Há alguma parecença entre a situação que viviam a Europa e o mundo nos anos 30 do século passado e a atual?
Há coisas semelhantes e há outras que o não são. Recentemente, num livro que publiquei, fiz a biografia paralela de cinco líderes políticos que protagonizaram essa época: Hitler, Estaline, Mussolini, Salazar e Franco. Estive a refletir um bocado sobre este período e sobre a analogia com os dias de hoje. O que há de semelhante? Há uma contestação daquilo que é o modelo dominante, que é o que poderíamos chamar democracia liberal ou capitalista, e uma certa linha de globalização que existia mesmo antes da Grande Guerra. Que vemos formar-se a seguir a essa guerra, com a Revolução de Outubro e com a reação que se seguiu, com o fascismo e todas as ditaduras e regimes autoritários que vão emergindo, sobretudo na Europa oriental, nos Balcãs e na península Ibérica. Em 1932 é eleito Hitler, e em 33 assume a chancelaria alemã e há toda uma vaga de contestação à democracia liberal que vem, por um lado, do bolchevismo, a Revolução de Outubro e outras tentativas na Europa de tomada de poder dos comunistas, e, por outro lado, de uma reação totalitária baseada mais em valores tradicionais de nação, família, que vem do lado dos fascismos e dos autoritarismos tradicionais, como o salazarismo. Neste aspeto há uma reação à democracia e à globalização; agora, as características desta reação é que eu acho que são diferentes.
Essas reações não têm um tronco comum?
O que não é igual é que todas as reações à democracia liberal, quer as comunistas, quer as fascistas, quer as nacional- -autoritárias, todas elas se baseavam no estabelecimento de teorias filosóficas que contestavam diretamente a democracia. Elas contraditavam filosoficamente as bases da democracia liberal, uns, como era o caso do hitlerismo, dizendo que havia uma democracia alemã que era o povo alemão – mas usava a expressão “democracia como povo alemão” para se opor ao que achava que eram as traições da democracia liberal – e outros, como Salazar, que nem usavam a expressão democracia. O Salazar era um leitor de Maurras, não era a mesma coisa que Hitler e Mussolini. Quer o fascismo quer o nazismo são revolucionários, é aquela ideia de mudar a natureza do homem e do homem novo, que era comum tanto ao comunismo como ao fascismo ou ao nazismo. O Salazar não queria mudar homem nenhum, o que ele queria é ter a autoridade política para manter a sociedade tal como estava. E aí é que eu acho que é a grande diferença, porque nenhum desses modelos, quer a Frente Nacional, quer uma série de partidos mais identitários que estão a aparecer, contestam as bases da democracia liberal com base numa alternativa filosófica. Estes movimentos não se preocuparam em criar uma base de pensamento ideológico alternativo. Mas há coisas que são comuns. Qual era o medo que pairava na Europa nos anos 30? Era o medo do comunismo. Isso vê-se muito no fascismo, o fascismo é muito um fenómeno de classes médias. Estas classes acabam por seguir muito Mussolini e o fascismo, também por uma questão de medo do comunismo. Hoje em dia, não há tanto medo do comunismo, mas há do jihadismo radical, o que acaba por dar uma certa conotação racista a este fenómeno.
Conotação esta que, embora diferente, também existia no passado com as perseguições dos nazis e fascistas aos judeus.
Sim, é comum esse recurso à figura do inimigo externo. Mas hoje é o contrário. É muito interessante que estas movimentos de extrema-direita têm hoje excelentes relações com Israel.
Embora, no caso da Frente Nacional, essa evolução tenha sido feita no quadro da substituição de Jean-Marie Le Pen pela filha. O fundador da Frente Nacional tem vários comentários a desvalorizar os fornos crematórios.
É facto. Mas já o pai tinha tido algum cuidado com o Estado de Israel. É preciso ver uma coisa: aquilo que é mais parecido com os partidos fascistas é a direita de Israel. Pela sua própria natureza identitária e de defesa, acaba por se socorrer de muitos dos aspetos de pensamento que são semelhantes aos partidos fascistas. Isso é o lado que eu acho que é interessante. Se a gente não acha um bocado de graça nestas ironias históricas, é uma tristeza. Quando os políticos ativos, que, tirando raríssimas exceções, a sua instrução nestas matérias não é muito profunda, tentam entrar nisto, a confusão alastra, porque a realidade tem contradições profundas. Tudo o que é correção política e ver estas coisas a preto-e–branco sai disparate. O que é interessante e perigoso nesta época é que não há uma teoria alternativa… Vou-lhe dar um exemplo: vamos ter um Conselho de Segurança das Nações Unidas em que nenhum dos cinco membros permanentes quer impor o seu modelo ao mundo. A China tem o seu modelo de capitalismo de partido único, uma espécie de nacionalismo capitalista de partido do Estado, mas não quer exportar isso para lado nenhum, o que irrita muito os antigos maoistas. A Rússia tem hoje um modelo nacional conservador e até com ligações fortes à Igreja russa, mas também não vemos que queira impor modelos. Moscovo quer ter influência na política mundial, mas fazendo valer a sua força militar mais do que impondo um modelo político. Logo após a ganhar as eleições, Trump também diz claramente que vai abandonar esta pretensão de andar a alterar o governo de países sem se saber rigorosamente o que se lhes vai fazer. O Reino Unido e a França nem sequer têm tentações disso. Eu diria que o século xx, que começou com a Revolução Russa encerra agora com a eleição de Trump. Porque, de facto, esta fecha o círculo: o século xx de ideologias revolucionárias e contrarrevolucionárias é encerrado com esta ausência de ideologia. Veja-se a situação do Médio Oriente, em que prevalece o caos da guerra de todos contra todos, quase hobbesiana, que significa uma espécie de limbo de ideias e de estratégias.
Não é possível que estas novas ideias e estratégias estejam a incubar e a nascer?
Exatamente. É muito interessante. Quando rebentou a primeira revolução comunista de sucesso foi quase 70 anos depois da primeira teorização do comunismo. O fascismo foi ao contrário: o Mussolini funda o fascismo em 1919 e em 1922 está no poder. É primeiro uma reação. E a gente pode perguntar: estes modelos são deste tipo? Não sei, aquilo com que nos deparamos hoje é com modelos muito diferentes de país para país.
Mas não têm em comum, como disse há pouco, esse desencantamento com a democracia e com a globalização?
Acho que têm esses dois aspetos mais a contestação ao politicamente correto, que também é muito importante. A reação à globalização é muito importante, ela tem inegáveis aspetos positivos de embaratecimento de produtos e até de crescimento nos países em vias de de-senvolvimento e da Ásia. Isso significou também duas coisas muito importantes: uma significativa desindustrialização na Europa e Estados Unidos e uma outra coisa que é a penalização de parte das classe médias, sobretudo de todas as classes médias baixas e do que ainda resta daquilo a que se chamavam as classes trabalhadoras no Ocidente.
Existe esta explicação para muito do chamado voto da classe operária branca que terá dado a vitória a Donald Trump nos chamados swing states [os estados que podem cair ou para os republicanos ou para os democratas], mas, simultaneamente, eleito Trump, temos a administração com o maior número de multimilionários de sempre.
Sim, como nos países comunistas quem os governou inicialmente eram burgueses: o Trotski era um burguês, o Lenine era um burguês. Alguns até, como Felix Dzerjinsky [militante bolchevique encarregado por Lenine de dirigir a Checa, a primeira polícia política soviética], eram pequenos aristocratas.
Há a velha história de um embaixador do Reino Unido que encontra o seu homólogo soviético, que era de origem aristocrática, e lhe diz “eu é que sou filho de operários”, ao que o soviético responde “é verdade, ambos traímos a nossa classe”.
(risos) Há várias versões dessa história, uma delas é contada com Krutchov, que teria dito a Chu En-Lai, no início do conflito sino-soviético, que ele é que era filho de camponeses, e o chinês, que era originário de uma família de mandarins, terá respondido o mesmo: “Há uma coisa que temos em comum, somos ambos traidores de classe.”
Mas não se pode dizer que a administração Trump tem uma marcada característica de classe e que até algumas das aproximações a Putin têm como base uma certa convergência dos interesses empresariais dos círculos próximos dos dois líderes?
Não sei se esta identidade é tão verdadeira assim. O que acho que tem muito interesse na vitória de Donald Trump é a sua capacidade. É um orador que apanha muito bem, até porque tem esse treino todo empresarial e comercial e dos anos que passou a fazer programas televisivos, aquilo que as pessoas pensam. A política tem uma coisa muito interessante em que a arena é o sítio onde se luta pelo poder. No século xix lutava-se nuns parlamentos oligárquicos relativamente pequenos, nos jornais, que influenciavam os seis ou sete por cento que votavam nas eleições, e às vezes nas ruas.
O século xx, com os seus momentos fascistas e bolcheviques, traz uma militarização da política em que os partidos vestem todos umas camisas e umas fardas, até porque muitos dos seus homens tinham combatido na Grande Guerra. Transformava-se a guerra em luta política, como dizia Lenine, invertendo a célebre frase de Clausewitz “a política é a continuação da guerra por outros meios”, a ideia de política como guerra ilimitada. Nessa altura vê-se a importância de meios como a rádio e o cinema – por exemplo, Hitler era um orador de grande sucesso.
O seu registo muito teatral talvez não funcionasse no meio televisivo de proximidade.
Há quem diga que não. Mas acho que ele era capaz de pensar no assunto e dar conta do recado. Os maiores líderes eram gente muito ligada ao cinema. Hitler e Estaline viam todos os dias um ou dois filmes.
Desse ponto de vista do meio, Trump é o Twitter.
Mais do que isso, Trump faz uma coisa que ninguém mais se atreveu a fazer. Acho que as elites políticas, mediáticas, e económicas passaram a viver umas com as outras e criaram uma espécie de casulo que não tem nada a ver com o resto das pessoas. E Trump diz o que as pessoas querem ouvir e ninguém tem coragem de dizer. E aí voltamos à questão da globalização. Ela não é só o aspeto económico, mas há mais coisas: há um custo cultural da economia. Por exemplo, os operários de Detroit ou Pittsburgh, cujos avós trabalhavam numa fábrica de automóveis, que viviam numa cultura operária forte. A história das comunidades operárias e dos seu ativismo é muito interessante. Essa cultura, que está ligada a uma fábrica, a uma mina, quando isso desaparece, de repente ficam um bocado órfãos e traídos. Daí uma certa necessidade de proteção. O que é que nos protege? A fronteira protege. Quem ganhou mais com a globalização? Foram alguns dos pobres do Terceiro Mundo, excetuando África, e os super-ricos. Depois há um fenómeno curioso – eu não gosto muito de fazer a chamada sociologia de impulsos –, mas a gente vê à nossa volta que os ricos e os pobres têm uma mobilidade que a maioria das pessoas da classe média não têm. Por razões diferentes: os ricos porque podem ter muitas casas em muitos sítios, e os pobres porque não têm nada a perder. A classe média está ligada aos seus empréstimos e aos seus poucos haveres. A isso acresce um aspeto a que eu dou, por uma questão pessoal, muito valor: estas elites convenceram-se de que toda a vida social se resumia à economia. Para isso contribuíam, por um lado, as nossas esquerdas que têm uma base marxista e afirmam o primado da economia, e, por outro lado, aquela coisa a que agora chamam direita que é aquele ultraliberalismo um bocado insano que olha para os mercados como se fosse Deus Nosso Senhor. Essa gente toda esqueceu-se que há referências culturais, há a política em si, e mais uma data de coisas. Quando fizeram a redução disso tudo, é evidente que tinham de pagar um preço pelas consequências. Paradoxalmente, alguns aspetos que Marx tinha apontado estão a dar–se: a questão do catastrofismo, visível quando lemos que há oito ricos no mundo que têm tanta riqueza como metade da população. Isso é verdade. Ora. com fronteiras. não havia. A fronteira, apesar de tudo, é um regulador.
A fronteira pode ser vista como reguladora, criadora de laços, comunidade, soberania, mas também pode ser entendida como excludente e até racista.
Não sei se é racista. Os países, por serem diferentes, não têm de andar à batatada.
Mas quando se considera como inferior ou se sujeita a um tratamento menos favorável a pessoa que cá está dentro e que não é nacional, isso pode ganhar contornos de racismo.
Mas isso é uma questão de identidade nacional. No outro dia estava a almoçar com um adido militar de outro país – a gente aprende muita coisa com os estrangeiros, até porque eles veem coisas a que a gente não liga – e perguntei-lhe: “Diga–me quais são as duas coisas que mais lhe chamaram a atenção em Portugal”. E ele respondeu-me logo: “São o país que tem as fronteiras mais antigas e só as tem com um outro país.” O que é curioso e dá-nos uma identidade forte. Eu dava sempre aos meus alunos um exemplo, que agora é difícil até por causa dos anos que passaram, mas um homem que tivesse nascido em Praga há 100 anos: ele nasceu no Império Austro-Húngaro, a seguir à i Guerra passou a ser checoslovaco, em 1938 passou para o Terceiro Reich, em 1945 passou a ser cidadão da Checoslováquia comunista e agora seria boémio e cidadão da República Checa. Teve cinco identidades políticas ao longo da vida – como é que ele se sente?
Um regresso às nações não é um regresso impossível a um mundo do passado, sem globalização?
Acho que a nostalgia conta muito para a cultura e muito para a política, até a nostalgia de uma época em que não se viveu. O sucesso junto das gerações mais novas das séries dos “Mad Man” ou filmes como o “Café Society”, passado nos anos 30, é disso indicativo. Acho que a nostalgia e o passado contam muito. Como dizia Jay Gatsby no “Grande Gatsby” de F. Scott Fitzgerald, era possível viver no passado ou desejar regressar ao passado. É curioso que seja um personagem como Trump, que de certo modo é o oposto dessas coisas, com umas casas douradas de gosto duvidoso, que vai incorporar de forma mais forte este sentimento. É preciso que as coisas tenham chegado a um ponto tal para ser um outsider que vai pegar e vai vencer a elite do Partido Republicano, e depois vence aquele aparelho poderosíssimo de Hillary. Ela tinha muito mais dinheiro que ele e quase todo o apoio do sistema mediático, tirando a Fox News e outros meios marginais. Ele tinha tudo contra e ganhou. Se ganhou contra isso tudo é porque a fúria e a cólera contra o sistema, muito encarnado pela sra. Clinton, eram muito fortes.
Mas teria ganho a Bernie Sanders?
Talvez não. Mas eu comparava um pouco esta eleição àquela que foi disputada 36 anos antes entre Carter e Reagan, que tinham políticas diferentes e perfis diferentes. Mas eram pessoas decentes e normais. Estes, não. São pessoas com histórias complicadíssimas. Davam vários filmes. Será que isso não será um sinal de uma profunda perturbação? Ele é votado por pessoas que são o seu oposto social.
Este tipo de candidatos são, de facto, uma rutura com as elites instaladas, ou são uma continuação das elites instaladas por outros meios? Nós, em França, vemos o Fillon que aparece como um candidato contra o existente, mas ele fez lá toda a carreira política.
O Fillon é um conservador católico e tradicionalista. Está tudo a dar como favas contadas que ele bata a Le Pen, vamos ver se é isto que se verifica.
Eu não acho nada adquirido que ela não ganhe.
Eu também acho que é possível que ela ganhe. Primeiro, a Le Pen não é uma conservadora do ponto de vista dos valores de família. Ela é divorciada e incorporou o laicismo. Os católicos franceses estão muito divididos por causa disso. No plano social e económico, ela é um bocadinho aquele fascismo primitivo: antiglobalista e socialista. Tem um apoio de uma classe média enraivecida e tem o voto dos setores populares, sendo visível que muitos antigos eleitores do partido comunista votam nela. É um fenómeno parecido com a votação das áreas operárias tanto no Brexit como nos EUA.
A eleição de Donald Trump é um fator de risco para o mundo?
Acho que aumenta a incerteza. Os perigos, não sei. Esta cultura da globalização e do politicamente correto criou uma ilusão de segurança e bem-estar que, em meu entender, está muito longe da realidade. Um dos fenómenos mais graves – isso é sobretudo visível nos países da União Europeia – é que se abdicou da política para falar das políticas. Aqui, quando muda uma liderança de um partido qualquer, o novo líder aparece sempre a propor 200 medidas. Isso não é política, são políticas. Porque, nessas medidas, a política fica toda igual. Ninguém discute alternativas. É tudo dentro do mesmo paradigma, como viver esta globalização.
Aquilo a que o filósofo francês Rancière chamaria polícia ou administração das coisas em vez de política ou escolha de orientação política.
Exatamente. Agora, acho que as pessoas estão fartas disso. Por outro lado, também se criou uma cultura que, por um lado, enaltece este modelo como o único possível e, por outro, identifica os seus intérpretes como gente desprezível.
A quantidade de filmes e séries que existem sobre políticos corruptos e a sua ligação a sombrios interesses financeiros é impressionante. Aliás, o cinema permite-nos ver de uma forma notável algumas características desta nova sociedade que emerge, a impopularidade da política, mas também a transformação da guerra. No outro dia vi um filme muito bem feito em que se mostrava uns pilotos que matavam pessoas guiando aviões não tripulados. Pequeno-almoçavam com a família e depois iam para a frente de computadores guiando drones que abatiam pessoas. E depois está à espera se o tipo que está a seguir é contemplado ou não pela ordem de executar. Depois, quando vai fazê-lo, aparece sempre uma criancinha.
Isso não tem um efeito perigoso? Antigamente, nas guerras, como vemos nos romances de um autor que lhe é caro. Jean Lartéguy, as pessoas faziam a guerra mas não ignoravam que estavam cobertas de porcaria até acima. Agora jogam computador.
Claro que é castrador do próprio pensamento e da avaliação e reflexão teórica e sentido do valor das coisas que dá o risco. É, aliás, uma discussão antiga: já os gregos começaram por insurgir-se contra o arco e flecha, que pressupunha um combatente sem risco e à distância – uma cobardia, no seu entender.