A liberdade como princípio inegociável – o lema e a lei; o feminino como cultura; a arte da conversação como filosofia de vida; Deus, «ou aquilo a que chamou Deus por não encontrar nome melhor» – um deus que ri com as coisas dos homens – como companheiro de percurso; a (auto)ironia como expediente salvador.
Do seu percurso intelectual e cívico, António Alçada Baptista (29 de Janeiro 1927- 7 de Dezembro de 2008), nascido na Covilhã, deixou retrato lúcido: «Julgo que sou talvez um ser que se foi fazendo metido numa história pessoal, cercado de várias e complexas circunstâncias, criado num mundo de hábitos e valores que ainda estão longe daquilo que sinto a promessa e que nada mais me resta que amar os outros. E que isto só pode ser feito com liberdade.»
Figura marcante da cultura portuguesa do século XX e da universal «cultura dos afectos», ensaísta, ficcionista, memorialista de excepção, fez má cara ao estatuto do intelectual, preferindo assumir-se como um «boémio do espírito», iniciado nas tertúlias de Lisboa após a sua formação jesuíta no Colégio de Santo Tirso.
Licenciado em Direito pela Universidade de Lisboa, cedo abandona a advocacia para se lançar decididamente na aventura da Moraes, uma editora de grande significado cultural que dirige até 1972, responsável pela publicação de jovens autores portugueses, mais tarde nomes consagrados da literatura como Alexandre O’Neill, Jorge de Sena, Maria Velho da Costa ou António Ramos Rosa. À sombra dessa editora faz nascer O Tempo e o Modo, uma revista de pensamento e acção em torno do catolicismo dito progressista por ele dirigida entre 1963 e 1969.
Figura multifacetada, António Alçada Baptista teve outras Casas: o Centro Nacional de Cultura, onde assumiu a sua militância cultural; o Instituto Português do Livro, a cujos trabalhos de criação presidiu enquanto funcionário da Secretaria de Estado da Cultura, onde se manteve como presidente entre 1978 e 1986 e no âmbito do qual estreitou as relações culturais de Portugal com o Brasil e com os países africanos de língua oficial portuguesa; a Fundação Oriente, onde exerceu as funções de administrador e consultor.
Da originalidade da sua voz intimista (num tempo em que dominava a voz social) e do seu modo interrogativo de ser fala-nos privilegiadamente Peregrinação Interior I – Reflexões sobre Deus (1971), o emblemático limiar de uma sequência de sucessos editoriais. A publicação regular de crónicas – escritas naquelas regras de estilo que ele próprio criou, numa postura de perplexidade avessa a tensões e num tom desprendidamente irónico – converte-se, no início dos anos ‘70, num dos eixos significativos da sua actividade de ultra-comunicativo, com colaborações na imprensa periódica (A Capital, O Semanário), na Televisão e na Rádio. Algumas das suas crónicas encontram-se reunidas em O Tempo nas Palavras (1973) e A Cor dos Dias – Memórias e Peregrinações (2003).
Entre a vasta e multímoda obra que nos entregou figuram Documentos Políticos (1970), um livro construído em torno de algumas intervenções feitas por ocasião da campanha eleitoral que em 1969 fizera para a Assembleia Nacional, pela Oposição Democrática; Conversas com Marcello Caetano (1973); Os Nós e os Laços (romance, 1986), Catarina ou o Sabor da Maçã (novela, 1988), Tia Suzana, meu Amor (romance, 1989), O Riso de Deus (romance, 1994), livros que, como observou, contradizem André Gide, quando este dizia que, com bons sentimentos, não se podiam escrever romances. Refira-se também A Pesca à Linha – Algumas Memórias (1998), obra onde se afirma como inveterado «coleccionador da pequena história», Um Olhar à Nossa Volta, a dar testemunho de uma vivência colectiva marcada pelas inquietações político-sociais das décadas de ’60 e ’70.
António Alçada Baptista – Tempo Afectuoso (2007, Editorial Presença) é a significativa homenagem dos que com ele privaram.