem resolver. O ex-primeiro–ministro, porém, parece ter o mérito de fazer o que Hillary Clinton não fez e fala diretamente aos temores do eleitorado que deu a Trump a sua vitória. “Está na altura de os líderes globais e da ONU ouvirem as necessidades das pessoas”, lançou esta semana em Nova Iorque. Ou, como escreveu no seu programa sobre a globalização: “A sua natureza desequilibrada levou a uma grande concentração de rendimentos, a uma desigualdade extrema, e tornou a exclusão mais intolerável.”