Cancro. Num país com discriminação, identificar doentes é a “cereja no topo do bolo”

Criação do registo oncológico nacional envolta em polémica. Coordenador nacional diz que a plataforma já existe: os dados serão apenas centralizados. Comissão de dados e Liga Contra o Cancro defendem que se é para haver uma nova lei, deve mudar-se o que está mal

Está instalada a polémica em torno da criação de um Registo Oncológico Nacional. O governo decidiu manter uma segunda versão da proposta de lei sem aceder às últimas recomendações da Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD), que propõe que o número de utente dos doentes e o número do processo clínico sejam encriptados, ou seja, que haja uma espécie de pseudónimo informático para tornar mais difícil que alguém chegue à identificação real dos doentes. Para a Liga Portuguesa contra o Cancro, seguir esta recomendação e garantir o anonimato dos doentes é essencial.

Vítor Veloso, dirigente da liga, defendeu ao i que num país onde a discriminação dos doentes com cancro é um problema real, o risco de os dados serem usados indevidamente aumenta. “É a cereja no topo do bolo”, ironiza. “Apelamos aos deputados da Assembleia da República, a quem caberá a aprovação final, que tenham bom senso.”

nada de novo

Nuno Miranda, diretor do Programa Nacional para as Doenças Oncológicas, explicou ontem ao i que a plataforma que o governo quer criar não traz “nada de novo” – vai aproveitar o sistema do Registo Oncológico Regional Sul (ROR-SUL), cuja base de dados informática foi criada em 1995. O especialista adiantou mesmo que o tratamento de dados foi objeto de diferentes autorizações por parte da Comissão Nacional de Proteção de Dados, decisões que estão disponíveis no site da CNPD.

Segundo i apurou, porém, não foi a lógica da CNPD que mudou. Nas autorizações emitidas nos últimos anos, tratava-se de autorizar aos hospitais a fazerem o tratamento de dados ao abrigo da lei que, em 1988, criou os registos oncológicos regionais.

Agora, com a criação do registo nacional oncológico, a Comissão Nacional de Proteção de Dados foi chamada a pronunciar-se sobre o alcance da proposta de lei do governo, o que não aconteceu em 1988. E é aí que coloca reservas.

A mesma posição tem a Liga Portuguesa Contra o Cancro. Vítor Veloso sublinhou ao i que a liga defende há muito a criação de um registo oncológico nacional até para uniformizar a recolha de dados feita no país, mas o “que está mal deve ser mudado”, diz o responsável, referindo-se ao facto de as atuais bases de dados incluírem dados pessoais dos doentes.

Embora não tenha conhecimento de casos em que os dados guardados nas bases de dados dos registos oncológicos regionais tenham sido usados indevidamente, Vítor Veloso indica que continuam a chegar à Liga todos os anos “centenas” de queixas de doentes alvo de discriminação, pelo que esta informação deve ser encarada como altamente sensível pelas autoridades.

“Temos casos de pessoas a quem os bancos até emprestam dinheiro, mas com juros altíssimos, ou seguradoras que pedem prémios de mais de 2000 euros por ano, valores incomportáveis para os rendimentos no país”, diz o responsável, denunciando ainda situações de discriminação no trabalho. “Em todos os casos tentamos fazer uma mediação entre as partes e comunicamos as situações ao provedor da justiça ou à Entidade Reguladora da Saúde.”

Acessos à base de dados nacional vão ser controlados

Nuno Miranda reconhece que qualquer sistema informático comporta riscos, mas refere que a informação que vai ser coligida já é utilizada noutros registos nacionais na área da saúde, por exemplo o registo monitoriza o tratamento de doentes com VIH. “Qualquer sistema informático tem fragilidades, mas havendo centralização de informação atualmente dispersa por diferentes bases de dados vai aumentar a segurança”, defende o responsável.

Além disso, tal como já acontece no ROR-SUL, todos os acessos à base de dados serão controlados, o que permitirá perceber em cada momento quem acedeu à informação. “Nem penso que o maior risco seja a utilização por bancos ou seguradoras, mas sabemos que na área da saúde existem riscos de venda de informação. Sem querer especular sobre cenários, essas situações são crime e temos a garantia de que todos os acessos serão monitorizados.”

Ao público, tal como acontece hoje, só serão divulgados dados agregados, que vão permitir avaliar diferenças regionais quer na incidência nos diferentes tumores quer na sobrevivência.

O registo nacional permitirá ainda perceber diferenças na sobrevivência ao cancro consoante o tratamento administrado, funcionalidade que só existe hoje no registo oncológico do Sul e que não tem sido aproveitada do ponto de vista epidemiológico.

O balanço dos resultados ao nível de cada hospital é outra possibilidade, mas informação não será disponibilizada ao público, diz Nuno Miranda.

Analisar os resultados dos tratamentos a longo prazo, seguindo o percurso dos doentes ao longo de 20 e 30 anos, são uma das potencialidades destacadas por Nuno Miranda, que considera ainda que uma das principais vantagens será perceber com maior exatidão as assimetrias regionais e até entre tratamentos no público ou no privado, ou entre doentes do SNS e beneficiários da ADSE. “Sabemos que existem desigualdades nos tratamentos, vamos conseguir perceber se estão num nível aceitável ou não”, frisa o responsável.

Nuno Miranda admite que o estigma associado à doença é uma realidade, mas defende que esta informação ajudará o país a tratar e prevenir melhor. “O cancro não se combate com medo, combate-se com informação”, conclui.

Por agora, os trabalhos vão continuar no parlamento, que depois da aprovação do diploma na generalidade em outubro terá de votar a versão final na especialidade.