Cultura. Figura do ano: Frederico Lourenço

Enquanto arte, a tradução vive de um pacto entre a erudição e o instinto, uma ciência da intuição, que firma no invísivel uma ponte entre duas línguas, duas tradições imparáveis, que vêem entre elas forjar-se um elo sensível tão mais forte quanto capaz de comunicar os abalos dos seus contrastes.

Frederico Lourenço tem sabido gozar da sã loucura que é o querer preencher com os seus passos as pisadas de titãs. E ao ser distinguido com o Prémio Pessoa merece o reconhecimento de que não falta no seu confronto com textos fundadores como a Odisseia, a Ilíada, a Bíblia, um investimento que se arquiteta com a mesma audácia que revela na sua própria criação literária, nos estudos da literatura grega e no ensaísmo. É como um ofício da imortalidade que este humanista prossegue assim a sua actividade de tradutor, na reinvenção dos degraus que permitem aos homens chegar ao convívio dos deuses.

«Eu era pianista desde criança. […] A minha adolescência passada ao teclado era a preparação (pensava eu) para a vida que eu ambicionava de pianista internacional. As coisas não tiveram o desfecho que eu previra, mas percebo hoje que todas aquelas horas ao piano não foram perdidas, pois preparam-me para aquilo por que serei lembrado depois de morrer, para o contributo que, afinal, veio dar sentido à minha vida: a tradução da Ilíada e da Odisseia de Homero», escreveu Lourenço.

Aos 53 anos, é um dos mais reputados helenistas portugueses, um estudioso dedicado das fontes clássicas gregas e da língua, algo que, complementado pela sua sensibilidade literária, lhe permitiu trazer para a língua portuguesa versões soberbas dos textos homéricos. O reconhecimento do seu percurso chega no ano em que foi publicado o primeiro de seis volumes da mais completa versão da Bíblia em língua portuguesa, feita a partir do grego.

Para lá da defesa da cultura clássica, Lourenço ilustra já uma dobra na figura do humanista. Ele não se limita a carregar o testemunho de uma linhagem milenar, na sua obra e pensamento os aspectos da sabedoria convivem com os de uma certa extravagância, há um empenho no estudo que alimenta uma vertigem de ruptura. Uma das marcas da sua postura é a crítica, e não se pode retirar da sua intervenção cultural a coragem que o leva ir além de um fiel intérprete, a participar enquanto actor num momento decisivo em que a glória imortal parece ser trocada pelo seu oposto: a vã glória da fama.