Sob a condição de reflectir a época, uma peça de teatro que investigue este tempo, lhe vire nem que seja os bolsos, logo dará por si intrigada com uma abundância tal de sinais desconexos, souvenirs de um mundo à deriva, traças atravessadas por alfinetes por ociosos coleccionadores de lepidópteros, notas em guardanapos que exprimem consciências revirando o lixo. Assim, a peça poderá ser obrigada a ver-se livre de toda a elevação, tornando-se patética e, nessa mesma medida, inspirada e genial.
Há momentos em que “A Estupidez”, do argentino Rafael Spregelburd, parece recitar o poema de Jorge de Sena em que este tão decisivamente nos interpela: “Que coisas sois? – se sois como que gente,/ se as vozes imitais, se olhando olhais,/ se os gestos de fingir com que adorais/ os mesmos são de a vida estar presente?// Que coisa sois? – que o mundo humanamente/ entre vós e vós próprios limitais?/ Se é de outrem essa morte que matais/ quando morreis temendo-a frente a frente?// Que coisa sois? – Menos que humanos, vis,/ viscosos, fluidos e crustáceos, cães/ paridos sem pecado pelas mães/ que o súcubo emprenhou, sois de raiz// faca sem lâmina a que falta o cabo,/ que a quem se abaixa se lhe vê o rabo.”
Depois de uma encenação de “A Modéstia”, em 2014, os Artistas Unidos levam à cena, a partir de hoje e até 25 de Fevereiro, outra das sete comédias a que o autor de 46 anos chamou “Heptalogia de Hieronimus Bosh”, um ciclo inspirado nos “Sete pecados mortais” do pintor flamengo. Esta é a quarta peça do ciclo, apresentada como a peça-catástrofe, uma que nasce de um tempo estúpido, um em que ninguém se ouve, e os instintos começam a inquinar, com o dinheiro colocado ao centro, como um ralo por onde tudo, converge desalmadamente.
Com o mundo a rodar num sobe e desce de carrossel ao som de uma música estrídula e repetitiva, restam-nos os ambientes de fundo padrão, as divisões do espaço-lixo. E que imagem mais ilustrativa das vidas caídas à beira da vertigem do que os quartos de motel dos arredores de Las Vegas. É aí que a acção se desenrola. Tudo encafuado no palco, como na nossa cabeça, com as piscadelas de olho ao road movie. Num alucinante entra e sai, a encenação de João Pedro Mamede não falha uma batida do metrónomo, tem um pulso endiabrado. São cinco as histórias, correm em simultâneo, trespassam-se, e os cinco actores acorrem como bombeiros num palco com múltiplas frentes activas. Têm 24 personagens que despem e vestem numa sucessão ofegante. “Nesta peça os próprios actores são consumidos pela narrativa, que os está a explorar, e são ultrapassados pelos acontecimentos”, refere o encenador. “Estão numa cena e, por vezes, a preocupação deles é como chegar à cena seguinte, e, no limite, chegar ao final da peça.”
Lembra-nos tantas vezes um filme, numa crua montagem, traçando um feroz paralelo entre pôr o caos a dançar, num registo espalhafatoso que parece tocar à balda as teclas todas do piano cómico, ao mesmo tempo revelando uma afinação perfeita, com a balbúrdia a deixar transparecer o apuro de uma grandiosa coreografia. De resto, e se é evidente a composição jocosa, os efeitos de ridicularização, à medida que nos aproximamos da conclusão, a comédia está cansada, a máscara desfaz-se-lhe na cara, e torna-se cada vez mais aparente a lucidez de um retrato trágico dos nossos tempos.
Além do dinheiro que tem assumido esse princípio de organização e sustentação de um real que é extra-humano, além desse sentido valorativo que a cada passo vence ou subjuga a razão, o encenador nota que “a peça, por vezes, parece apontar para o fim da própria linguagem, abordando a dificuldade da escuta e do entendimento entre as pessoas.” E para Mamede esse foi um dos principais desafios que a abordagem dramaturgica lhe colocou. “Como é que, neste ambiente pré-apocalíptico ou, se calhar, já pós-apocalíptico, como é que tu trabalhas a linguagem? Neste caso, a linguagem evolui e chega-se a um determinado momento em que os personagens se esforçam por continuar a contar a história com os poucos recursos que lhes restam, atabalhoadamente, e, nós projectamo-nos neles.”
Já foi referida a prodigiosa capacidade de síntese de Spregelburd, hoje um dos mais instigantes autores do teatro contemporâneo, pela sua capacidade de produzir inusitados cruzamentos, detectando-se numa peça como “A Estupidez” férteis vestígios de autores canónicos, seja Pinter ou Tcheckov, entretecidos com influências do cinema de Quentin Tarantino e outros.
Uma das linhas narrativas centra-se numa tal Equação de Lawrence, “que supostamente detém o segredo do universo, capaz de prever todo o tipo de comportamentos, e que por isso vale imenso dinheiro; mas a pessoa que a descobriu não está disposta a vendê-la”, diz Mamede. Há uma série de outros gatilhos; há o casal de marchands que tenta dar um golpe, engrupir um ricaço, erguendo fantasias em torno de uma obra falsificada, que pode valer dois, três, quatro milhões, depende da inocência ou estupidez, e o seu exercício passa por ficcionar a sua inscrição na história da arte.
A peça questiona-se a ela própria, como explica o encenador. “Questiona o valor que ela própria tem enquanto obra teatral. É desconfortavelmente teatral. Vai ficando cada vez mais complexa.” E o que fica é a sensação de que vivemos “uma espécie de final adiado para outra época. Ficamos siderados, perdidos nisto.”
Tendo surgido de um desafio de Jorge Silva Melo, Mamede conta que é a sua estreia a dirigir uma peça que não é criação sua com o grupo que integra, Os Possessos. Entre as questões todas que Spregelburd equaciona, perguntamos-lhe o que retirou de mais marcante na apreciação do tempo que vivemos. “Percebi com esta peça que temos de reaprender a conversar, a comunicar uns com os outros. Se olharmos à nossa volta, política, económica e socialmente, acontecimentos mínimos podem já ter desencadeado o fim do mundo ou a próxima guerra mundial, e nós ainda não sabemos. Se calhar já está tudo a precipitar-se sobre nós ao ritmo que marca esta peça, o presente está tão contaminado que nos elude. Por uma velocidade, uma vertigem que já não conseguimos controlar, que nos deixa impotentes.