O roubo agrícola e pecuário é cada vez mais uma preocupação para milhares de produtores de todo o país. São vários os esquemas usados por quem tenta lucrar com o trabalho dos outros, mas o principal problema, defendem muitos agricultores, está na falta de controlo no setor agropecuário e na distribuição. “Só roubam se houver quem compre”, disseram ao i diferentes responsáveis desta área.
Os dados da Operação Campo Seguro da GNR permitem ter uma dimensão do problema. Anualmente, entre os dias 1 de novembro e 31 de janeiro, os militares intensificam “o patrulhamento nas explorações agrícolas, com o objetivo de prevenir o furto de produtos agrícolas, o furto de metais não preciosos e ainda situações de tráfico de seres humanos”, explicou fonte desta força de segurança ao i.
Só em novembro, a GNR organizou 8749 ações de sensibilização, tendo sido registados 46 crimes e 122 contraordenações. Vinte pessoas acabaram por ser detidas, e 37 identificadas. Segundo os dados fornecidos ao i, Braga foi o distrito que registou mais ocorrências criminosas (27), seguido por Beja (6), Santarém (4), Portalegre (3), Viseu (3). Évora (2) e Guarda (1). Dez pessoas foram detidas em Santarém, cinco em Beja e cinco em Braga.
Neste período, a GNR apreendeu 3,74 toneladas de azeitona em Beja, 20 quilos de cobre em Braga e 330 quilos de azeitona em Portalegre. Se os números são expressivos, os prejuízos de quem é roubado não ficam atrás. “Estamos a falar de prejuízos de centenas de milhares de euros. Para além do roubo, temos depois toda a logística que tem de ser implementada constantemente para evitar os furtos. Temos de tomar medidas para que não torne a acontecer e tudo isso custa muito dinheiro”, explicou ao i o eng.o Pedro Silveira, membro da direção da União da Floresta Mediterrânica (UNAC).
O responsável adianta que tem havido trabalho conjunto dos produtores com as autoridades policiais, mas a jusante. “O problema grave que temos não é com a GNR, mas sim com os tribunais. As pessoas são apanhadas em flagrante e, muitas vezes, são libertadas. Há pouco tempo foi noticiado o desmantelamento de uma rede no distrito de Setúbal com 13 ou 14 pessoas. Estão identificadas, todos sabem quem são. No dia a seguir, depois de terem sido ouvidos em tribunal, já estavam todos na rua”, explica Pedro Silveira, que descreve o modus operandi habitual. Regressam ao “mercado”, a comprar e vender bens roubados, por vezes com outras pessoas a representá-los como testas-de- -ferro. Laranja, azeitona, castanha, pinhas, gado, cortiça e fios de cobre são os produtos que mais circulam por mãos alheias. Nestas páginas contamos-lhe como.
Em face do número de roubos de laranja no distrito de Faro, a GNR decidiu criar a Operação Citrino Seguro. Esta consiste no “patrulhamento nas explorações agrícolas onde se realizaram campanhas de apanha da laranja, estabelecendo-se contactos com as associações de produtores tendo em vista a agilização da intervenção policial, bem como ações de fiscalização nos acessos às explorações, locais de armazenagem e pontos de venda junto de vias rodoviárias, nestes casos em coordenação com a ASAE”, explicou fonte oficial da GNR.
A última operação teve lugar entre os dias 27 de julho e 15 de agosto de 2016 e contou com a participação de 57 militares. Estes realizaram 49 ações de sensibilização, detiveram três pessoas e identificaram quatro, elaboraram quatro autos de contraordenação e aprenderam cerca de 170 quilos de laranjas.
Mas nem como uma ação de força os produtores acreditam que a ameaça cesse. “Com a Operação Citrino Seguro notou–se alguma acalmia. E até levou à detenção de um grupo em Tavira, apanhado em flagrante (…) Mas as autoridades, por mais boa vontade que tenham, não conseguem resolver o problema. Há que ter em conta outros fatores, como a falta de trabalho, o baixo rendimento e a sensação de impunidade perante a lei. Tudo somado faz com que haja um incentivo ao roubo e à sua repetição”, disse ao i Horácio Ferreira, membro da Cooperativa Agrícola de Citricultores do Algarve (Cacial).
Horácio Ferreira admite que em 2016 houve mais queixas do que no ano anterior. “Os roubos iniciam-se na altura em que a laranja começa a ter cor e a saber bem, mas há casos em que os frutos são roubados mesmo antes disso”, explicou o responsável, referindo que o furto tem como objetivo a venda nacional e internacional, principalmente em Espanha.
“Se somarmos todos os roubos, chegamos a uma quantia muito elevada. Não sei precisar valores, mas chega-se seguramente a uns largos milhares de euros. Não sabemos como controlar isto, só se tivermos um guarda no pomar a tempo inteiro”, remata.
O ano de 2016 fechou com a notícia da detenção de 14 pessoas e a apreensão de uma tonelada de azeitonas, furtadas na zona de São Manços, distrito de Évora. Em Ferreira do Alentejo, Beja, foram apreendidas mais 20 toneladas de azeitona furtada. Já esta semana, na mesma zona, houve mais três detenções e 330 quilos de azeitona apreendida.
Mais uma vez, as notícias da atuação policial não tranquilizam os olivicultores, que são dos que mais sofrem com o furto agrícola – o roubo da azeitona não tem parado de crescer.
“Tem havido um crescimento enorme do furto da azeitona – não por existirem mais ladrões, mas porque há menos azeitonas”, explica José Maria Falcão, perito da Confederação dos Agricultores Portugueses (CAP).
A apanha começou bastante mais tarde em Espanha e isso fez com que os lagares espanhóis começassem a aceitar azeitonas de qualquer origem, adianta o responsável, que apela a maior controlo na circulação de mercadorias. “Há cada vez menos autoridade neste país – tudo se rouba, tudo se transporta, tudo se transaciona nas barbas da autoridade e não se pedem responsabilidades”, sublinha José Maria Falcão.
“No último mês tem sido uma coisa diabólica. Já existem bandos organizados de ladrões, grupos de dez, 20, 30 pessoas que invadem os olivais durante o dia ou a noite, apanham a azeitona e transportam-na para um centro de receção entre Elvas e Campo Maior. Não sabemos se está ou não legal. Nem a ASAE sabe nem a Autoridade Tributária dá uma resposta sobre o assunto (…)”, relata o responsável, que se limita a explicar o que todos comentam. Os centros de receção não emitem um único documento de entrada ou de saída, são feitos pagamentos em que não há fatura, não há guia de remessa, não há nada. “A GNR, com os meios que possui, não consegue lidar com o problema. Já houve agricultores ameaçados, as pessoas têm medo de ir aos seus próprios olivais.”
E para além de temerem os criminosos, os agricultores lidam com outro problema tão grave quanto este: o prejuízo financeiro. “Falamos de dezenas ou centenas de milhares de euros. (…) Só um grande produtor desta zona [Elvas e Campo Maior] fala em mais de 100 mil quilos roubados. Se multiplicarmos por 50 cêntimos o quilo, veja o prejuízo que aqui está. No meu caso roubaram 20 ou 30 toneladas e todos os outros olivicultores se queixam do mesmo”, explica José Maria Falcão, que defende que Portugal devia seguir o exemplo de Espanha e implementar leis mais rigorosas no setor e reforçar a fiscalização.
“Todos os ladrões só roubam se houver alguém que compre o produto. Se esses postos de receção forem obrigados a estar completamente legalizados, a pagar os seus impostos e a ter documentação sobre tudo o que entra e sai, de forma a existir uma contabilização da matéria, começam a existir fiscalizações bem feitas. Nisso temos de ser como os espanhóis. Cá, quando os produtos agrícolas são transportados para o primeiro local de transformação, não precisam de nenhuma guia de remessa. Essa ausência de responsabilização, de um documento legal, impede, em parte, a GNR de atuar. Já houve juízes que questionaram o porquê de os agentes da autoridade estarem a autuar certas pessoas a quem chamam ladrões por não terem nenhum documento, quando aos próprios agricultores não é exigido esse testemunho. Por isso, há aqui um vazio legal que permite tudo. E tem de haver uma fiscalização apertada ao setor transformador: nós sabemos perfeitamente quais é que abrem as portas a este tipo de furto.”
Outro produto que tem sido alvo de repetidos furtos é a castanha. O aumento do roubo tem sido exponencial e os produtores já não sabem como travar os delinquentes. O “saque” tende a começar em meados de novembro, em zonas em que muitos produtores são idosos e onde parece imperar a máxima de que o crime compensa.
“Há falta de mão-de-obra em zonas que têm pouca gente e a maior parte da população é idosa. Na altura da apanha chegam pessoas do estrangeiro para ganhar a jorna. Só que agora estão a chegar pessoas que já não querem trabalhar para receberem o dia, ganham mais roubando um saco de castanhas do que a andar um dia inteiro a trabalhar.”
É esta chegada crescente de ladrões em vez de trabalhadores que tem deixado os produtores preocupados. “Existem dezenas de viaturas de ladrões, com carrinhas cheias, à beira das estradas. Uma pessoa de 70 ou 80 anos reclama com eles e é maltratada. Se oferecer resistência, chegam a agredi-la”, revelou ao i uma fonte do setor que não quis identificar-se.
Nesta área, o problema é o mesmo que nas restantes: o setor compactua com esta atividade criminosa ao comprar castanha roubada e as autoridades não conseguem impor a lei. “Como são roubos feitos em pequenas quantidades, as pessoas não querem andar em tribunais a arrastar a situação. Há também furtos em armazéns que depois são diluídos nos roubos de menores dimensões feitos nas propriedades. A lei acaba por os proteger, só se consegue acabar com o problema apanhando-os em flagrante. Mas, mesmo assim, os ladrões podem dizer que estão a apanhar para comer”, diz a mesma fonte.
Nestes casos, o crime não é furto mas invasão de propriedade privada. “Ninguém pode meter uma pessoa na prisão por andar a apanhar um quilo de castanhas para fazer o magusto em casa. E os produtores também não podem fazer nada porque chegam a tribunal e são mandados para casa.”
Para Pedro Silveira, da União da Floresta Mediterrânica, o roubo da pinha é outro dos grandes problemas com os quais as autoridades têm de lidar.
Apesar de ter sido recentemente implementada legislação mais apertada para este produto especificamente, o número de roubos voltou ao que era nos últimos anos. Isto porque, segundo o responsável, as pessoas já sabem como funcionam as novas normas e aproveitam os “buracos” na lei para continuar a roubar.
“Deixou de ser uma legislação criminal para ser administrativa. As pessoas não são presas, mas sim multadas por andarem a transportar pinhas que não conseguem provar que são delas. (…) No momento em que a alteração foi introduzida, houve um retrocesso nos furtos mas, hoje em dia, já está praticamente igual ao que era: as pessoas já conhecem a legislação e já sabem o que podem ou não fazer de forma a não serem apanhadas, usando documentação falsa e aproveitando a falta de fiscalização.”
Os esquemas são vários. Uma pessoa pode dizer que é dona de um pinhal e, de repente, produz uma grande quantidade de pinhas. “É claro que esse valor não é real, mas ninguém fiscaliza a propriedade, que provavelmente produz apenas 500 quilos. É evidente que o resto da pinha veio de outro lado, mas ninguém vai ao local inspecionar”, denuncia Pedro Silveira. “As pessoas sabem que se fizerem assim não são apanhadas e volta tudo ao mesmo.”
O responsável acredita que a situação pode melhorar e que o essencial é ter pessoas no terreno a realizar fiscalizações. No entanto, o membro da direção da UNAC afirma que essas operações vão continuar a ser dificultadas por algo que ninguém consegue controlar: as novas tecnologias. “Antigamente era complicado saber onde estava a GNR. Hoje em dia, com um telemóvel, é muito fácil ter essa noção.”
O roubo da cortiça é dos mais falados nos meios de comunicação nacionais e isso deve-se principalmente à quantidade de furtos que vão ocorrendo durante o ano. No final do ano passado, por exemplo, foram detidas 13 pessoas por furto e receção de cortiça roubada no distrito de Setúbal. As detenções surgiram na sequência de várias buscas domiciliárias na região.
Recorde-se que Portugal tem 730 mil hectares de montado e é o maior produtor mundial de cortiça. Os produtores dizem que este é um problema que tem vindo a crescer nos últimos anos e apelam também a uma maior fiscalização, principalmente junto de quem compra o produto. “Os prejuízos variam consoante a qualidade da mercadoria – quando é roubada cortiça de qualidade, que no mercado pode valer cinco euros o quilo, o roubo pode atingir um valor bastante elevado”, explica Pedro Silveira.
“Quanto menos trabalho der e mais render, melhor. Essa é sempre a lógica.” Para travar os furtos, a GNR pediu no verão passado que os produtores começassem a colaborar com as autoridades, estando atentos aos veículos que passam junto às propriedades e ao comportamento das pessoas que trabalham nas terras.
“O gado é um problema gravíssimo. Tudo se rouba: porcos alentejanos que estão no montado a comer bolota, ovelhas, vacas, é o que calha”, explica Pedro Silveira.
O roubo de animais acontece um pouco por todo o país mas, segundo o responsável, o Norte é a região mais afetada. “As quadrilhas de ladrões de gado estão muito ligadas aos matadouros clandestinos, que existem mais no norte do país. Os animais são apanhados, depois são mortos nesses matadouros e a carne é colocada no mercado. Até para os supermercados esta carne pode ir, mas isso normalmente não acontece, pois têm uma cadeia bem organizada. Mas as cadeias de abate ilegal chegam a fornecer restaurantes e estabelecimentos do género”, alerta.
Também o furto de cobre traz muitas dores de cabeça aos agricultores. “Para roubarem meia dúzia de tostões estragam máquinas de rega ou postos de transformação de eletricidade, que são muito caros. Roubam 100 euros de cobre e provocam um estrago de milhares de euros. Além disso, se roubarem o cobre de uma máquina de rega durante a altura em que esta está a ser utilizada, podem estragar 30 ou 40 hectares de milho, por exemplo. É um prejuízo de dezenas de milhares de euros”, explicou o mesmo responsável.