Quando em fins de 1982 comuniquei ao meu pai que tinha sido convidado para a direção do Expresso, e que estava a pensar aceitar, ele disse-me: «Vais arranjar muitos inimigos».
Mas ao longo dos 23 anos em que fui diretor não tive essa perceção. Mantive uma relação correta com a generalidade da classe política e empresarial – e com a própria sociedade. Nunca fui acusado de deslealdade ou falta de isenção no exercício do cargo. Com exceção do PCP, que de vez em quando acusava o Expresso de discriminação e de ser «um jornal da burguesia», só me lembro de duas ‘reclamações’ significativas: uma do BCP e outra do BES, que acabaram em concórdia.
No que respeita à redação, estimulei um ambiente de trabalho responsável mas alegre e criativo, em liberdade. E agi sempre de modo a que os jornalistas pudessem confiar no seu diretor. A confiança dos jornalistas no diretor e vice-versa é decisiva numa redação.
Com estes princípios, produzimos um jornal inquieto (mesmo quando parecia imóvel), livre, rigoroso e imparcial.
Tive a sorte de protagonizar o período de maior fulgor do maior jornal português.
Quer do ponto de vista jornalístico, quer do ponto de vista empresarial, quer do ponto de vista financeiro, foi um tempo soberbo. O Expresso não era ‘um jornal’ – era ‘o jornal’. Quando saí, a tiragem era aproximadamente o dobro do que era quando entrei. E hoje as vendas são cerca de metade do que eram quando saí. Tratou-se de uma época de ouro.
Quando fundei o SOL, mantive no essencial a mesma atitude, com uma diferença: não sendo líder de mercado, tinha de ser um jornal menos institucional, mais agressivo e politicamente incorreto.
Isso levou a que se tornasse o grande agitador da imprensa escrita, lançando casos sucessivos: Ota (aeroporto), Submarinos, Freeport, Face Oculta, Monte Branco, Duarte Lima, Operação Marquês, etc. Fomos uma lufada de ar fresco num ambiente estagnado. Ainda hoje o SOL é um jornal que foge ao establishment, e onde o leitor sabe que encontrará notícias que não vêm em mais lado nenhum.
No meio de problemas empresariais e financeiros, o SOL foi (e é) um êxito jornalístico.
Mas, a partir do momento em que publicámos a primeira notícia sobre o caso Freeport, senti que começávamos a ter inimigos a sério. Sócrates só não nos liquidaria se não pudesse.
Isso não impediu que mantivéssemos em relação a ele a mesma atitude de isenção. É difícil acreditar nisto, mas durante anos cortei dezenas ou centenas de referências desagradáveis a Sócrates em textos escritos pelos nossos jornalistas, porque as considerava gratuitas. Sempre disse que devíamos tratar os nossos ‘adversários’ com especiais cuidados de imparcialidade, para não darmos azo a quaisquer suspeitas de retaliação.
Neste período de 30 anos como diretor de jornais fui julgado inúmeras vezes (talvez mais de 100) por alegado ‘abuso de liberdade de imprensa’ mas fui sempre absolvido. Isto diz muito sobre a credibilidade das notícias que publicámos.
Depois de deixar, no fim do ano passado, a direção do SOL, escrevi um livro, Eu e os Políticos – publicado em setembro –, sobre conversas que mantive com os principais protagonistas do nosso tempo. E só aí percebi a quantidade enorme de inimigos que tenho – e que finalmente se revelaram. Nos jornais, nas rádios e nas televisões choveram as opiniões contra mim, cada uma pior do que a outra.
Um dia, ao fazer zapping, estavam a atacar-me em três canais de TV!
Não eram críticas ao livro, pois as pessoas afirmavam não o terem lido: eram ataques ao autor. A animosidade acumulada durante 30 anos vinha ao de cima, como o lodo quando se remexe o fundo de um lago. E os ataques vinham de vários setores, desde uma certa esquerda a elementos do lóbi gay, passando por parte da classe jornalística. Todos se juntaram para me dar uma ‘lição’.
A animosidade dos jornalistas merece uma nota individualizada. Pensando bem, eu tinha tudo para ser mal-amado pela classe jornalística: era um arquiteto à frente do maior jornal português, tinha a coluna de opinião mais lida do jornal (a Política à Portuguesa), não era de esquerda e, finalmente, estive tempo demais no cargo (23 anos), tirando o lugar a outro.
Não respondi a nenhum ataque. Nem o podia fazer porque, com raras exceções, não os li nem ouvi . Os amigos falavam-me deles, estranhavam que eu não os visse, mas é a minha forma de estar. E, de qualquer modo, nunca poderia responder-lhes ao mesmo nível. Não é a minha forma de ser.
Mas este formidável ataque de que fui vítima durante semanas a fio na rádio, imprensa e televisão fez-me ver outra coisa: que sou muito mais importante do que pensava. Só se atacam aqueles que têm poder ou de quem se tem medo. Dos outros ninguém fala.
Quanto ao livro em si, houve quem achasse que o escrevi para atacar alguns políticos, ou para perpetrar vinganças, ou por outras razões mesquinhas.
Ora, como pôde verificar quem o leu, é um livro sereno e objetivo, que teve como única finalidade dar um contributo para a História. Certas passagens foram escritas com um nó na garganta, mas a pensar: «Se não escrever isto, que ninguém mais pode escrever, estou a enganar a História, a roubar-lhe qualquer coisa». Acredite quem quiser, mas foi neste espírito que o livro foi escrito.
Durante os últimos 30 anos, sempre respondi antes de tudo perante mim próprio. E tenho sido muito exigente nesse exercício. Sei que escrevi um livro verdadeiro. E cuja importância se perceberá quando começar a escrever-se a História da nossa época. Estão lá as principais personagens, com as suas forças e fraquezas, as suas luzes e sombras.
Quanto ao resto, aproveito este tempo natalício para perdoar aos que me atacaram injustamente, utilizando o pretexto de um livro que não leram.