“O que o homem deixa quando morre – os seus escritos, os objetos culturais que criou, a memória da sua palavra, dos seus gestos ou do seu sorriso naqueles que com ele viveram, os filhos que gerou –, tudo exprime uma realidade que está para além do corpo físico, de um certo corpo físico que esse homem usou para viver o seu limitado tempo pessoal de ser homem.” Esta visão sobre a vida finita e o que cá deixamos, de Daniel Serrão, era já há muito o destaque do seu site na internet, um álbum digital de memórias e textos que lhe foi oferecido pelos filhos. Há dois anos, um acidente roubou-lhe a ainda muita energia. Atropelado perto de casa, numa passadeira, nunca recuperou completamente a consciência e a palavra, duas das suas principais marcas ao longo de mais de oito décadas de vida.
Daniel Serrão morreu na madrugada de domingo, aos 88 anos, anunciou a família. Teve seis filhos – o mais conhecido, Manuel Serrão. Deixa também dez netos. Em 2010, numa entrevista ao i, dizia que então, aos 82 anos, o tempo que desejava – depois de uma vida longa e cheia – era para os ver crescer.
Nascido a 1 de março de 1928, formou-se em Medicina com 17 valores, acabando por especializar-se em anatomia patológica. Cedo integra a Faculdade de Medicina do Porto, onde começa a dar aulas nos anos 60. Em 1971 assume a direção do Serviço Académico e Hospitalar de Anatomia Patológica. Com lugar prestigiado na faculdade, quando chega o 25 de Abril é saneado junto com outros docentes. Durante 12 meses, até o Conselho de Revolução reverter a decisão, é proibido de entrar na faculdade. Viria a retomar o lugar e a dirigir o Serviço de Anatomia Patológica do Hospital de São João durante 30 anos.
Antes do acidente, em outubro de 2014, um dos seus últimos textos foi o prefácio da biografia do cirurgião pediátrico António Gentil Martins, “Ser Bom Aluno não Chega”. Nesse texto, Serrão regressa à tal ideia do tempo finito que sempre teve presente ao longo da vida, lembrando como os gregos representavam o deus do tempo, Cronos, alimentando-se dos seus próprios filhos, e como a arte está em transformar Cronos em Kairós, tempo biológico em tempo de oportunidades. “Na verdade, todos somos feitos para sermos filhos vivos no tempo cronológico e neste tempo acabaremos, um dia, por deixar de viver”, escreveu. Gentil Martins lembrou ontem ao i o médico, de quem era amigo desde os anos 70, como um homem “independente, honesto e sério”. Em 1977, quando a Ordem dos Médicos se reconstituiu, depois do movimento revolucionário para que passassem a existir apenas sindicatos, Gentil Martins – então eleito bastonário – lembra que Serrão foi o seu braço direito na elaboração do código deontológico dos médicos. Questões como a defesa da vida e do embrião humano e o combate ao encarniçamento terapêutico estiveram sempre entre as suas preocupações enquanto médico, professor e estudioso da ética. Em 1976 foi o precursor do agora tão falado registo oncológico nacional ao criar o primeiro registo de doentes com cancro no distrito de Vila Real. O objetivo era perceber melhor a incidência da doença e melhorar rastreio e prevenção.
Em 2010, em entrevista ao jornal i, dizia ser formidável o tempo da morte – se os médicos o soubessem acompanhar e já tivessem feito as pazes com o seu próprio fim, como era o seu caso. “Comecei a fazer autópsias de cadáveres ainda antes dos 20 anos. Pegava num bisturi, abria um cadáver, tirava-lhe as vísceras. Como poderia ter problemas com a minha morte? O convívio do patologista com o corpo morto dá-lhe noção de que a morte é um acontecimento natural e até está geneticamente condicionado.” Crente, e até membro da Academia Pontifícia para a Vida, círculo de conselheiros do Vaticano em matérias de bioética, acreditava que depois do Papa-razão Bento xvi viria de novo um Papa-coração. Acertou. O destino acabou por ser-lhe duro. Distinguido inúmeras vezes, deixa uma obra vasta, a maioria dos textos disponíveis online em danielserrao.com.
O funeral sai hoje pelas 9h45 da Igreja da Lapa, no Porto.
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