O Meridional celebra este ano um quarto de século, contando já com 54 produções no currículo, espectáculos que foram levados à cena em 20 países dos cinco continentes, um trabalho reconhecido pela crítica e pelos pares, com prémios, distinções, e que, acima de tudo, conta com um afecto imenso do público que foi seduzindo, estimando e estimulando como se se tratasse de uma comunidade. Um traço distintivo do Meridional, acentua Miguel Seabra, é a forma como privilegia a proximidade com o público, «num teatro de ligação directa com ele». Partilhando com Natália Luíza a direcção artística da Companhia, Seabra diz ao Sol que toda a experiência que acumulou ao longo dos últimos anos só o faz exigir de si mesmo e daqueles com quem trabalha que o teatro seja encarado como uma aprendizagem constante. «Por mais experiência que se tenha, a construção de um espectáculo é sempre um processo que nos obriga a começar do zero». E para ilustrá-lo, para exemplificar a relação de vigilância que mantém consigo mesmo, recorre a uma parábola oriental: «Guardo aquela história do mestre chinês que tinha um aluno muito aplicado e que um dia disse: ‘Mestre, já cumpri o ciclo consigo e quero ver o mundo’. Ao que o mestre disse: ‘Vai’. Alguns anos depois o aluno voltou. Muito entusiasmado, empolgado por contar as suas viagens ao mestre. ‘Então, o que aprendeste?’, perguntou o mestre. E ele começou a debitar as suas experiências, num exaltado e incessante relato. E ouvindo, o mestre que estava a servir o chá, não parou mesmo depois de encher as chávenas. Ao ver que o chá transbordava o aluno interrompeu-se: ‘Cuidado mestre, está a entornar tudo’. Ao que o mestre lhe respondeu: ‘Pois é como tu estás. Tão cheio que não te cabe mais nada dentro, e por isso não temos mais nada a falar’.»
A itinerância no ADN
O Meridional nasceu de um encontro de quatro rapazes numa oficina de Commedia dell’arte em Itália. Um italiano, dois espanhóis e o português. Isto em 1991. Hoje, o elemento que restou do quarteto fundador deste «seminário de sonhos», fala na história do grupo entrelaçando as suas raízes com os próprios mitos da história portuguesa. Assim, conta-nos como aqueles amigos que, como tantos, tiveram a ideia de fazer um espectáculo juntos, servindo-se das técnicas que aprenderam no tal curso, acabaram realmente por se encontrar em Lisboa e ensaiar uma peça que viria a estrear no festival de Casablanca, em Marrocos, onde ganhou o prémio de melhor espectáculo. A primeira produção do Teatro Meridional foi assim Ki Fatxiamu Noi Kui? – Que Fazemos Nós Aqui?, num italiano macarrónico.
Entretanto, o italiano saiu, e, até 1999, o grupo prosseguiu a aventura como «um barco ibérico», parando nos portos disponíveis para apresentar espectáculos bilingues, persistindo as «aulas práticas» no trilho da tradição teatral mediterrânica, numa escola que explorou outras técnicas além da commedia dell’arte, como as da máscara, do clown e do contador de histórias. Até que, em 2000, houve «uma espécie de Tratado de Tordesilhas» e o Meridional, ramificou-se: um em Espanha, com Álvaro Lavín e Julio Salvatierra, e outro em Portugal, com Miguel Seabra e Natália Luiza.
A Fábrica de Fantasias
Antes de ganhar um ponto de ancoragem, em 2005, esta companhia nasceu itinerante e foi sobretudo uma vontade, um imenso desejo levado às costas. «A itinerância está no nosso ADN: a deslocação, a convivência e o confronto – no bom sentido – com outros públicos, outras sensibilidades…», diz o director artístico. Desde a sua fundação, em 1992, e até àquele ano, não houve casa. Hoje, já tem uma, e junto ao Tejo: um edifício altivo, com ar de fábrica, que se reformou para se dedicar à fantasia, metido a uma esquina com o aprumo dos seus tijolos vermelhos, vivos, desenhando de fora um charme muito peculiar. Fica no Poço do Bispo, numa dessas periferias que vêem a pinta industrial ganhar os sinais de vida que perde o coração da capital ao tornar-se alimento para a formiga turística.
Para assinalar estes 25 anos, o Meridional planeou um percurso pela sua história, revisitando ao longo do ano um conjunto de espectáculos que, além do sucesso junto do público, são representativos das principais linhas de atuação artística da companhia. Até Novembro, altura em que o espectáculo comemorativo irá estrear-se, estarão em cena todos os meses reposições, criações originais e acolhimentos. De momento, e até 5 de Fevereiro, está em cena a primeira de seis reposições: Al Pantalone, um espetáculo que recupera a matriz da commedia dell’arte, com texto de Mário Botequilha (um dos elementos do “Inimigo Público”), e que primeiro foi levado à cena em 2014, tendo sido então distinguido com o Prémio do Público (FIT Almada 2014) e Prémio Nacional da Crítica (Ass. Port. Críticos de Teatro).
O teatro na era digital
Na figura de Seabra não é difícil entrever os traços do retrato robô que nos ditou nos seus versos o Nobel da Literatura sueco Tomas Tranströmer: «O mistério do director de teatro/Esfalfado de trabalho!/ Essas constantes novas encenações…(…) Há um tipo de sonhar, fora-do-nosso-alcance/Que é contínuo. Luz para outros olhares./Zona onde pensamentos que rastejam aprendem a andar./ Rostos e figuras são reagrupados.»
Seabra explica-nos como o teatro vive nos nossos dias «numa corda bamba em termos de comunicação». O teatro que não procura estar a par da nova era digital, que resiste ao sentido de urgência ditado meramente pela aceleração, à vertigem de uma queda menos livre do que potencialmente fatal. «Num momento em que tudo é descartável e facilmente substituído, o teatro, o seu respeito no uso da palavra, da imagem, a sua forma de lidar com o tempo, que não é tão dinâmico como o cinema, os vídeos na internet…, é um pau de dois bicos». Criar hoje é um acto delicado e que exige coragem, sublinha, adiantando que o teatro pode revelar-se uma experiência brutal em sentidos diversos e até contrários. «Brutal como má experiência – algo que uma pessoa não quer repetir nunca mais –, ou brutal pela positiva, nos casos em que se sai da sala a sentir aquela experiência como necessária até para se sentir vivo.»
Insistindo na componente humanista desta arte, Seabra refere como «o teatro é um dos polos resistentes onde as pessoas ainda se encontram», exige que estejam presentes e em contacto. Este actor, antes de mais, que, por arrasto, se revelou um encenador excepcional, alguém que acompanha sempre os espectáculos na estrada, participando nas peças ou não, quer assumindo a responsabilidade pelo desenho de luz, quer por qualquer outro dos imponderáveis que vão surgindo, sublinha como o teatro, pela sua própria natureza, se distingue da «falsa proximidade da era digital».
Um modo de vida
«Resistir é vencer» disse Seabra há uns dias ao público que estava reunido para ver Al Pantalone, recordava o lema do movimento que se empenhou na independência de Timor, disse-o depois de insistir para que não nos esquecêssemos de desligar os telemóveis e disse-o como se nem tudo estivesse perdido no tristemente histórico dia da tomada de posse de Donald Trump. Dias depois esclarecia ao Sol que «resistir não significa necessariamente lutar. Uma atitude de resistência é de amor também, um desejo de regeneração, uma vontade de repensar as coisas, reviver, recriar. Uma das dificuldades mais bonitas que esta arte nos oferece é a de reverter-se necessariamente num modo de vida. Estar no teatro é uma opção de vida, não é de todo uma profissão. Não tem princípio e fim.»
Quanto à acção do Meridional, se é a face mais visível da companhia, Seabra vinca que este não seria possível nem teria existido se não fosse por Natália Luíza. «Ela esteve na génese da formação do grupo, sendo determinante nos primeiros anos, embora estivesse nos bastidores. Em 2000, emergiu do segundo plano para o primeiro, assumindo a direcção do projecto comigo. E se a direcção artística é composta por nós dois, a direcção pensante conta também com a Mónica Almeida, que supervisiona a gestão, e assim as grandes opções são decididas a três.»
Uma qualidade fulminante
Numa companhia que não tem actores residentes, e que a cada produção forma uma nova equipa, segundo Seabra há outra pessoa que é hoje indissociável da história do Meridional: Marta Carreiras. Responsável pelo trabalho de cenografia e pelos figurinos, conta como ela acompanha diariamente os ensaios e como esse cuidado se reflecte depois no seu trabalho, investindo nas coisas que talvez só uma pessoa no público seja capaz de notar, mas lutando por essa diferença secreta, esse extra que concentra de forma ideal a grandeza do teatro, ou seja, algo «disponível só naquele instante!». Voltando aos versos de Tranströmer: «Amanhã está tudo apagado./ O mistério deste esbanjamento incomensurável!»
Neste sentido, o director artístico do Meridional lembra um conceito budista que lhe é particularmente caro: o da impermanência. Refere que já não somos os mesmos desde que começámos esta conversa, e que essa noção lhe serve também para o manter desperto, alerta, vigilante. Refere ainda a lição de Ariane Mnouchkine, fundadora do Théâtre du Soleil em Paris, Seabra caracteriza o teatro como a arte do aqui e agora: «ontem já não conta e amanhã ainda não existe». E para o ilustrar fala do AVC que sofreu há cerca de 20 anos, pouco antes de entrar em palco e como este lhe deixou no corpo os sinais de uma trituração, um aviso contra a ideia de pensar que sempre sobra tempo para fazer as coisas que temos como urgentes. De algum modo este actor encarnou essa força, e por qualquer razão é-nos menos fácil imaginar que o que lhe comeu a fluidez nalguns gestos, foi a consequência de um derrame, um corte bruto na luz que viaja entre os olhos. A sensação que dá ao vê-lo exprimir-se com a graça de quem luta para estar à tona de si mesmo, é a de ver alguém atingido por um raio, algo que veio lá de cima num espasmo cósmico e aterrou num homem, deixando-o manco, braço direito caído ao longo do corpo. Como se as linhas na cabeça estivessem com uma tal voltagem que se tivessem tornado condutoras de um excesso eléctrico, e é como se Seabra tivesse sido atropelado, mas se levantasse uma vez e outra como alguém que simplesmente não admite ser interrompido.