A figura que começou por passear no Chiado e que fez fotografar, nua, em poses de discóbolo, revelou-se, ela própria, uma arma poderosa, apontada à pudicícia burguesa, toda rubor nas faces.
Arrasador, anti-convencional, «bem feito e muito português», no comentário de Amadeo de Souza-Cardoso, o Manifesto Anti-Dantas e Por Extenso (1915), peça única da vanguarda e da arte de insultar, com primeira impressão em papel de embrulho (rapidamente esgotada pela acção de Júlio Dantas) vem extensamente assinado: «José de Almada-Negreiros, Poeta d’ Orpheu, Futurista e Tudo». Assim se apresentava o co-fundador das revistas Orpheu, Athena, Portugal Futurista e Sudoeste, homem de reconhecido talento e inventiva que viveu o tempo suficiente para ser, à vez, pintor – com estudos feitos em Lisboa, na Escola Internacional, e em Paris –, desenhador, poeta, romancista, crítico-panfletário, ensaísta, dramaturgo, muralista (ofício amplamente exercido em Espanha, onde reside entre 1927 e 1932), vitralista (afrontando os dogmas da Igreja), gravurista, caricaturista, bailarino. Tudo o que pertence ao fazer artístico, num caso único e impressionante que só o toque de génio explicará. A geometria e o número, de cuja pesquisa obsessivamente se ocupou, são um fascínio que a tapeçaria do Tribunal de Contas de Lisboa «O Número» (1958) torna visível.
Incapaz de se manter no círculo da cultura estabelecida, faz sair, em 1923, A Cena do Ódio, onde pela primeira vez inclui uma imagem de si próprio como parte integrante da ficção que pretende criar, oposta à mediocridade burguesa: «Ergo-Me Pederasta apupado d’imbecis,/ Divinizo-Me Meretriz, ex-líbris do pecado,/ e odeio tudo o que não Me é por Me rirem o Eu». Referência obrigatória do universo literário e provocador de Almada, é um profético e iconoclasta poema de guerra que, obedecendo a um plano de terrorismo retórico e a um ímpeto de violentação verbal, causaria estrondo, tivesse sido publicado, como previsto, logo em 1915, data em que foi escrito, era a Primeira Guerra Mundial na Europa.
«A guerra é a grande experiência» – afirmou. E declarou-a, sem ambiguidade, a Camões e a Dante, entre outros exemplos do passado que queria substituídos pelos criadores do século XX, os «génios da invenção»: Amadeo («É mais importante a descoberta da pintura de Amadeo do que a do caminho para a Índia, porque a Índia foi há quatro séculos» – invectivava), Santa-Rita Pintor, Fernando Pessoa, autor com quem privou, esteticamente também.
Em 1917, anunciava Portugal a aparição da Virgem em Fátima, Almada publicava A Engomadeira, uma novela sensacionista de crítica feroz aos costumes da sociedade lisboeta e seu «descarácter». No mesmo ano, no Ultimatum Futurista, lido no São Luiz, onde se apresentou de fato-macaco, abria fogo sobre as «Gerações Portuguesas do Século XX». A nota final de blague ficou célebre: «O povo completo será aquele que tiver reunido no seu máximo todas as qualidades e todos os defeitos. Coragem, Portugueses, só vos faltam as qualidades».
A Invenção do Dia Claro (1921), colectânea de poemas em prosa que conhecera já uma performance única, enquanto conferência que dava a conhecer o Almada-actor, em realização plena, Pierrot e Arlequim (1934), onde retoma a paixão pelas figuras da commedia dell’ arte, bem como as múltiplas obras de arte que, ao serviço do Estado Novo, executou em edifícios públicos (os grandes murais das gares marítimas de Alcântara e da Rocha do Conde de Óbidos ou as pinturas das fachadas da Cidade Universitária de Lisboa) compõem-lhe o vulto de artista vário, em busca hiperactiva. Os nomes – aprendemo-lo no seu excepcional romance Nome de Guerra (1925, publicado apenas em 1938) – não existem por natureza: conquistam-se e sofrem-se. O de Almada Negreiros, com alguma ironia, academizou-se. Pim!