Vir falar com a diretora artística de um teatro sobre os próximos meses de programação, na mesma altura em que um outro anuncia o seu encerramento tem sabor agridoce. Um agridoce que soa quase a ironia se a mesma conversa acontece numa sala baptizada com o nome do fundador da companhia que se prepara para encerrar. Foi o que aconteceu, e que acabou por mudar o arranque de conversa com Aida Tavares, desde 2015 diretora artística do São Luiz, um teatro que entende como “a sala” da cidade de Lisboa. Uma sala cada vez mais concorrida.
Estamos a conversar na sala Luís Miguel Cintra, numa altura em que foi anunciado o encerramento do Teatro da Cornucópia. Foi um anúncio que a apanhou desprevenida?
Não, até porque tenho uma relação próxima com o Luís Miguel, quer em termos pessoais quer em termos de trabalho, porque ele passou muitas vezes nesta sala. Temos tido algumas conversas, ao longo dos últimos meses, por isso não me apanhou de todo desprevenida. Já sabia que seria este o desfecho, no final deste ano. Mas fico muito triste. Porque a Cornucópia é, para mim, a grande referência do teatro em Portugal, tal como o Luís Miguel. Tive, aliás, a oportunidade de lhe dizer isto no dia em que esta sala onde estamos recebeu o seu nome.
O que levou a que fosse dado o seu nome a esta sala?
O reconhecimento de homens como o Luís Miguel tem de ser feito em vida e devem ser momentos de partilha, de alegria e de celebração daquilo que ele nos deu. Nesse dia, durante a cerimónia, tive a oportunidade de ler um texto e, quando me pus a pensar sobre aquilo que deveria dizer, falei sobre a minha primeira memória de teatro e que é exatamente com o Luís Miguel, na Cornucópia. O “Não Se Paga! Não Se Paga!”, do Dario Fo, é a minha primeira memória de um espetáculo que me perturbou, sobre o qual me questionei. Estive a vê-lo tapada por uma manta, em condições difíceis – durante muito tempo era muito difícil a forma como ali se fazia teatro. Além desta ligação afetiva, tive a sorte de trabalhar durante muito tempo com o Luís Miguel, a partir do período em que o Jorge Salaviza era diretor aqui do teatro e eu era adjunta para a programação. Muitas vezes pensamos que tudo tem um fim, mesmo assim isto é muito triste. A Cornucópia foi uma estrutura que, com os cortes que sofreu, não teve possibilidade de se adaptar a estes novos tempos que são difíceis. Mas acho que o Luís Miguel tem ainda muito para dar e fazer e temos conversado muito sobre isso e vamos seguramente conversar ainda mais.
Usou uma palavra que na área da cultura se tem revelado, neste últimos anos, fulcral: adaptar. As águas dividem-se, hoje em dia, entre quem soube/ quis adaptar-se e entre quem não soube/ não quis adaptar-se?
Acho que não é tão linear assim. Acho que todas as estruturas e criadores e até os espaços, tivemos todos de repensar imensa coisa. Mas acho que um criador dizer que não quer mais fazer assim é uma decisão muito difícil. Claro que houve muitas situações em que as pessoas ficaram quase abaixo da linha de água e muitas coisas se desmoronaram. Mas não tem só a ver com capacidade pessoal. Muitas companhias viveram momentos mesmo muito difíceis. E devo dizer que teatros como o nosso e como o Rivoli, que funcionam muitas vezes como centros de criação e motores de coprodução, também viveram tudo isto. Não tivemos cortes, continuamos com um orçamento para programação de cerca de um milhão, a nossa relação com a câmara é estável e, de certa forma, até estivemos sempre em contraciclo. Mas o que sentimos foi uma enorme pressão porque, de repente, as estruturas ficaram com muito menos dinheiro do Estado, e nós passámos a ser um sítio seguro, um sítio onde os criadores podem ancorar e continuar o seu trabalho. Ainda assim, para nós, os últimos anos foram também muito difíceis porque não conseguimos trabalhar com todos. Não se pode estender a mão a todos.
Com o fenómeno das redes sociais, sempre que acontece um encerramento como este, esse passa a ser o assunto do dia, com inúmeras vozes a indignarem-se. Mas quando terá sido a última vez que essas mesmas vozes foram, por exemplo, ver uma peça à Cornucópia? E o que diz sobre nós enquanto espetadores e enquanto país, quando deixamos encerrar uma companhia como a Cornucópia, que tem o papel histórico que tem no que diz respeito à afirmação da liberdade em Portugal?
Diz imenso e não diz bem. É assustador. De facto a questão da memória é uma coisa ainda muito difícil para nós, portugueses, e sob vários aspetos. É muito impressionante quando somos confrontados com um espetáculos como o que tivemos aqui ainda agora, da Joana Craveiro, que é sobre a memória, e nos questionamos como é que não fazemos mais trabalho no sentido de preservar a memória. Claro que a nossa revolução é recente mas já é tempo de trabalharmos esse lado mais difícil. Sempre conversei muito com o Luís Miguel sobre a questão dos públicos e a forma como as pessoas se relacionam com a arte e sobretudo com o teatro, que é difícil. Claro que a Cornucópia tinha o seu público, mas muitas vezes as pessoas não iam. E isso diz muito sobre a memória e a importância que companhias como a Cornucópia tiveram.
Já referiu que tem falado muito com Luís Miguel Cintra. Já lhe abriu as portas do São Luiz ou estão sempre abertas?
Estão sempre abertas, sempre! E o Luís Miguel sabe disso. Já assim era mesmo antes de esta sala ter o seu nome.
Isso significa que a programação para o período de janeiro a julho de 2017, que agora apresenta, poderá ainda receber algumas adendas?
Nesse período já não, mas seguramente mais para a frente poderá acontecer. E o Luís Miguel já sabe disso.
Falou da questão dos públicos. O São Luiz, sobretudo nos anos mais recentes, não se tem limitado a programar de forma passiva, mas tem, por inúmeras vezes, tomado as rédeas da ação para ir efetivamente buscar as pessoas e aproximá-las do teatro. Isso é uma nota que marca também estes próximos meses de programação?
Sim. A conversa sobre o que são os públicos e que públicos são os nossos é uma discussão constante. E acho que um teatro municipal, que no fundo é a sala de uma cidade, tem, desse ponto de vista, obrigações adicionais. Quando pensamos na missão de um espaço destes, na relação com os diferentes públicos, devemos ter uma missão diferente de outros espaços. E é por isto que, de há uns dois anos para cá, estamos a trabalhar em diferentes eixos que têm a ver com o projeto educativo.
O primeiro dos quais é o programa Mais Novos?
Sim. É um programa que lançámos recentemente e que assenta sobretudo numa relação com as escolas estatais e com as famílias, públicos que nunca tinham estado no São Luiz. Por outro lado, com este programa, temos desafiado muitos criadores que nunca tinham trabalhado para a infância, nomeadamente na área da música. Ainda agora vamos ter, por exemplo, o Sérgio Godinho, o Filipe Raposo e o Filipe Melo.
Isso é o São Luiz já a acautelar o futuro?
Claro! É ali que temos de começar a trabalhar. Para um programador ver, como vi esta manhã, a sala cheia com 300 e tal crianças dá sentido a estarmos aqui.
Além do programa Mais Novos, mas ainda nesta senda de conquistar público, há ainda o projeto O Público Vai ao Teatro.
Sim. É um projeto que atravessa duas temporadas e que tem a ver com a formação de públicos de teatro.
Mas em que se traduz?
Temos três grupos muito diversos. Um grupo é composto por professores em formação e outros no ativo; um outro grupo tem adultos vindos de áreas muito distintas – desde os que não gostavam de teatro e vieram para este grupo porque querem perceber porque têm essa dificuldade na relação com o teatro, a outros que vieram porque amam teatro; e ainda um grupo de crianças. Durante toda esta temporada, estas pessoas estão a acompanhar espetáculos, a ter conversas com criadores e workshops, e, no final desta temporada, terão todos um momento chamado O Público Recebe, em que vão tomar os nossos lugares no teatro. Na temporada seguinte, o grande objetivo é começarmos todos a falar sobre programação, sobre o que é programar. Depois disto, estes grupos vão programar um ciclo de espetáculos no São Luiz.
A ideia tem tanto de apelativa como de assustadora pois, no fundo, estará a entregar os destinos do teatro a estas pessoas.
Pois. Mas está a correr muito bem. Claro que é um risco, mas tem sido extraordinário. Para mim tem sido muito importante ouvir o que estas pessoas pensam sobre os espetáculos que estão a ver, muitas vezes coisas bem complexas. Até para mim é um desafio muito interessante.
Até porque, e penso que isto será transversal a quem trabalha na área da cultura e, de certa forma, pode ser prejudicial, a certa altura estamos todos a trabalhar para o nosso umbigo, para a gente da cultura?
Pois… Para as pessoas da área, como se costuma dizer. É muito interessante ver, por exemplo, um engenheiro químico, como temos neste grupo, a falar sobre um espetáculo que acabou de ver e a fazer perguntas como, por exemplo, se faz sentido programar determinado espetáculo, como aconteceu agora com o espetáculo iraniano [“Cada Dia Um Pouco Mais”, de Mahin Sedri e Afsâneh Mâhiân, sobre a vida de três mulheres iranianas], uma peça difícil, até pela questão da língua.
E acha que, se a decisão estivesse das mãos desse engenheiro químico e do restante grupo que participa no programa O Público Vai ao Teatro, esse espetáculo seria incluído na programação?
Sim. Eles já entendem a importância de programar determinados projetos que, à partida, não parecem óbvios. É muito interessante ouvir pessoas fora desse mundinho da cultura, que é visto sempre como um mundinho privilegiado de pessoas brilhantes. Isto faz com que tenhamos um discurso mais aberto e, ao mesmo tempo, que estejamos dispostos a ouvir pessoas que, não sendo da área, nos dizem muitas vezes coisas que são determinantes para o nosso trabalho.
Olhando para os próximos meses de programação, o arranque acontece, no âmbito da iniciativa Lisboa, Capital Ibero-americana de Cultura 2017, a 7 e 8 de janeiro, com o espetáculo “Canções Para Uma Festa”, que conta com as cantoras Gisela João, Mariela Condo (Equador) e Yomira John (Panamá). Logo de seguida arranca o ciclo dedicado ao humor “Tragédia+Tempo”, comissariado por Bruno Nogueira e Ricardo Araújo Pereira. Depois segue-se “A Noite da Iguana”, um texto de Tennessee Williams encenado por Jorge Silva Melo, numa coprodução com os Artistas Unidos. Estes três momentos dão um bom retrato daquilo que o São Luiz pretende ser, enquanto teatro municipal de Lisboa?
Acho que sim. Primeiro temos o espetáculo de abertura da Capital Ibero-americana de Cultura, que é uma iniciativa que será transversal ao ano inteiro e terá uma presença muito forte no São Luiz, o que me agradou muito pois já andava a pensar em trabalhar algo relacionado com a América do Sul. Aqui teremos três mulheres com musicalidades muito diferentes, que se vão encontrar ali nas suas diferenças e semelhanças. Depois temos a celebração da nossa relação com o humor – até porque temos uma sala que se chama Mário Viegas. Temos uma relação com estes dois homens do humor: por um lado, as primeiras vezes que o Bruno subiu ao palco de um teatro foi aqui, quando tinha 19 anos, com “Manobras de Diversão”, já o Ricardo fez aqui o seu único projeto de teatro. O desafio que lhes lancei era pensarmos no humor enquanto conceito – o que é o humor? Propus-lhes um conceito que atravessasse toda a temporada, que tivesse a presença do stand up, mas que também passasse por outras formas, como as conferencias, as leituras encenadas, um ciclo de cinema… Tem sido muito bom trabalhar com eles porque o processo é todo muito conversado. Por fim, teremos um grande texto, de um grande autor, encenado por outro grande homem do teatro, o Jorge Silva Melo, que tem sido presença assídua aqui no São Luiz e que vai encerrar o seu ciclo Tennessee Williams aqui.
Disse que já andava a pensar trabalhar algo relacionado com a América do Sul, ainda antes de saber que o São Luiz estaria envolvido na programação da Capital Ibero-americana de Cultura 2017. O quê?
A nossa programação tem viajado por países bastante diferentes e longínquos. Só nestes primeiros meses de programação tivemos a Tailândia, a Turquia, a Grécia, o Irão. Interessa-me muito explorar isto. Neste sentido, e porque me interessa o que está a ser feito na América do Sul, já tinha pensado fazer um ciclo dedicado aquele lado do mundo. Por isso calhou maravilhosamente.
E o que destaca desta parceria sul-americana?
É sempre muito difícil fazer isso. De qualquer forma destacaria esta abertura – agrada-me muito ter estas três mulheres a cantar e a abrir a capital. Depois diria o projeto do Felipe Hirsch, do Brasil, que trará “A Tragédia Latino-americana” e “A Comédia Latino-americana”. Mais para o fim do ano, não está ainda anunciado, para posso avançar que vamos fazer a “Trilogia Antropofágica”, da coreógrafa uruguaia Tamara Cubas. E também temos o Vítor Ramil, do Brasil, o Teatro y Su Doble, do Chile, que trará a peça “Feos”, a partir de um conto do Mario Benedetti. E teremos criadores nacionais, que também farão parte deste programa.
Dentro dos nomes nacionais que fazem parte dos próximos meses de programação, é de sublinhar o regresso ao São Luiz de Gonçalo Waddington, que apresentará aqui “O Nosso Desporto Preferido: Futuro Distante”, o segundo capítulo da tetralogia que deu o primeiro passo este verão, no D. Maria II.
O Gonçalo é um cúmplice antigo da casa. Fez aqui o “Albertine, O Continente Celeste”, um texto dele absolutamente extraordinário e a partir do qual ficámos sempre a acompanhar o seu trajeto de perto. Acho que isso também é importante para os artistas. É bom para nós e para eles discutirmos o trabalho, sermos uma espécie de incubadora para artistas. De resto, este é um projeto que já vem do Nacional com um certo balanço e estou muito expectante.
Já Carla Bolito e Elmano Sanches são dois nomes nacionais que se estreiam agora no São Luiz com criações próprias. A primeira encena “A Arte da Fome”, de Franz Kafka; o segundo trará a peça “Não Quero Morrer”, baseada no filme “Rocco e os Seus Irmãos”, de Luchino Visconti. Que importância tem dar espaço a estes nomes?
Na temporada passada tivemos muita gente que nunca tinha passado por aqui. Como era a minha primeira temporada como diretora artística fiz questão de trazer, numa grande dose, alguns nomes que achava que tinham de passar pelo São Luiz e que isso nunca tinha acontecido. Dentro disto, curiosamente, tivemos um número grande de mulheres – foram 12 mulheres criadoras e isso deixou-me muito feliz. Este ano quero continuar a ter novos criadores para a casa, que é o caso desses mas também do Daniel Gorjão e outros.
E o rácio de mulheres criadoras, durante o ano de 2017, vai continuar elevado?
Sim! Ainda não tenho o número final, mas vai seguramente ser ótimo! Temos muitas mulheres e mulheres muito especiais, portuguesas e estrangeiras. Tenho sempre a preocupação de incluir mulheres criadoras porque, de facto, não é assim tão normal a presença das mulheres como encenadoras, na maior parte das vezes estão em menor número. No ano passado percebi que, de facto, havia muitas mulheres que nunca tinham passado pelo São Luiz e achei que faria sentido que passassem, quer pelo trajeto que tinham, quer por ser o meu primeiro ano.
Falando de mulheres nestas próximas propostas da programação, é preciso que referir Olga Roriz, não apenas porque traz uma nova criação, “Síndrome”, mas porque reforça a ideia de que a dança está de regresso ao palco do São Luiz.
Ainda não se sabe nada sobre o que será este espetáculo, mas será um momento especial, pois além de ser uma estreia da Olga, tem a ver com o tal regresso da dança ao nosso palco. Tínhamos pouca dança e agora estou a tentar reverter isso.
Mas por que é que a dança tinha tão pouca presença na programação do São Luiz?
Foi uma opção porque o Dr. Jorge Salavisa [ex-diretor] vinha da dança e não queria fazer do São Luiz um teatro de dança. Fomos coprodutores do Victor Hugo Pontes e, nos próximos meses, além da Olga, vamos ter o Marco da Silva Ferreira, com “Hu(r)mano” e “Brother”. E na próxima temporada teremos o Paulo Ribeiro, a Clara Andermatt, o João dos Santos Martins. A dança passará a ter novamente um papel importante aqui no teatro, justamente por isso estamos a preparar coproduções e também a vinda de alguns espetáculos internacionais.
Da programação para os próximos seis meses é inevitável falar de mais um espetáculo: “Palhaço Rico Fode Palhaço Pobre”, de João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira, parte integrante do Festival BOCA – Biennial of Contemporary Arts. Este espetáculo levará o São Luiz para fora do seu espaço?
Sim. O João e o Nuno já tinham estado a trabalhar connosco no ano passado, no projeto da Gisela João, e são artistas que muito admiro. Entretanto, no âmbito do BOCA, surgiu esta possibilidade de fazer este projeto sobre o circo, e eles estão a trabalhar muito intensamente sobre isto, que será uma verdadeira homenagem ao circo, com tudo o que o circo tem e não tem, que é um espetáculo sempre envolto em enorme controvérsia. Estou muito ansiosa para ver o resultado final. Estamos agora a ver em que espaço iremos montar a tenda de circo pois este espetáculo de facto não acontecerá aqui no São Luiz, mas antes fora de portas. Isto não quer dizer que queremos esticar o teatro para fora do nosso espaço, mas queremos poder fazê-lo em espetáculos muito pontuais.
Pegando no título do texto de apresentação desta segunda parte da temporada, e com a ideia que referiu no início de que era um teatro em contraciclo, o que pode querer mais para o São Luiz?
Não posso querer mais nada se tiver em conta que o São Luiz cresceu bastante nos últimos tempos. Mas claro que queremos sempre fazer mais e melhor. E há uma área em que estou a apostar muito e que tem a ver com a internacionalização dos nossos artistas. No ano passado conseguimos que o Teatro Praga estreasse em Istambul, fossem ao Brasil, a Paris e depois estreassem aqui. Conseguimos também uma enorme representação de criadores portugueses na música e no teatro nos Chantiers d’Europe, estamos a abrir portas na América do sul. Estou muito apostada em abrir o São Luiz para a produção internacional e em levar a nossa produção lá fora. Mas este é um trabalho longo.