Como tantos de nós, Howard Gordon cresceu de boca aberta, um fiozinho de cuspo elétrico frente à televisão. Amou-a como outras gerações amaram, mais resignadamente, a janela – esse alcance humilde sobre o lento desfile do mundo. A televisão serviu-lhe de nave espacial, com o painel de instrumentos desenhados num caixote, enquanto via “Star Trek”, e a última fronteira enchia-lhe de luzes brilhantes a divisão. Foi um dos muitos também que se sentaram religiosamente para ouvir Archie Bunker de “Uma Família às Direitas” desancar subtilmente todas os seres quadrados, dando aos jovens a capacidade de cheirar à légua um moralista, xenófobo, ignorante, boçal, mesmo se irresistivelmente chistoso. E no que toca a romper com horizontes moribundos, “The Mary Tyler Moore Show” foi outra influência decisiva, com a protagonista desta sitcom a trocar o retábulo de uma dona de casa pela aventurosa vida de produtora numa estação televisiva.
Gordon não se limitou a assistir, mas cresceu e educou-se para esse lado em que, no fim, a fantasia tem uma boa hipótese de triunfar. Depois de se formar em Princeton, ele e o melhor amigo, Alex Gansa, rumaram para Hollywood e juntos impuseram-se enquanto dois dos guionistas de maior sucesso e que acompanharam a mudança de paradigma na indústria do entretenimento, com a televisão a bater o grande ecrã como o buraco da fechadura privilegiado para as histórias mais absorventes, complexas e exigentes.
Depois de anos a safarem-se com episódios em séries pouco memoráveis, as unhas do talento começaram a crescer, e chamaram a atenção do lendário produtor de “Ficheiros Secretos”, Chris Carter, que os integrou na equipa, primeiro como guionistas e depois também como produtores. Estavam lançados. Foi então que os dois subiram de tal modo a parada que criaram um novo patamar ao nível do sucesso de uma série televisiva. “24”, a frenética série que apresentou ao mundo Jack Bauer, fez muito para devolver a televisão à condição das drogas duras, com a série a revelar-se um vício para milhões de pessoas em todo o mundo. Depois veio “Segurança Nacional”, e, por esta altura, Gordon & Gansa tornam-se lendas, criadores de mitos numa nova era da ficção televisiva cada vez mais negra, cada vez mais empenhada num esforço de acompanhar a realidade, devolver-lhe um reflexo conturbado e que, muitas vezes, se mostra bem mais competente do que os jornais e os noticiários na hora de nos mostrar a face oculta do mundo em que vivemos.
Em séries como “Segurança Nacional”, as personagens já não cabem no contorno dos heróis à moda antiga, aqueles que enfrentavam um tipo de vilões que, na melhor das hipóteses, eram carismáticos, mas completamente indefensáveis. Depois de séries como “Os Sopranos”, “Six Feet Under” ou “The Wire”, perdeu-se a inocência, foi como se tivesse rolado até aos nossos pés uma segunda maçã da árvore do conhecimento. Não há mais paciência para personagens unidimensionais, e para argumentos que sirvam o mundo sem distinguir várias zonas de sombra. Carrie Mathison (Claire Danes), a brilhante e bipolar agente da CIA, Saul Berenson (Mandy Patinkin), seu mentor, e Nicholas Brody (Damian Lewis), um antigo prisioneiro de guerra que tentou levar a cabo um atentado que decapitasse o governo norte-americano, debatem-se com problemas morais insuportáveis, consciências asfixiantes, escolhas impossíveis, são figuras mais reais e com mais impacto do que tantas pessoas de carne osso.
O i teve a oportunidade de entrevistar Howard Gordon numa altura em que arrancou a nova temporada de “Segurança Nacional” e a 6 de fevereiro estreia “24: Legacy”, uma espécie de sequela da série protagonizada por Kiefer Sutherland.
Ao nível das influências culturais que estão por trás de “Segurança Nacional”, quais foram ganhando maior importância à medida que o argumento se ia tornando cada vez mais complexo?
A série “24” acabou por ser a grande influência, uma vez que passei a década anterior a fazê-la. E é verdade que a série é baseada, embora muito livremente, em “Hatufim” (“Prisioneiros de Guerra”), mas se vir essa série não vai encontrar nenhuma Carrie Mathison, não era tanto sobre contraterrorismo, mas focava-se na experiência de dois soldados ao regressarem a casa depois da guerra. Mas houve muitas influências, e na base, aquilo que fui buscar à série israelita prendeu-se com o meu interesse pela forma como os EUA estavam agora numa situação de guerra, tinham invadido o Afeganistão e depois o Iraque, o que teve resultados bastante controversos, na sua maioria negativos, e não havia na televisão uma personagem que tivesse regressado a casa depois de participar na guerra. Essa ausência era intrigante e tornou-se instigante para mim e para o Alex Gansa, que foi o meu parceiro na escrita da série. E nós somos os dois grandes fãs do filme “As Vidas dos Outros”, e portanto a ideia da vigilância e de um estado policial… Muitas das cenas decorrem de questões relacionadas com a liberdade de expressão, paranoia, repressão sexual… Esse filme foi muito influente para nós estilisticamente e em termos temáticos. Somos também grandes fãs do John le Carré, a forma como as histórias dele lidam com este mundo muito complexo era algo que estávamos ansiosos por emular.
O terrorismo é uma das questões dominantes tanto em “24” como em “Segurança Nacional”. É diferente abordar esta temática hoje do que foi quando surgiu “24”, logo após o 11 de Setembro?
Sim. Logo após o 11 de Setembro o nosso trauma e medo estavam de tal modo à flor da pele que o Jack Bauer veio corresponder a uma espécie de herói pelo qual ansiávamos. Não era apenas a forma como fazia frente aos terroristas mas também à incompetência, à burocracia. Penso que nós, enquanto audiência, pudemos exorcizar alguns demónios; era catártico para as pessoas verem este tipo disposto a fazer o que fosse preciso para impedir que eventos terríveis acontecessem. Mas a série tornou-se mais complexa quando entrámos em guerra e quando Abu Ghraib e Guantánamo começaram a aparecer nas notícias. Nós próprios fomos obrigados a reconhecer que a série estava a ajudar a um sentimento de xenofobia e de islamofobia. Havia alguns soldados que viam a série e se sentiam empolgados por participar na guerra no Afeganistão e no Iraque. Não eram muitos, mas suficientes para nos alertar para os riscos, e termos claro que não queríamos provocar situações de tensão desnecessárias. A nossa sensibilidade em relação a esta questão evoluiu bastante ao longo dos últimos 15 anos. E esse continua a ser um dos grandes desafios por razões óbvias. Julgo que muitas pessoas terão pensado que, de certa forma, “Segurança Nacional” foi como um pedido de desculpas, ou uma resposta a “24”. Coisa que não foi. Foi simplesmente a progressão de uma história que continua a desenvolver-se, e que nos leva a formular novas perguntas enquanto escritores que se debatem com estes problemas.
Nos dias de hoje, com a entrada em cena das redes sociais, parece que as audiências têm uma voz muito mais ativa do que antes. Qual é a sua relação com este tipo de feedback?
Penso que se trata de uma faca de dois gumes. Pessoalmente, sinto-me na necessidade de ignorar esse tipo de atenção. Isto porque, infelizmente, estes fóruns públicos tornaram-se sobretudo apelativos para pessoas que parecem não ter nada de melhor para fazer do que criticar ou insultar-te. Assim, parece-me que tentar navegar através de tudo isso acaba por revelar-se um exercício mais destrutivo do que outra coisa. Com o tempo aprendes a aguentar todos esses ataques, mas eu procuro não abrir a caixa porque não gosto daquilo que vejo lá dentro.
Tendo as duas séries ganho uma série de prémios, vê isso como um reconhecimento importante ou meramente como um bónus?
É apenas um bónus. Parece-me que se levares a aclamação muito a sério também irás levar as críticas muito a peito. Penso que só podes fazer o melhor que consegues. E a verdade é que sou bastante cínico em relação a essas coisas até ganhar uma estatueta, nesse momento fico radiante.
À medida que a realidade parece tornar-se a cada dia mais próxima da ficção escrita por alguém a pensar em entreter uma audiência televisiva, torna-se mais difícil escrever uma série como “Segurança Nacional” ou é mais fácil escrever sobre um medo real e presente ao invés de um idealizado?
É muito, muito, muito mais difícil hoje do que alguma vez foi. Isso prende-se em parte com a forma como algumas linhas óbvias do argumento deixam de fazer sentido. Penso que se torna mais difícil para qualquer série, a não ser que simplesmente levantes os braços e desistas. Há casos de pessoas que desistiram de alinhar as séries com a realidade, refletindo-a. Gansa é quem é responsável agora pela série e eu sou o seu melhor amigo e um conselheiro, escrevendo ocasionalmente uns episódios. Falo com ele diariamente e posso dizer que a tarefa se está a tornar cada vez mais espinhosa. Em parte porque a vida real está a tornar-se mais louca do que a própria ficção. É quase impossível surpreender as pessoas porque o mundo real já o faz todos os dias por nós.
Tendo em consideração o retrato que “Segurança Nacional” pinta do mundo da espionagem e, particularmente, da CIA, não parece ser algo que se recomende a si mesmo. Foi vosso propósito analisar de forma crítica esse mundo da espionagem ou tentaram antes uma abordagem que fosse neutra, tentando simplesmente representar o lado cínico e amoral destas agências?
Julgo que a série tem esse lado cínico, mas penso que o que eu e Alex Gansa tentámos fazer foi mostrar o lado cínico a par do seu aspeto idealista. Penso que qualquer pessoa que faça esse tipo de trabalho, e digo isto tento conhecido vários agentes da CIA – sendo que isto se aplica igualmente aos diplomatas, funcionários do Departamento de Estado ou do Serviço de Imigração e Fronteiras ou até os soldados -, parece-me que são basicamente pessoas patrióticas e idealistas que sacrificam tanto das suas vidas, e muitas vezes sacrificam literalmente as suas vidas, mas no mínimo as suas vidas pessoais, ou as suas vidas psicológicas, por um ensejo patriótico. Parece-me que isso é uma questão muito interessante de se explorar. O Alex e eu nunca pretendemos ser cínicos ao fazê-lo, mas tentámos reconhecer a complexidade e os desafios que esses trabalhos colocam. Basta perguntarmo-nos o que leva uma pessoa a desejar ser um herói, a pôr a vida em risco, e qual é o preço que pagam por fazerem essa escolha. Creio que as pessoas que na vida real se veem retratadas por estas séries, “Segurança Nacional” e “24”, reconhecem o esforço que fazemos para nunca reduzir o dilema a uma escolha entre uma boa opção e uma má. O que há são sempre duas opções más e o que é necessário é escolher a menos má.
Esta nova presidência parece ser bastante crítica em relação às agências secretas e de informação, particularmente a CIA. Parece-lhe que estas agências têm os mecanismos para contrabalançar um presidente autoritário ou podem facilmente acabar reféns dele?
Na verdade não posso responder à altura porque não sou uma autoridade no assunto, não imagino o que possa acontecer. A ironia e a tragédia está no facto de estas agências serem tão decisivas na condução do nosso país e na proteção dos seus interesses. E na maneira trapalhona do Trump de fazer as pazes com a CIA percebeu-se isso. O que penso é que a CIA será sempre capaz de fazer aquilo para que foi criada, e creio que o continuarão a fazer até ao limite das suas capacidades, seja recolher informações sensíveis ou intervir de outra maneira. Mas quando há tanta desconfiança entre dois ramos governamentais isso nunca é positivo. Não faço a menor ideia do que pode acontecer. Vai ser interessante, e é certo que vai requerer alguma diplomacia interna para reparar alguns danos.