Apelidada por muitos (particularmente pelos próprios) como a maior democracia do mundo, a nação norte-americana chegou ao fim da primeira semana em funções do seu novo presidente, envolvida numa nuvem de incerteza e caos, com a ocorrência de protestos, detenções, interrogatórios e rumores de deportações pouco habituais num Estado democrático.
Donald Trump bem avisou, durante a campanha presidencial, que iria impor restrições à entrada de imigrantes e refugiados nos EUA, particularmente daqueles cuja nacionalidade representa, segundo o republicano, uma “ameaça à segurança nacional” norte-americana e à semelhança de outras promessas eleitorais que foram sendo passadas para o papel ao longo da semana – como o início do processo de abolição do Obamacare, a oficialização da intenção de construção do muro de separação com o México ou a retirada dos EUA do acordo comercial transpacífico – tal aviso transformou-se mesmo em realidade, na passada sexta-feira, com a publicação de uma ordem executiva presidencial, de natureza discriminatória e, aparentemente, contrária à Constituição norte-americana.
São, então, sete os países cujos cidadãos foram riscados pela administração Trump, durante os próximos 90 dias: Iémen, Iraque, Irão, Líbia, Síria, Somália e Sudão – curiosamente todos albergam uma população maioritariamente muçulmana, mas o presidente recusa descrever este plano de controlo da imigração como “anti-Islão”, na mesma linha que o levou a alterar a promessa eleitoral de “banir a entrada a todos os mulçulmanos” nos EUA, para defender ‘apenas’ o “veto extremo”. Na apresentação do documento, o chefe de Estado fez questão de lembrar os ataques do dia 11 de setembro de 2001, como um momento histórico que sustenta a necessidade de os EUA se protegerem contra a ameaça terrorista. Algo que não deixa de causar estranheza, tendo em conta que os responsáveis pelo sequestro dos aviões comerciais que semearam o terror naquele dia eram de nacionalidade saudita, egípcia e libanesa, três Estados que não estão englobados no grupo dos escorraçados, sendo que, no caso do primeiro, os norte-americanos até têm uma aliança económica e militar vigorosa.
Além da medida referida, justificada pela administração Trump como “necessária”, enquanto não se desenvolve um sistema de controlo mais condizente com aquilo que a presidência quer para o país, a ordem executiva pressupõe ainda, entre outros pontos polémicos, a suspensão do acordo nacional de acolhimento de refugiados, durante 120 dias, sendo que, para o caso dos que tenham nacionalidade síria, essa suspensão fica decretada por tempo “indeterminado”.
Aeroportos a ferro e fogo
Ao impacto simbólico inerente de uma ordem executiva deste tipo, há que acrescentar a forma como a mesma afetou diretamente centenas de pessoas nos últimos dias, já que o departamento de Segurança Nacional fez por executar as medidas às primeiras horas da manhã de sábado. A imprensa norte-americana revela que vários passageiros foram impedidos de embarcar nos aeroportos de origem, e há relatos de pessoas detidas, ou cuja entrada foi barrada, à chegada ao território norte-americano. Entre elas, incluem-se, por exemplo, membros de tripulação e até cidadãos possuidores do green card, o documento oficial de autorização de residência nos EUA.
Citado pelo “Washington Post”, Donald Trump garantiu que a aplicação da sua ordem executiva estava a “decorrer muito bem” e apelou às pessoas para verem o “bom trabalho” que se está a processar nos aeroportos norte-americanos, mas a desordem foi mesmo real, ainda para mais ampliada pelas centenas de manifestantes que resolveram marcar presença para protestar e solidarizar-se com os visados da ordem presidencial, incluindo diversos advogados especializados em migrações, dispostos a esclarecer as pessoas.
Falar em deportações nos EUA em 2017 quase pareceria um cenário hipotético, retirada de um qualquer livro de História, Relações Internacionais ou Direito Internacional Público, mas foi uma hipótese real durante todo o dia de sábado. E só não passou de hipótese a realidade porque Ann Donnelly, uma juíza federal de Brooklyn, bloqueou essa possibilidade às autoridades migratórias, face à queixa interposta pela American Civil Liberties Union (ACLU), em nome de dois cidadãos de nacionalidade iraquiana que foram detidos ao chegar ao aeroporto JFK, em Nova Iorque, mesmo tendo vistos de entrada válidos.
A decisão da juíza foi replicada por outros tribunais federais, em Seattle, Boston ou Virgina, mas o seu caráter é apenas temporário, já que tem uma validade de apenas três semanas. Em resposta, o departamento de Segurança Nacional garantiu que irá cumprir as ordens judiciais, mas não se mostrou disposto a abrandar o cumprimento do plano da presidência, no que toca à proibição de viajar que impera sobre as pessoas descritas no decreto presidencial. “A proibição de viajar continuará a vigorar e o governo dos EUA detém o direito de revogar vistos, a qualquer altura, se for requerido por questões de segurança nacional ou pública”, anunciou em comunicado.
Fúria e solidariedade
Trump prometeu não voltar atrás na sua missão de impedir a entrada de determinadas pessoas nos EUA e, no domingo, partilhou uma mensagem no Twitter onde defende a necessidade de “fronteiras sólidas” e “controlo extremo”, para que os EUA não testemunhem a “confusão horrível” que se verificou na Europa.
Mas o mundo reagiu em fúria contra o caráter xenófobo e discriminatório da ordem executiva e em solidariedade. Se o Irão e Iraque prometeram medidas de retaliação semelhantes, o primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, apostou numa posição solidária e prometeu abrir as portas do país a todos os que estiverem a “fugir da perseguição, do terror e da guerra”. Já Angela Merkel defendeu que “a luta contra o terrorismo não justifica a colocação de pessoas de determinada origem ou crença sob uma suspeita generalizada”. Segundo um porta-voz da chanceler alemã, citado pelo “Guardian”, Merkel chegou mesmo a telefonar ao presidente norte-americano, no sábado, para lhe “explicar” como funciona a Convenção de Genebra sobre os refugiados.
A indignação alastrou igualmente ao mundo das artes. O realizador iraniano Asghar Farhad – nomeado para um Óscar na categoria de melhor filme estrangeiro – anunciou que não irá marcar presença na cerimónia, em protesto contra a medida. No desporto, o capitão da seleção de futebol norte-americana, Michael Bradley, admitiu sentir-se “triste e envergonhado” e Mo Farah, campeão olímpico pelo Reino Unido, de origem somali, que vive nos EUA há vários anos, confessou que terá de dizer aos filhos que não tem a certeza se poderá voltar para casa. Numa mensagem publicada no seu Facebook, Farah ainda deixou no ar uma constatação triste, mas curiosa: “A Rainha [de Inglaterra] fez-me cavaleiro [e] (…) o presidente Donald Trump transformou-me num imigrante ilegal”.
A justiça federal pode muito bem ter travado temporariamente a hipótese de deportação e mesmo que consiga alargar o prazo ou mesmo pôr um fim legal a essa possibilidade, dificilmente conseguirá contrariar o ambiente de intolerância e desconfiança vivido na sociedade, ainda mais instigado pela decisão do presidente dos EUA. Hoje começa a segunda semana da presidência de Trump e a contar pelo final da que passou, espera-se turbulência para lá do Atlântico.