O ensino superior privado está em “completa degradação” por dificuldades financeiras. E isso espelha-se nas condições de trabalho “precárias” de 80% dos professores que dão aulas nas universidades e politécnicos privados, que recebem como salário cinco euros por hora. Este é um cenário que não é exclusivo das instituições privadas. Gonçalo Velho, presidente do Sindicato Nacional do Ensino Superior (SNESup), contraria o ministro Manuel Heitor e diz que não é nada normal que haja professores convidados sem remuneração. “O ministro ou está mal informado ou não sabe do que fala.”
Qual é a situação das universidades privadas?
O que temos visto é uma completa degradação.
Foram envolvidos no levantamento da Direção-Geral do Ensino Superior (DGES) sobre a situação das instituições privadas?
Não. E víamos com bom grado o levantamento da DGES se fosse acompanhado pelo escrutínio da degradação das condições de trabalho. O mais grave foi a Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (A3ES) não ter feito um grande escrutínio do vínculo dos professores que estão nas instituições. A legislação afirma que tem de haver um corpo docente próprio, o que implica que os professores estejam contratados com contratos sem termo. Se a A3ES fiscalizou o corpo docente, como é que podemos assistir a uma taxa de precariedade altíssima?
Qual o grau de precariedade do ensino superior privado?
Neste momento, 80% dos 8783 professores têm contratos precários. Têm cortes salariais e não têm contratos sem termo.
Qual é o nível do corte salarial?
Há casos confirmados de docentes contratados a cinco euros à hora e, mesmo assim, não estão a receber salário porque há atrasos nos pagamentos. Há professores doutorados do ensino superior privado a passar fome. O sinal que estamos a transmitir à sociedade é este: em Portugal contrata-se um doutorado por cinco euros à hora no ensino superior privado. Esses contratos do privado vão-se transportar muito rapidamente para o ensino superior público.
Em que universidades são pagos os cinco euros/hora?
Não vou contribuir para a degradação de nenhuma das instituições privadas.
Mas acontece em muitas?
Há vários casos. Neste momento há poucas instituições privadas que não estão a degradar as condições de trabalho.
A degradação é só nas condições de trabalho?
Temos estado atentos a transferências e alienações de património e sabemos que está a haver essas movimentações. São situações que já vimos acontecer noutras universidades privadas, com escândalos muito conhecidos. Estamos a tentar recolher provas.
O que está a acontecer?
Há universidades que estão a transportar o seu património para outras entidades, esvaziando, assim, os seus balanços. E ao alienarem esse património, quando se chegar à situação de falência e à parte do pagamento de indemnizações, não terão património para o fazer. O estado de degradação em muitas instituições privadas alcançou este nível. Temos instituições privadas históricas que entraram em rutura. Entretanto, entraram novos agentes no mercado, grandes corporações internacionais que começaram a fazer o seu caminho no ensino superior português.
Vão fazer alguma coisa?
Estamos atentos, mas a nossa capacidade de intervenção é limitada.
E sobre a questão dos cortes salariais, vão tomar medidas?
Já que o Estado não legislou sobre esta matéria, a nossa ideia é estabelecer um contrato para o ensino superior privado. Há mecanismos do ponto de vista da contratação coletiva, uma das grandes bandeiras deste governo, que queremos fazer funcionar ao nível do ensino superior privado. Temos já uma proposta pronta e alinhavada para apresentar à Associação Portuguesa de Ensino Superior Privado (APESP) para se iniciar a negociação dessa contratação coletiva. Esperamos também que se faça um estatuto de carreira do ensino superior privado e uma regulamentação, que é mais do que necessário para impedir esta degradação.
No ensino superior público há professores convidados sem remuneração. O ministro diz que a lei prevê essa situação e que não há motivo para pedir auditoria. O que têm a dizer?
O ministro ou está mal informado ou não sabe do que fala. Nós negociámos a lei, o estatuto da carreira docente universitária, e a única margem prevista, no artigo 32.o-A, é para professores que já estão a dar aulas noutras instituições, sejam nacionais ou internacionais. Não há nenhuma abertura na lei. Em todos os casos que detetámos, não acontece nenhuma dessas situações.
Onde detetaram casos?
Na Universidade do Porto (UP), cerca de 40 professores – uma dimensão já assinalável. Depois, na Universidade Nova de Lisboa e na Universidade de Lisboa, no Instituto de Geografia e Ordenamento do Território (IGOT). Entretanto tivemos conhecimento de mais dezenas de casos na Universidade do Minho e de dois casos na Universidade da Madeira. Estão ilegais. Mas isto está para além da legalidade ou ilegalidade, é uma imoralidade.
O que vão fazer?
O Código do Trabalho tem uma questão-base que se chama salário mínimo. Há uma retribuição mínima obrigatória e estes professores, ao serem contratados ao abrigo do Código do Trabalho, estão abrangidos por ela. Portanto, a situação é ilegal. Já a denunciámos à Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT). O problema é como é que um ministro e todo um ministério não souberam ver isto e decidiram dar cobertura ao conselho de reitores (CRUP). Esta espécie de compadrio sem antes investigar é uma situação que não nos deixa de todo confortáveis. Sobretudo quando estamos a aferir de ilegalidades e de imoralidades.
Mas isto são situações que acontecem já há alguns anos…
Tivemos relatos de diversos anos. Durante muito tempo, o sindicato esteve a verificar isto. Todos estes casos se referem a este ano letivo. A questão é o nível de desfaçatez a que isto chegou.
Vão avançar com alguma queixa em Bruxelas ou junto de qualquer outra entidade?
A contestação poderá subir de tom, a um nível que não envolve apenas instâncias internacionais. Temos pessoas que estão cada vez mais insatisfeitas com o sistema. E aquilo que estamos a viver no ensino superior fere a legitimidade do Estado de direito.
Há mais situações de irregularidades?
Recebi um despacho do presidente do Politécnico do Cávado e Ave que estipula que cada hora de um professor convidado conta como 50% para um determinado número de alunos e, para outro determinado número de alunos, 75%. Os professores estão lá uma hora, mas para o presidente do politécnico do Cávado e Ave não estão lá, só lá estão meia hora. Inventa monitores… aquilo é um regabofe. De uma ponta a outra, o despacho tem uma série de enormidades. E este despacho é uma cópia na versão mais agressiva, quase igual, de um despacho do Politécnico de Santarém.
Qual é a justificação?
Dificuldades financeiras. E a minha questão é: então o contrato [de confiança entre o governo e o ensino superior] para a legislatura serviu para quê?
A situação vai piorar com as universidades que passam a ser fundações?
É óbvio. Por indicações da OCDE, foi reforçado o papel dos reitores. São uma espécie de CEO públicos. Mas são funcionários públicos e são gestores públicos que têm de ser responsabilizados por aquilo que fazem. Têm de existir na administração pública mecanismos institucionais capazes de fiscalizar a sua ação. Esses mecanismos não existem.