1.Sábado foi um dia triste para Portugal. Um dia triste para todos os portugueses, desde a esquerda à direita, independentemente da filiação ideológica ou partidária. Mário Soares pela sua força (física e intelectual), pela coragem inexcedível, pela personificação dos valores democráticos, que foi – e pela espiritualização do valor da liberdade e da tolerância, que e é.
2. Ao longo do fim de semana já tudo foi dito sobre o percurso singular, histórico e vitorioso (mesmo apesar ou para além de algumas derrotas circunstanciais) de Mário Soares – a evocação foi feita (obrigado RTP pelo magnífico serviço público que prestou ao retransmitir o debate histórico entre Mário Soares e Álvaro Cunhal, logo no sábado à noite); os encómios foram numerosos, embora sempre insuficientes para honrar o legado de Mário Soares. O país ficou, e está, de luto. Pela primeira vez desde há muito, gerou-se uma verdadeira unanimidade nacional.
3.E esta unanimidade nacional é verdadeira ou fingida? Serão lágrimas sentidas ou meras lágrimas de “crocodilo”, de mera conveniência? Julgamos que se trata de uma unanimidade verdadeira e uma tristeza sentida. Porque os portugueses percebem que os méritos de Mário Soares, o que Mário Soares conquistou para todos e cada um dos portugueses – ultrapassa largamente os seus erros e decisões menos felizes (algumas incompreensíveis) que tomou ao longo da sua carreira política.
4.Porque Mário Soares nunca se assumiu como um santo ou uma figura acima dos seus pares – um dos méritos desta figura eterna da nossa democracia foi o ter assumido a sua dimensão humana. Era um homem como qualquer outro – com as suas excepcionalidades e os seus defeitos próprios da sua condição humana (até a vontade para “descansar os olhos” um pouco, mesmo em cerimónias oficiais).
5.No que respeita ao legado político de Mário Soares, podemos sintetizá-lo em quatro pontos, que releva o essencial e minimiza acidentes de percurso; que salienta a sua dimensão estrutural, esquecendo erros conjunturais, já mesmo ultrapassados:
1)Uma democracia pluripartidária, competitiva, tolerante e sem exclusões sectárias. Mário Soares lutou contra a ditadura, lutou pela liberdade e pelas liberdades. Pela liberdade política, ou seja, pela consagração constitucional de um regime democrático, em que é o povo que escolhe os seus governados, escrutina a sua actividade, fiscaliza os actos do poder político.
E pelas liberdades: liberdade de pensamento, liberdade de consciência, liberdade de culto religioso, liberdade de informação, liberdade de ensino, liberdade de imprensa. Enfim, liberdade para o ser humano se afirmar nesta sua, tão radical quanto inquietante, condição. Mário Soares sabia ( o que parece ser hoje desconhecido para muitos) que a primeira será sempre impossível sem as segundas: a Liberdade política não passaria de um desejo vão sem as segundas, as liberdades concretas dos indivíduos, ou melhor, dos cidadãos (os indivíduos integrados e participantes na vida da comunidade política);
2) Mário Soares lutou contra um regime autoritário, anti-liberal de direita, que diluía o indivíduo na Nação; Mário Soares lutou contra o programa de implementação de uma ditadura sanguinária, autoritária, totalitária, anti-liberal de esquerda, defendida pelo PCP. Mário Soares lutou com o mesmo empenho e dedicação contra Oliveira Salazar e contra Álvaro Cunhal.
A seguir ao 25 de Abril, Mário Soares foi maior do que a história. Foi o maior de todos os nós: se não fosse Mário Soares, teríamos inscrito um período mais do que negro da nossa História. O que seria Portugal hoje? Talvez já não existíssemos como Nação independente – o PCP seria o mero executante das indicações políticas da União Soviética, vendendo o nosso País de acordo com as conveniências da “internacional operária”, que é o mesmo que dizer, do imperialismo social-fascista sanguinário. Orgulhamo-nos de, apesar das dificuldades, termos avançado nos últimos 40 anos, como nação e como civilização – tal só foi possível porque os comunistas nunca conseguiram tomar o poder, tirando esse acidente histórico que se chama Vasco Gonçalves (e que curiosamente os manuais de Histórica teimam em absolver, esquecendo o seu Governo trágico, cuja factura ainda pagamos!).
E quem venceu os comunistas, reduzindo-os a uma força de protesto permanente e profissional? Mário Soares. É verdade que contou com a ajuda de vários outros, todos empenhados em evitar que Portugal acabasse como a Cuba da Europa – mas a força da convicção e a convicção da força de Mário Soares foram determinantes;
3) Mário Soares amava a liberdade e sabia que a liberdade política implica necessariamente que as várias correntes de pensamento sejam devidamente representadas. Quando alguns dos seus camaradas políticos insistiam que o sistema partidário surgida no pós-25 de Abril deveria acabar na esquerda – Mário Soares realizou todas as diligências possíveis e criou condições objectivas para a afirmação institucional de partidos de centro-direita e de direita democrática.
Ao repudiar a violência e a intolerância do PCP, Mário Soares deu ânimo para a consolidação do PPD e convenceu Diogo Freitas do Amaral a assumir a liderança do CDS/PP. Isto quando todos ostracizavam o então Professor da Faculdade de Direito de Lisboa por conotações familiares e afectivas ao Estado Novo – o que mostra a dimensão humana de Soares. Hoje, tende-se a avaliar as pessoas pelas suas visões políticas, partidárias ou ideológicas, colocando-se-lhes etiquetas. Resultado: geram-se divisões indesejáveis e ridículas. Mário Soares reconhecia as pessoas pela sua personalidade, pela sua inteligência, pela sua bondade, pelo que eram verdadeiramente, para além das opções partidárias – Soares não era sectário, apesar de acreditar piamente nas suas convicções.
E a ironia é que foi Mário Soares que permitiu a afirmação das ideias liberais, de economia aberta e competitiva, do capitalismo em Portugal: seria Mário Soares a aplicar as ideias preconizadas pelo PPD e até pelo CDS nos seus programas fundadores, ao longo da década de 80, nas suas passagens governamentais. Conclusão: sem Mário Soares, o centro-direita não se teria afirmado em Portugal – nem institucionalmente, nem programaticamente.
4)Mário Soares gizou as coordenadas estruturais da nossa política externa. Sendo socialista, Mário Soares sempre se afirmou como atlantista, reconhecendo a preponderância da nossa amizade com os Estados Unidos da América. A relação bilateral dos EUA não pode sequer ser posta em causa – antes aprofundada e desenvolvida com ganhos para ambos os países. Por outro lado, Soares deu um impulso decisivo e afirmou a nossa vocação europeia: com ele, entrámos na Comunidade Económica Europeia, em 1986, depois feita Comunidade Europeia e União Europeia. Sem esquecer a ligação ao Brasil e a África. Portugal afirmou, pois, uma política externa que o afirmou no plano internacional como país civilizado e moderno. Também na política externa, Mário Soares derrotou em toda linha o PCP, afastando-o do poder e tornando-o o programa político do PCP (as suas teses) até inconstitucionais à luz de uma interpretação actualista.
Para os amantes da liberdade, haverá feito mais notável do que derrotar, em toda a linha, o PCP? Evitando que Portugal se tornasse um país comunista? Obrigado, Mário Soares!
7.Em entrevista recente, o ex-Presidente da República afirmou que uma das suas maiores inquietações era o mistério de Deus, sendo agnóstico. Pois bem, que Deus o tenha recebido muito bem entre os seus: que a sua inquietação se tenha esclarecido, tornando-se quietação revelada.