Os hospitais do Serviço Nacional de Saúde estão a publicar no portal da transparência na contratação pública contratos de compra da medicação para a hepatite C que não correspondem à despesa real do Estado com estes tratamentos. Fontes hospitalares ouvidas pelo SOL admitem que a situação é inédita e resulta da cláusula de confidencialidade imposta pelas farmacêuticas quando chegaram a acordo com o Ministério da Saúde para praticarem preços mais baixos do que os oficiais, com a condição de que esses valores nunca fossem tornados públicos para não influenciarem os preços noutros países. O processo está tão blindado que nem os hospitais sabem exatamente quanto custa a medicação que fornecem aos doentes. Ao mesmo tempo, como se fosse uma adjudicação normal, continuam a seguir as regras de transparência e a publicar informação que não é real sem que os contratos tornados públicos façam qualquer referência a isso. Aliás, os valores entram como quaisquer outros para a monitorização mensal que o site base.gov.pt faz da despesa pública. E entram também para o repositório da contratação pública do portal de transparência do SNS. O que justifica a publicação de valores que não são reais em portais de transparência? A pergunta foi feita ao Ministério da Saúde, que a encaminhou para o Infarmed em conjunto com outras questões. Esta ficou sem resposta.
Os preços oficiais e a «fórmula mágica»
Desde 2014, quando surgiram os primeiros medicamentos que vieram permitir a cura da hepatite C, os hospitais do SNS publicaram 793 contratos no site base.gov.pt. A pesquisa do SOL na base de contratos incluiu os medicamentos sofosbuvir (Sovaldi) e ledipasvir + sofosbuvir (Harvoni) vendidos pela farmacêutica Gilead e os medicamentos dasabuvir (Exviera) e Ombitasvir + Paritaprevir + Ritonavir (Viekirax), da AbbVie.
Os primeiros dois medicamentos, da Gilead, foram comparticipados pelo Estado em fevereiro do ano passado, num momento de forte pressão pública: na véspera do anúncio do acordo entre o Estado e a farmacêutica, um doente interrompeu uma audição de Paulo Macedo no Parlamento pedindo ao então ministro da Saúde que não o deixasse morrer. Já os medicamentos da AbbVie surgiram mais tarde e foram comparticipados em maio deste ano.
Tendo em conta os valores publicados, os hospitais teriam gasto neste período 114,2 milhões de euros com estes medicamentos. Porém, confrontados pelo SOL com estes valores, tanto o Infarmed como os hospitais contactados indicaram que refletem apenas os preços de tabela oficiais, sobre os quais há um desconto adicional das farmacêuticas que faz com que a despesa real seja inferior à publicada. De quanto é esse desconto, não se pode saber. O Infarmed não diz e os hospitais não sabem.
Gestores de hospitais do SNS ajudam, sob anonimato, a perceber o processo. Cada vez que um médico decide prescrever o medicamento a um doente faz o pedido num portal do Infarmed criado para esse efeito. Depois de o tratamento ser autorizado, a informação é enviada à Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), que emite um número de compromisso para o hospital fazer a compra.
Com luz verde superior, o hospital encomenda o medicamento à farmacêutica e é feita a faturação, pelos tais preços oficiais. É essa transação que publicam no site base.gov.pt, como estão obrigados a fazer com qualquer outra adjudicação.
Mas o valor nunca chega a sair. O medicamento é entregue ao hospital e inicia-se o trabalho de bastidores. A empresa emite notas de crédito em função das encomendas feitas pela unidade, crédito que serve para abater o custo em compras futuras apenas do mesmo medicamento. Do outro lado, a ACSS processa o pedido e, tendo em conta os créditos que os hospitais tem e o que foi acordado com a empresa, transfere para os hospitais o valor que devem pagar à farmacêutica para saldar a fatura de cada encomenda. «Como os processos são desfasados e como a nota de crédito da farmacêutica não refere os processos dos doentes a que diz respeito, não é possível cruzar informação para se chegar ao custo real de cada tratamento», explicou ao SOL um responsável financeiro de uma unidade do SNS, que admite que já por várias vezes tentaram descobrir a «fórmula mágica do negócio». Em 2015 chegou a falar-se de um desconto de 50% sobre os preços oficiais, que os responsáveis hospitalares admitem que seja superior. Segundo o SOL apurou, o primeiro acordo com a Gilead pressupunha que o preço fosse diminuindo à medida que aumentava o número de doentes tratados, com efeitos retroativos aos restantes, e tudo isto pesará nas notas de crédito emitidas e no valor transferido pela ACSS.
Do ponto de vista contabilístico nos hospitais, com as contas cada vez mais escrutinadas, a situação acaba porém por tornar-se desconfortável, admitiram fontes hospitalares ao SOL. «As regras da contratação pública têm por princípio a transparência e igualdade de possibilidades entre concorrentes, o que neste caso não se verifica. Quando compramos um paracetamol, faz-se um concurso e adjudica-se à melhor oferta, neste caso não temos qualquer intervenção e não sabemos sequer o encargo final para o Estado».
Para o hospital, o encargo acaba por ser nulo, embora nos processos contabilísticos, dado o desfasamento das transferências, nem sempre isso acontece. Além disso, não foram definidas regras uniformes da contabilização destes encargos nas rubricas orçamentais dos hospitais, pelo que em última instância se não forem expurgados das despesas, podem influenciar os balanços, que se refletem na contratualização com o Estado no ano seguinte.
Se os contratos publicados não permitem perceber que valor está o Estado a pagar, recuando a 2014, antes dos acordos, chega-se aos valores iniciais cobrados pela Gilead quando começou a vender o sofosbuvir em Portugal. O Centro Hospitalar Lisboa Central foi o primeiro a declarar a compra do medicamento, a 581 euros por comprimido. Na altura o tratamento por doente ficava em 97 mil euros, 103 mil com IVA. Hoje o preço oficial do mesmo tratamento é de 41 mil euros. Quanto custa na realidade vai continuar segredo de Estado.