Matias Damásio olha nos olhos, aperta-nos a mão com vigor e pede desculpa pelo atraso. Sem problema nenhum: o trânsito da cidade leva a que sejam cada vez mais frequentes estes introitos nas conversas do dia-a-dia. E as passagens do cantor angolano, de 34 anos, são em modo relâmpago, pelo menos por agora. Em 2017 prometem ser mais demoradas e até é por isso que Matias está à procura de um apartamento, para poder deixar a vida de hotel quando vem a Portugal. Por agora, a promover a edição portuguesa de “Por Amor”, tem que ser assim: Matias Damásio aterrou há apenas dois dias no Aeroporto Humberto Delgado, mas amanhã é outra vez dia de viajar até Luanda para mais concertos e apresentações. O álbum foi editado em Angola há um ano, por altura dos dez anos de carreira de Matias Damásio, mas só agora chega a Portugal. Vem com um alinhamento especial e uma colaboração especial: a de Heber Marques, vocalista dos HMB, no tema “Loucos”. Há 11 anos, Matias Damásio editou o seu primeiro disco. Chamou-lhe “Vitória” porque cumpria o desejo e um sonho que vinha desde pequeno, quando fugiu do bairro da “Lixeira”, em Benguela, para Luanda para tentar ajudar a sua mãe a criar os seus quatro irmãos. Dez anos depois, Matias Damásio é um dos músicos mais reconhecidos da pop angolana, na senda de nomes como Eduardo Paim, Bonga ou Anselmo Ralph.
Esta edição de “Por Amor”, com um novo alinhamento e convidados novos, foi feita para celebrar os seus dez anos de carreira com os fãs portugueses?
Exato. Mas eu já esgotei muitas salas em Portugal, há uns quatro ou cinco anos. Só que quem ia nesses concertos era, sobretudo, a comunidade angolana aqui em Portugal. Já toquei no Centro Cultural de Belém, nos coliseus de Lisboa e do Porto… só que para um meio mais africano, como Cabo Verde, Angola. Só que, como qualquer artista, quero que a minha música chegue ao maior número possível de pessoas. A primeira oportunidade de lançar algo em Portugal foi em 2013, quando o Paulo Gonzo nos convidou para fazer a música “A Outra” e fomos com ele em tournée pelo país. Aí sentimos que, de facto, não éramos só adorados pelos nossos conterrâneos. Percebemos que éramos muito conhecidos em Portugal, mas porque os angolanos, de certa forma, quando iam para Angola, traziam os nossos discos.
Então pode dizer-se que este é o primeiro disco que edita em Portugal?
Editei um disco em 2009 [”Amor É Festa Na Lixeira”], mas não fomos muito felizes. Nem vim cá lançá-lo nem nada. Foi só uma coisa de estar nas lojas. Por isso é que digo que esta é mesmo a primeira edição que faço em Portugal.
Quando começou a vir a Portugal?
Portugal é o nosso destino de sempre! Eu já venho cá há uns dez anos, desde a altura em que gravei o meu primeiro disco. Tinha uns 24 ou 25 anos. Portugal tem uma relação muito forte com Angola: pela própria história; por ser o destino de férias de todos os angolanos; pela comida; porque nos sentimos em casa. Eu conheço o mundo inteiro, mas o melhor país é Portugal: é onde eu me sinto bem. Os meus filhos e a minha esposa adoram. E até os nossos discos são feitos cá. Portugal acaba por ser a nossa janela para o mundo.
Mas só começou a vir para Portugal depois de se tornar cantor?
A minha primeira vinda foi mesmo por causa da música. Vim foi para gravar um projeto que fiz em Portugal com vários artistas, “Vozes para Nguxi”, de poemas do Agostinho Neto cantados por artistas angolanos, dirigido por mim juntamente com a fundação António Agostinho Neto. Foi aí que conheci músicos, produtores, estúdios e depois comecei a trabalhar cá os discos. Na altura o meu sonho era mesmo viajar. Como tive uma vida muito humilde, só comecei a viajar quando entrei para a música.
Mas há dez anos, quer-me parecer, o público português não abraçava tanto as canções e os cantores que vinham de Angola e Cabo Verde.
Ainda não havia ainda o “olho no olho”, a paixão pela música. Esse casamento só aconteceu mais tarde. Felizmente foi um casamento saudável. As comunidades portuguesas em Angola, os que têm trabalhado lá neste período de reconstrução, quando vinham para Portugal tornavam-se também num grande transporte na música angolana. Esse processo também foi extremamente importante. Lembro-me do Eduardo Paim e do Bonga, que já eram conhecidos por cá, mas sem o nível de proporção que depois a música angolana atingiu com o Anselmo Ralph e que acabou por abrir portas para outros artistas, como o C4 Pedro, a própria Pérola. O Anselmo Ralph teve um papel importante porque veio para cá, investiu, concentrou as baterias e acabou por ter sucesso, com uma grande relação forte com os músicos.
Por que acha que o público português se deixou encantar pela música africana?
Acho que, primeiro que tudo, por causa do ritmo. A kizomba é uma música que vem do zouk, das Antilhas, que tem aquele ritmo muito contagiante, que faz com que as pessoas se lembrem do calor e da dança. E, sobretudo, o facto de Portugal e Angola estarem ligados em tudo, praticamente: mesmo que haja, por vezes, algumas situações, Portugal ainda é dos países do mundo que têm mais relações económicas e políticas com Angola. Era mais do que natural que, aos poucos, a música angolana começasse a ter mais destaque. Já tinha acontecido isso em França, por exemplo, que consome música africana há muitos anos. Depois, os artistas de hoje também já têm outra dimensão, já apresentam canções muito bem elaboradas.
A kizomba tornou-se uma moda?
Somos designados como artistas de kizomba, mas eu não acho isso muito correto. Eu tenho a necessidade de mostrar tudo o que é bonito na nossa cultura: as letras e as composições. Não quero ser um artista de kizomba, quero antes que as pessoas ouçam as minhas canções e as admirem por tudo o que são e não só pelo ritmo ou pelo estilo. Kizomba esteve na moda e pode não vir a estar mais daqui a um ou dois anos, mas o que gostaríamos de deixar no mercado era a marca da nossa musicalidade e daquilo que somos enquanto artistas.
A qualidade da produção foi uma preocupação sua desde que começou a gravar discos?
Sempre. Desde o primeiro disco! Eu sou músico: venho da trova e toco violão. A minha canção nasce num ambiente mais puro, mais saudável, mais introspetivo, mais do coração, da alma e da arte. Comecei a escrever canções com a viola e não sei fazer mais nada se não fazer canções! Quero ser considerado um músico e não um artista de kizomba. Sempre foi minha preocupação levar uma mensagem positiva, de amor e, sobretudo, oferecer uma mensagem artística. Inclusivamente neste disco, reeditado um ano depois: disse que queria mostrar a minha música e as minhas emoções. Não estou muito preocupado com o ritmo, é uma coisa que pode não acontecer. Hoje vou à internet e vejo muitas covers de portugueses a fazer a tocar a “Loucos”, só que em outros formatos, noutros estilos. Era esse o meu objetivo: que as pessoas descobrissem as músicas, a intensidade das canções, e que não se fixassem apenas na ideia de ser kizomba.
Quando começou a sua paixão pela música?
Quando tinha dez anos vivia num bairro muito humilde, em Benguela – no bairro da “Lixeira”. Cresci sem televisão e sem rádio porque o meu pai não tinha possibilidade de comprar. Como é que eu ouvia música? Nas ruas havia umas casas que vendiam bebidas alcoólicas, as bebidas fermentadas e tradicionais – a capuca e o kimbombo, por exemplo. Essas casas, para chamar clientes, puxavam de um gramofone enorme. A malta ouvia música a tocar 24 sobre 24 horas! Era música de graça: era só abrir a janela e era de manhã, à tarde e à noite. Esse foi o meu primeiro impacto com a música.
O que se seguiu?
Foi quando fui para Luanda: aprendi a tocar guitarra com o Gito e com o Timóteo, na rua do Bairro. Sempre olhei para a música não só como uma profissão, mas como um meio de escrever sobre o que ia cá dentro. Na altura escrevia sobre a paz. Era algo que me marcava muito: estávamos no meio da guerra civil e o meu pai era militar, ficou muito tempo fora de casa. Foi por isso que fugi de casa para Luanda, para a cidade grande. Quando ouvi os meus amigos a tocar viola, senti que podia ser uma forma de subsistência para mim, até porque passava por inúmeras dificuldades. Achava o máximo os cantores tocarem duas músicas e receberem dinheiro. Era uma coisa que divertia e ainda ganhava dinheiro? Então por que não? Foi aí que me comecei a dedicar ao violão, para poder acompanhar as minhas letras. A viola está comigo desde os meus 14 ou 15 anos, quando fui para Luanda. Depois disso, entrei para os concursos amadores. E ganhei vários. Foi aí que gravei o meu primeiro disco.
Como se dá a saída de Benguela para Luanda?
Saí com uns 11 anos. Fui de catronga – de barco. Menti e disse que queria ser cobrador, mas na verdade queria só passar a ponte para ir para a cidade grande. Era um fenómeno que acontecia muito: fui tentar ajudar a minha mãe, que eu via a passar por muitas dificuldades e com muito sofrimento. Como eu era o filho mais velho, já sentia que podia ajudar – mesmo tendo só 11 anos! Via os outros miúdos a ir e tentei também. Infelizmente não deu certo no primeiro ano: tive que engraxar sapatos, fazer de tudo um bocado para sobreviver. Andei nas ruas de Luanda, voltei a Benguela e depois a minha mãe teve a ideia de irmos todos para Luanda. Mas mesmo assim não me senti bem: fui para a rua de novo, sempre morei nas ruas à procura de uma forma de subsistência, a tocar nos bares, a fazer biscates. Foi uma aventura.
Como é que apareceu a sua primeira viola?
Foi uma oferta, quando eu tinha 16 anos, de um grande escritor angolano chamado Lupito Feijó. Viu-me a tocar numa barraca e deu-me a minha Janine.
É o nome da sua primeira viola? Ainda a tem?
Tenho e essa não a vendo nem por nada! Está guardadinha. Ainda faz algumas canções, porque estou sempre a meter-lhe cordas novas, a trocar. Tem graça, porque quando pego nessa viola saem sempre coisas boas – não sei se é pela relação que tenho com ela. Até tenho violas muito mais caras, com marca xpto, mas aquela Janine não tem comparação. Antes de ter filhos, eu dizia que se tivesse uma menina ia chamá-la de Janine por causa da minha viola. Tenho três rapazes e não tenho meninas. Então a Janine é a filha que não tive.
O que é feito dos seus amigos que o ensinaram a tocar viola, o Gito e o Timóteo?
O Timóteo, infelizmente, já não é vivo. Mas o Gito continua aí. Inclusivamente abriu um estúdio em Luanda, a ajudar os músicos do bairro, a dar apoio.
O Matias foi uma daquelas crianças que são obrigadas a crescer muito rápido.
Era um processo muito complicado. A guerra foi o maior mal que aconteceu na nossa terra. Foram 30 anos de muito sofrimento. Lembro-me de vários episódios tristes de acordar e ter o vizinho morto; ou a criança que brincava contigo já lá não estava; ver vizinhos a enterrar outros vizinhos no quintal. São coisas muito feias. Aprendi muito, cresci muito.
Isso marcou o seu lado artístico?
Sim, acho que sou um pouco disso tudo. O meu compromisso com a vida e com a música tem muito a ver com as coisas que vivi. Mas não sou nenhum herói: como eu, havia muitas crianças que passaram por isso. Não fui, sequer, uma criança em dez. Nem em cem ou mil. As famílias a dispersarem-se e a irem para lugares diferentes à procura de paz era algo muito comum. Isso vai ficar marcado nas nossas vidas para sempre.
Ainda transporta esse sofrimento para as suas músicas? Não falo só nas letras, mas também na forma como interpreta as canções.
Sem sombra de dúvida. Sinto que quando canto, faço-o em nome de muitas pessoas. Canto pelas pessoas que perdi, mas também pelas coisas por que passei. Por um conjunto de sentimentos que invadiram a minha vida durante esse tempo. Canto também pela minha mãe, pelo meu pai, pela minha avó – que já não está viva. Transporto aqui dentro um conjunto de emoções. Quando pego no violão e canto é uma tradução de vários sentimentos.
Mas mesmo com uma infância e adolescência difíceis e tão marcantes, não deixa de se sentir uma grande alegria de cantar. Donde vem essa alegria?
Uma das nossas dádivas, enquanto angolanos, é sermos alegres. De certa forma, aprendemos a fazer festa com pouco e com muito, ou seja, somos pessoas muito otimistas: uma das nossas características é o acreditar. A dança faz parte de nós. Os nossos avós cantam e dançam nos óbitos! Nos momentos mais tristes na nossa cultura africana há dança e há música. Aprendemos a fazer festa para esquecer o sofrimento. Foi assim que apareceram as primeiras canções, ainda no tempo da escravatura: o semba e o batuque vêm de momentos muito tristes, mas isso não faz com que sejam danças e músicas tristes. Pelo contrário: optamos por cantar e dançar para esquecer as malambas da vida.
As malambas são os problemas?
São os problemas da vida. Cantamos e dançamos para esquecer. Aprendemos isso com os nossos antepassados. Quando havia fome em casa, era pegar nas panelas e bater e fazer uma festa. Era uma coisa fantástica. A alegria que vais encontrar sempre nas nossas canções vem daí, da forma como os nossos antepassados decidiram lidar com o problema.
Temas como “Beijo Rainha” ou “Sol e Lua” mostram que ainda está bem próximo das raízes clássicas da música angolana? Mostram que ainda se lembra da música que saía das grafonolas das lojas de bebidas?
Sem dúvida. O semba é a nossa raiz. E falou aí de duas canções que são muito nossas por causa do ritmo. Aprendemos com o Angola Ritmos, um dos grupos muito famosos em Angola, com o Carlitos Vieira Dias, Liceu Vieira Dias, Filipe Mukenga, o próprio Bonga, que fizeram canções que traduzem tudo o que aprendi com os meus avós. É o ritmo, a canção, a força do batuque africano.
Mas o Matias também mostra ter ouvido para uma sonoridade mais contemporânea e moderna, ao convidar nomes mais novos da música angolana para o seu disco.
Claro que estamos abertos ao mundo! Vivemos a música do mundo inteiro e Angola recebe de tudo um pouco. Ouvi o “Jardins Proibidos” do Paulo Gonzo há muitos anos em Angola; o Rui Veloso… E somos da geração da Internet, do YouTube (risos).
É pela Internet que chega ao Latón Cordeiro e ao Prodígio (Força Suprema)?
São fenómenos que se ligam e que casam bem com a minha música. A nossa intenção é tornar a nossa música, com o batuque, muito atual e aberta às tendências do mundo. Por exemplo, também pusemos sopros e violinos neste disco, que são instrumentos que nem fazem parte da nossa cultura musical, mas que hoje são importantes para dar outra vida ao semba.
Vamos ter concertos seus em Portugal em breve?
Neste momento ainda estamos numa fase de fechar as datas, mas a partir do próximo ano, claro que sim. É questão de ficarem atentos às redes sociais porque vamos ter muitas novidades. Vamos voltar aos coliseus porque quero fazer concertos bonitos e memoráveis. O que eu mais adoro é estar no palco.
Como são os seus concertos?
Têm canções de amor, com muito ritmo e emoção. São uma festa completa, um buffet de músicas de várias gerações. É sempre muito bom cantar para quem gosta de nós: os meus fãs compreendem-me, compreendem a minha linguagem.
Aposto que há uma música que lhe custa muito cantar: “Papa”, dedicada ao seu pai, Raul Damásio.
E já chorei inúmeras vezes a cantá-la ao vivo. É uma canção muito honesta e uma homenagem mais do que merecida ao meu pai. Ele teve muita paciência connosco: apesar de ter estado na guerra, quando voltou soube compensar, e muito bem, o carinho que nós não tivemos quando ele esteve ausente. Eu hoje tenho filhos e, felizmente, a minha profissão permitiu-me ter uma vida financeira saudável, ter os meus filhos a estudar nas melhores escolas e a viajar para os melhores lugares, e eu não tive isso. Mas estou muito longe de ser como o meu pai, que era uma pessoa que não tinha dinheiro, mas esteve perto de nós em todos os momentos, ao contrário de mim que, infelizmente, passo muito tempo longe dos meus filhos por causa da minha profissão, apesar de lhes poder proporcionar o que não tive. Só comecei a dar mais valor ao meu pai quando tive os meus filhos e a aperceber-me que, por mais dinheiro que ganhe, nunca vou conseguir ser como ele. A profissão dele e a música dele foram os filhos, deu-nos todo o amor e todo o carinho. Quando era miúdo, eu dizia que queria que ele fosse rico, porque via os outros pais a mandarem os filhos de férias, a comprarem-lhes brinquedos, skates, bicicletas, a fazerem festas de aniversário. Eu nunca tive isso na infância, mas sempre tive um abraço, um carinho, um beijinho e, provavelmente, se não tivesse isso dele, não teria o equilíbrio que tenho.
Ele ainda está consigo?
Está vivo. Está jovenzinho. Ya, está tranquilo (sorri).
O Matias fugiu de Benguela para Luanda e logo nessa altura teve a sensação que poderia encontrar na música o seu caminho. É interessante que percebeu isso quando ainda era pequenino, com 11 ou 12 anos. Mas foi mesmo a música que acabou, se calhar, por salvar-lhe a vida…
E salvou mesmo. Tudo o que tenho hoje e tudo o que já conquistei – o respeito, sobretudo, o carinho de milhares e milhares de pessoas, foi pela música. Foi a música que me proporcionou tudo. A mim e à minha família. O meu pai dizia: “Onde está o teu coração é onde está tua riqueza.” Foi esse coração que eu segui e é esse o conselho que eu deixo às pessoas: acreditem nos vossos sonhos, porque, às vezes, perdemos muito tempo a dedicar-nos a coisas que não são assim tão importantes. Seguir o nosso coração deve ser a nossa primeira prioridade. Quando fazemos com amor e acreditamos naquilo que é a nossa luz, tudo é melhor. Eu acreditei na viola e a viola salvou a minha vida.