Está sentada em cima de uma mala que faz as vezes de banco ao lado das máquinas de venda de bilhetes do metro, no Saldanha. Lenço colorido a envolver-lhe os cabelos brancos, tem junto de si um saco do Pingo Doce. Já passa da meia noite nesta estação do metro, uma das cinco abertas a pedido da Proteção Civil e da Câmara Municipal de Lisboa para fazer face às baixas temperaturas. Levanta a cabeça quando nos sente. «Li no jornal que esta estação estava aberta, menina».
Beatriz, 68 anos, olhos azuis e sorriso doce começa por contar que é do Barreiro e que já é muito tarde para ir para casa. «Perdi o comboio», diz em voz baixa. Tentamos explicar-lhe que há mais sítios abertos onde poderia estar mais confortável. O sorriso continua preso nos lábios, mas a resposta já sai com mágoa: «Sou de lugar nenhum». Diz boa noite, baixa a cabeça e respeitamos o pedido do gesto.
«Esta senhora chegou por volta das 11h00», diz um funcionário. Dentro da estação do Saldanha – cuja entrada aberta durante toda a noite é a virada para o centro comercial Monumental – há uma atmosfera quente e confortável. Ao todo, são cinco as estações de metro abertas permanentemente desde a noite de terça-feira e assim permanecerão até ao próximo domingo. Visitamos todas – Colombo, Rossio, Intendente, Saldanha e Oriente. Dadas as características arquitetónicas do espaço, a do Saldanha é a única com uma temperatura adequada para alguém pernoitar.
Com os termómetros perto do zero, optar ainda assim por um destes espaços poderia ser uma opção de último recurso. Lisboa também reforçou os albergues, mas há pessoas sem-abrigo preferem ficar na rua. Porquê?
À primeira vista, não parece ser por falta de convite. Desde terça-feira, cinco carrinhas da câmara percorrem a cidade para dar boleia a todos os que quiserem pernoitar no complexo desportivo municipal do Casal Vistoso, na zona das Olaias. Aqui, foi instalado o ‘centro de operações’ do Plano de Contingência para os Sem-Abrigo de Lisboa, supervisionado por técnicos da autarquia e da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Por ali, são distribuídas refeições e roupas quentes. Quem quiser, pode tomar um banho.
Foi lá que Marcelo Rebelo de Sousa passou parte desta mesma noite, uma das mais frias do ano.
Não seguimos o Presidente: queríamos perceber quem – e porquê – preferiu dirigir-se às estações de metro ou quem, contrariando todos os conselhos dados pelas equipas de apoio aos sem-abrigo que há muito estão no terreno, não arredou o corpo da rua.
Beatriz guardou para si a resposta. Ou então respondeu-nos com o seu «lugar nenhum».
Gare do Oriente não tem sem-abrigo ‘desde a Web Summit’
Antes do Saldanha, já tínhamos estado nas estações da Gare do Oriente e do Colombo. Às 21h32, o termómetro do carro marcava os 5 graus – nada comparado com as temperaturas que, por aquela hora, se faziam sentir nos distritos de Évora, Castelo Branco, Aveiro e Portalegre, medalhadas a laranja. Mas estava frio, é certo.
Lisboa pode não ser a cidade mais gelada do país, mas é a que tem mais pessoas sem-abrigo. A descida dos termómetros ganha outra dimensão, assim como a problemática das pessoas que dormem na rua e que costumam ser notícia apenas pelo Natal ou quando o frio a sério chega. Mesmo que a sua casa sejam os passeios da cidade 365 dias por ano.
Nos últimos dias, a resposta das autoridades à ‘frente polar’ parece ter dado frutos. Locais onde costumam encontrar-se muitas pessoas a dormir – como as arcadas do teatro D. Maria II, a Avenida da Liberdade ou a Almirante Reis – estavam, na passada quarta-feira, quase desertos. Assim como a Gare do Oriente, até há bem pouco tempo um dos locais onde mais sem-abrigo passavam as noites.
«Desde a Web Summit que eles não estão aqui», conta um segurança que esconde a identidade atrás da farda enquanto nos afirma, de nariz já habituado a estar vermelho, que a noite «não está mais fria do que as outras». Descemos ao metro: o cenário mantém-se. Tanto na noite de quarta como na anterior, os sem-abrigo que costumam pernoitar na zona mantiveram-se, maioritariamente, no sítio em que costumam dormir desde novembro: junto ao pavilhão de Portugal, ao relento. «Está aqui mais frio, com este chão de pedra, do que lá», comenta um operador do metro.
Efetivamente, a estação do Oriente – uma das que foi abertas no âmbito plano de contingência – é gelada.
A noite avança, o termómetro baixa um grau e seguimos para Benfica. Às 22h30, um mar de adeptos abandona o estádio, com as mãos nos bolsos «Venho sempre ao estádio», conta Miguel Carvalho, estudante de 20 anos, afirmando que este ano ainda não tinha apanhado tanto frio num jogo. «Mas ganhámos», ri.
Na estação de metro que serve o estádio e o centro comercial, quatro agentes esperam pelas 23h15, hora em que o serviço acaba. «Estamos aqui por causa do jogo, não por a estação ficar aberta», revelam.
O operador de serviço relata uma situação semelhante à que encontrámos na zona oriental da cidade: não é expectável que alguém apareça para dormir ali. «Os sem-abrigo estão mais nas zonas centrais ou ali em Sete Rios. Para aqui não costumam vir», explica. Novamente, a temperatura interior da estação não é nada apelativa – polícias e seguranças, sem exceção, escondem o pescoço nas golas.
Quando deixamos a estação, o mar ‘vermelho’ já se tornou em salpicos pontuais: são poucos os adeptos que ainda estão na rua.
Voluntários encontraram menos gente a dormir nas ruas
Seguimos para o Rossio e para uma Lisboa estranhamente silenciosa. À porta do teatro D. Maria II, não há ninguém no chão habitualmente ocupado pela população sem-abrigo. «Tem sido assim em toda a ronda», relata Miguel, programador informático e voluntário da Comunidade Vida e Paz. «Pensámos que íamos encontrar muita gente aqui no metro do Rossio, que hoje é a nossa última paragem», conta.
Para quem está no terreno, isto é bom sinal: significa que muitos sem-abrigo procuram abrigo ou aceitaram as ‘boleias’ das várias organizações para o Casal Vistoso. Nessa noite, pernoitaram nesse pavilhão municipal cerca de quarenta pessoas, que habitualmente dormiriam na rua.
Na Praça da Figueira, três homens enrolados em mantas contrariam a estatística: instalaram-se, como sempre, por cima dos respiradouros do metro. Na zona mais antiga da cidade, só se vislumbram mais duas pessoas a dormir na rua nesta noite – uma no Cais do Sodré, no local «de sempre». Outra na Avenida Almirante Reis.
A justificação para permanecerem a céu aberto é a mesma que ouvimos no Oriente. Talvez mais direta: temem ficar sem o seu lugar. «Quando as pessoas sem abrigo deixam o sítio onde estão o local é muito rapidamente ocupado por outros», referem não só voluntários como vigilantes do metro. «Depois não se entendem e há lutas, há muita violência física».
É por isso que até Marcelo terá decidido ajudar, usando palavras de incentivo para que, pelo menos naquela noite, as pessoas sem abrigo aceitassem, sair da rua. Mas modificar a rotina de quem não tem rotina é por vezes mais complicado do que estar na própria rua.
Largar a rua e largar o vício
Este ano, pela primeira vez, os abrigos disponibilizados pela Câmara Municipal de Lisboa (CML) admitem a permanência de animais, outro entrave anteriormente apontado pelas pessoas sem-abrigo. Se os companheiros não se abandonam, a toxicodependência é uma prisão mais pesada.
Marlene não tem problemas em aceitar ajuda – pelo menos, é o que diz. A dificuldade é cumprir o que lhe pedem nessas intervenções: não consegue largar a droga.
É no largo D. Pedro IV que a encontramos, já perto das 2:00. Desorientada, diz que andava a pedir no comboio e perdeu o último para Benfica, onde costuma dormir. «Tenho lá os meus cobertores, não sei como vou fazer».
Magra, demasiado magra, tem 41 anos que lhe pesam na cara. Num discurso nem sempre lúcido, descreve um rol de doenças: um cancro na mama, sida, uma pneumonia recente. «Adormeci uma noite destas na rua, fiquei assim mas estou a ser seguida no hospital», diz.
Alguém lhe disse que a estação do Rossio estaria aberta. Partilhamos a pé os metros de calçada desde a praça até ao metro, em que sem pudores, Marlene resume os percalços da sua vida. «Sou de Tomar, tenho uma filha de 24 anos». Como veio para Lisboa? «Já nem sei». Há quantos anos? «Não sei, já nem sei…».
Da vida antes desta, diz ter trabalhado nas cozinhas do hospital da sua cidade. Depois, veio o vício, veio a metadona e a rua que diz «odiar» mas da qual não consegue sair, apesar de já lhe terem oferecido ajuda. Porquê? A resposta torna a ser «não sei». Quase a chegar ao destino, fala da filha, de 24 anos. O quanto baste. «É linda, é linda».
Já dentro do metro está Sérgio, 41 anos, um gorro vermelho puxado quase até ao nariz mas que não consegue esconder, ainda assim, uns incríveis olhos azuis. O segurança acabara de lhe arranjar uma manta para passar a noite. «Roubaram-me as coisas na Damaia, não costumo dormir por aqui», diz, enquanto pede um cigarro. «Nem pensei ir para um abrigo, vim logo para o metro».
Sérgio e Marlene conhecem-se, mas não há conflitos entre eles. Tanto que é Sérgio que pergunta ao segurança se não consegue arranjar uma manta para a «rapariga». Não há mais, mas em breve chegaria uma equipa de voluntários da Comunidade Vida e Paz para resolver o assunto – já Marlene se tinha enfiado numa reentrância por baixo das escadas desta estação.
«Também nos podiam deixar aqui uns cobertores para estas noites, já que vamos estar abertos. Nós próprios podíamos ir fazendo a gestão e dando os cobertores», sugere o vigilante do metro do Rossio.
Antes da chegada dos voluntários, Sérgio conta a sua história, com uma vontade que nem sempre existe. «Estou há nove ou dez anos na rua, desde que os os meus tios, que eram como se fossem meus pais, morreram. Criaram-me desde que tinha nove meses», começa.
Tal como Marlene, é viciado em estupefacientes e também já tentou a reabilitação, mas nunca funcionou. «Depois veio a metadona, que também é um vício.»
Natural de Vila Franca de Xira, diz ter dois irmãos que ganham pouco. «Mesmo que ganhassem mais, como podem ter um pessoa como eu em casa?».
Estações mais quentes do que outras
Ao todo, nesta noite, oito pessoas pernoitaram nas estações de metro abertas, confirmou posteriormente ao SOL o departamento de comunicação da Metro, Carris e Transtejo. Na quinta-feira, dormiram nove pessoas nas estações do Saldanha, Rossio e Oriente.
Para além de Beatriz, no Saldanha, encontramos outras duas dessas pessoas, ambas na estação do Rossio: Marlene e Sérgio.
Das cinco estações de metro que visitámos, apenas no Saldanha o ambiente era quente, realmente convidativo para quem esteja na rua.
Um trabalhador do metropolitano, sob anonimato, concorda que há diferenças de temperatura entre estações. E há algumas que não estiveram abertas tão confortáveis como a do Saldanha: a dos Restauradores, a do Rato, a dos Olivais e a da Alameda. «Sinceramente, não sei qual é a razão de abrirem umas estações e não as outras mais quentes», disse ao SOL este funcionário.
Colocámos esta mesma questão à entidade gestora do metro que, a partir de 1 de fevereiro, passa para a tutela da autarquia: «A seleção das estações a ser incluídas nesta ação foi determinada pela Câmara Municipal de Lisboa e pelo Serviço Municipal de Proteção Civil (SMPC)». A fazer-se um balanço depois de passar o frio, talvez para a próxima seja diferente.