Ao contrário do que pensava determinada figurinha portuguesa caída como de paraquedas na glorous mud das Ilhas Britânicas, o dia 26 de Dezembro não tem nada que ver com exibições de força bruta ou com atividades pugilísticas. É tradição, bem sabemos, que se jogue futebol a seguir ao Natal e que, por isso, ao contrário do que é hábito neste país ensolarado a maior parte do ano, não vemos jogadores, treinadores e afins entrarem de férias dias e dias a fio.
Portanto, depois de amanhã, ainda com confeitos, fitas de encarnado brilhante e flocos de neve enfiados pelo pescoço, as equipas inglesas entram em liça e puxam pela força dos músculos e pela resistência das articulações.
Boxing Day ou St. Stephen’s Day é algo que, em Inglaterra, se perde na noite dos tempos. Ou quase. Dia das caixas, se quisermos traduzir assim. E já vamos à história das Christmas Boxes, que tem muito daquele snobismo inglês com o qual Pierre Daninos gozava desbragadamente nos seus Cadernos do Major Thompson. Ou, ainda segundo ele, Snobíssimo.
O Oxford English Dictionary, comenta: «The first week-day after Christmas-day, observed as a holiday on wish post-men, errand-boys and servents of various kinds expect to receive a Christmas-box». Lá está: essa dos servants of various kinds é mais do que snobe. Enfim, puramente inglês.
Portanto, os serviçais das mais variadas espécies esperavam receber caixas no dia a seguir ao dia de Natal, mais precisamente no primeiro dia útil a seguir ao dia de Natal. Ou seja, era o Natal da empregadagem. Nunca no fim de semana, porque isso bulia em exagero com a mecânica doméstica!
As caixas
As caixas deviam premiar os bons serviços do ano inteiro. Basicamente, como era expectável que todo o bom serviçal estivesse à disposição dos patrões durante o dia de Natal, atribuia-se uma folga no dia seguinte para que pudesse ir visitar a família. Na Inglaterra de 1800, era tudo muito Upstais Downstairs, como nos ensinou a Família Bellamy. Senhores no topo dos edifícios, empregados espalhados pelas caves. Como os tempos do industrialismo foram fortemente generosos para uma elite da sociedade de então, o processo vulgarizou-se – os empregadores passavam para os empregados os restos das festividades. Sobretudo em virtualhas que enchiam as tais caixinhas que iam, por sua vez, alegrar as mesas das classes mais baixas. Não se leia nisto uma crítica: é difícil criticar os hábitos ingleses de hoje, quanto mais aqueles que estavam em vigor há cerca de 200 anos. Christmas Boxes, portanto.
Vejamos: o futebol (e o râguebi, já agora) não veio parar aqui aos trambolhões. Mais, Boxing Day tornou-se até sinónimo de dérbis. Porque, aproveitando a viagem até casa dos seus conterrâneos – alguns vindos até de longas distâncias -, os clubes locais marcavam para esse dia os seus confrontos de forma a que houvesse mais gente em redor dos campos.
Hoje em dia, Boxing Day é quase como o Dia Internacional do Futebol Inglês – afinal, enquanto a maioria dos campeonatos tira folga, os clubes ingleses oferecem-nos bons espectáculos numa jornada particularmente vazia em termos desportivos.
Houve um dia espectacularmente frutuoso na história dos Boxing Days. Foi a 26 de Dezembro de 1963. Reparem nos resultados: Blackpool, 1 – Chelsea, 5; Burnley, 6 – Manchester United, 1; Fulham, 10 – Ipswich, 1; Leicester, 2 – Everton, 0; Liverpool, 6 – Stoke City, 1; Nottingham Forest, 3 – Sheffield United, 3; West Bromwich Albion, 4 – Tottenham, 4; Sheffield Wedenesday, 3 – Bolton Wanderers, 0; Wolverhampton, 3 – Aston Villa, 3; West Ham, 2 – Blackburn Rovers, 8. Dificilmente um natal poderia ser tão generoso para o público. Uma marca espantosa de 66 golos numa jornada que ficou na memória coletiva.
Por outro lado, não se creia que apesar da fleuma, os ingleses sejam imunes às superstições. E, aí, existe a crença de que quem chega ao Natal no primeiro lugar da classificação está destinado a não ser campeão. Já o Daily Mail, decidiu há pouco tempo ver o Boxing Day por outro prisma: escolheu os melhores jogos jamais disputados neste dia. A lista ficou encimada por um Derby County, 4 – Manchester United, 4 (1970), seguida por um Chelsea, 4 – Aston Villa, 4 (2007). Com o pormenor de dois jogadores dos londrinos terem sido expulsos nesse confronto: um deles foi o português Ricardo Carvalho. Também ficou para os registos.