A reposição na íntegra pela RTP do célebre frente-a-frente de Mário Soares e Álvaro Cunhal, em 6 de Novembro de 1975, constituiu um verdadeiro serviço público, que deve ter incomodado – e não pouco – as hostes do PCP, que desde então não mudaram na substância das ideias.
Valeu a pena assistir (ou repetir) às mais de três horas de um debate directo, frontal, único, protagonizado por cada um dos actores em presença, com a certeza antecipada de que iriam fazer História.
Foi nesse dia que a coragem política e a combatividade de Mário Soares encostaram às cordas – e fracturaram – o discurso habitual de Álvaro Cunhal, obrigando-o a pôr de parte a famosa cassette e a sorrir para esconder o embaraço, perante quem o acusava, olhos nos olhos, de querer instalar uma nova ditadura em Portugal.
Soares avisava Cunhal de que o PS era o partido do socialismo em liberdade, o oposto da concepção totalitária do poder em que se reconhecia o PCP.
A defesa intransigente da liberdade – bandeira de que Soares nunca abdicou – foi a chave desse longo debate televisivo, que durou o impensável, antecipando o movimento de 25 de Novembro.
Naquela noite, nos velhos estúdios do Lumiar da RTP, Soares foi o mesmo do memorável comício que enchera a Alameda da Fonte Luminosa em Julho de 75, onde proclamara, desdenhando os riscos, que a direcção do PCP «é uma cúpula de paranóicos», e a da CGTP-Intersindical «é uma cúpula de irresponsáveis, que não representam o povo português».
Foi essa herança que António Costa ignorou ao dar o braço ao PCP, trazendo-o de volta à órbita da governação, a troco da ‘paz social’ decretada pelos sindicatos da CGTP, que vigora enquanto lhes convier.
Soares e Cunhal, com as suas concepções ideológicas bem distintas, eram dois homens com uma inteligência superior, que se temiam tanto como se respeitavam.
Conheci ambos de perto. Cunhal surpreendeu-me ao aceitar um dia uma entrevista informal, à mesa de um restaurante reservado, fora dos seus ‘territórios’ habituais. Com uma timidez desarmante, mas firme e acutilante na defesa das suas convicções.
Soares era igual a si próprio. Acompanhei-o mais demoradamente como jornalista durante o périplo europeu, no qual apresentou a candidatura de Portugal à Comunidade Europeia, antiga CEE. Um conversador infatigável, com um rosário de histórias que desfiava com prazer.
Era uma comitiva de gente qualificada, escolhida a dedo, apoiada em diplomatas de linhagem e técnicos com espírito de missão. Soares sabia – e não o escondia – que do seu êxito dependia a consolidação democrática. Tinha bem presente a lição da primeira República e as fragilidades do regime.
CONVENCEU a Europa e atrelou o país a um comboio em movimento, lançado a uma velocidade a que não estávamos habituados. Os dinheiros comunitários vieram de enxurrada, demasiadas vezes mal aplicados. Mais tarde, com o euro, Soares teve mais uma vez a lucidez e a intuição do que era importante para colocar Portugal na linha da frente.
O país ficou a dever-lhe fazer hoje parte, de corpo inteiro, da União Europeia e da moeda única. Uma arquitectura fundamental que está ser posta em causa pela esquerda comunista, desde o PCP ao Bloco.
Soares engrandeceu-se na construção de uma democracia moderna e estabilizada, que não vacilasse na primeira curva. Já doente e debilitado, na última década de vida, quiseram envolvê-lo num esquerdismo serôdio. Muito do que disse e escreveu nesse período foi contraditório com os seus ideais políticos de vida. E não contará para a História.
Nota negativa 1– O desaparecimento de Mário Soares não apanhou ninguém de surpresa. Nem família, nem amigos. Em coma profundo e irreversível, não se esperava outra coisa. Porém, António Costa foi incapaz de adiar a viagem à India. Pior: foi incapaz de interrompê-la, ao confirmar-se o desaparecimento do histórico fundador do PS. As explicações dadas para esta ausência ficaram entre o atabalhoado e o tosco. O ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, ‘antecipou’ o regresso da Índia para assistir aos funerais, como se a morte de Mário Soares tivesse apanhado a comitiva desprevenida. Um case study…
Nota negativa 2 – Ricardo Salgado, o ex-banqueiro, publicou um texto no Jornal de Negócios, disfarçado de ‘opinião’, no qual escreve que Mário Soares «chocou-se com a nova destruição do Grupo Espírito Santo, agora por um PREC de direita, de políticos despreparados e sem a visão de Estado que sempre o caracterizou». Oportunismo feio, vindo de um homem a contas com a Justiça, que há muito deveria ter respondido em tribunal, e que procura sacudir a todo o custo ‘a água do capote’ no colapso do BES. A lentidão da Justiça dá nisto…