1.Tem sido uma semana deveras atribulada nos EUA com a actividade frenética do Presidente Donald Trump. Independentemente do nosso juízo sobre as medidas, uma realidade é irrefutável: o Presidente Donald Trump está a surpreender o mundo porque, afinal, cumpre mesmo o que prometeu na campanha eleitoral.
2.Ora, quem é que se lembra de um político que faça, nos primeiros dias da sua campanha, exactamente aquilo que prometeu? É difícil nomear um exemplo. Para o bem e para o mal, o Presidente Donald J. Trump está a honrar os compromissos que assumiu com o eleitorado norte-americano. No entanto, na nossa perspectiva, ainda não se focou nos verdadeiros problemas dos cidadãos norte-americanos.
3.Atentemos, nas próximas linhas, à sua decisão de nomear o Juiz Neil Gorsuch (que exercia funções no tribunal, segundo a nossa terminologia, de recursos que envolvessem questões de Direito federal, do Colorado) para o Supremo Tribunal dos Estados Unidos da América. Esta nomeação reveste-se de uma enorme simbologia: trata-se do juiz que irá ocupar o lugar do juiz Antonin Scalia, uma referência do pensamento jurídico norte-americano (sobre o qual escrevemos longo texto no SOL aquando da sua morte) e um ícone dos republicanos.
Porquê? Porque Scalia fora nomeado pelo Presidente Ronald Reagan e o seu pensamento jurídico traduzia, no Direito, a concepção de sociedade defendida por um dos melhores Presidentes da história dos Estados Unidos. Note-se que Antonin Scalia não adequou o seu pensamento jurídico para servir Ronald Reagan – Ronald Reagan é que escolheu Scalia por se rever no sue pensamento jurídico, teorizado em diversos escritos e testados por uma longa prática judiciária.
Como nós escrevemos no SOL há um ano e meio, a influência de Antonin Scalia mantém-se bem viva nos EUA e em todas as latitudes onde se discute teoria e filosofia do Direito, em termos sérios e empenhados – mais não seja pela obra que nos deixou e pela escola que formou.
4.Um dos representes mais exímios dessa escola é precisamente o juiz Neil Gorsuch, o qual fora colaborador de Antonin Scalia e posteriormente do juiz Anthony Kennedy (ainda em exercício de funções). Ao invés do que foi apresentado pela nossa comunicação social (bem como, para sermos rigorosos, por alguma imprensa norte-americana), defender uma abordagem originalista da Constituição não significa ser ultra-conservador.
4.1.Não significa ser democrata ou republicano. Não significa ser contra ou a favor do aborto. Não significa ser contra ou a favor do casamento homossexual.
Significa tão-só que os preceitos constitucionais devem ser interpretados à luz do significado original das suas palavras. O critério de interpretação das normas constitucionais passa, pois, pela indagação de como os pais fundadores (ou um destinatário médio coevo da aprovação da Constituição) resolveriam uma determinada questão, atendendo à letra, à estrutura e à história da Constituição.
4.2.Perguntará o leitor mais cauto: mas não redundará este método de interpretação constitucional numa sociedade rígida, fixista, natural e absurdamente conservadora? A resposta é negativa.
Primeiro, porque a Constituição consagra princípios estruturais que, por natureza, são imutáveis: a não ser que o Povo, através dos seus representantes, pretenda alterar a ordem constitucional propondo e aprovando emendas ao seu texto.
Segundo, porque o originalismo tem a virtualidade de relembrar algo muito esquecido nos nossos dias: a ideia básica de que o poder judiciário não se pode arvorar numa espécie de “super poder legislativo”, impondo ao poder político democrático uma agenda política em contravenção das propostas sufragadas pelos eleitores das urnas.
4.2.1. O poder judiciário é um limite ao poder político da maioria: mas não é, sob pena de quebra da fidelidade à Constituição, um substituto, um superior hierárquico ou sequer o último reduto de defesa dos interesses da elite dominante contra o poder democraticamente legitimado.
Dizer-se que a interpretação da Constituição tem uma componente política – é bem diferente de se dizer que a interpretação da Constituição, feita pelo poder judiciário, é “a” política. Além disso, o poder político, dotado de poderes de revisão constitucional, poderá sempre alterar a Constituição.
É difícil modificar o texto constitucional? É: mas foi a opção do poder constituinte originário que se manteve por várias e várias gerações até aos nossos dias. E sempre se poderá argumentar que uma vez modificado, para diminuir a sua complexidade, o processo de revisão constitucional se tornará mais fácil daí em diante.
5.Em suma, a nomeação de Neil Gorsuch foi uma decisão sensata e muito inteligente do Presidente Donald Trump: dificilmente poderíamos conjecturar um nome mais qualificado para o exercício das funções que durante décadas pertenceram a Antonin Scalia.
Por conseguinte, os americanos deverão apelar ao sentido de responsabilidade do Partido Democrata: a sua oposição à nomeação de Gorsuch é uma batalha perdida e incompreensível. Até porque os democratas aprovaram juntamente com os republicanos o mesmo juiz Neil Gorsuch para o Tribunal Federal de Recursos do Colorado.
6.Por outro lado, os Democratas devem evitar cometer uma injustiça gritante e histórica como a que cometeram, na década de 80, quando recusaram a nomeação do (brilhante) juiz Robert H. Bork para o Supremo Tribunal dos EUA, após nomeação do Presidente Ronald Reagan.
A injustiça, e até má fé, dos democratas foi tão evidente que na língua inglesa se criou um novo verbo: “to bork”, que significa obstruir, impedir sem razão, recorrendo à insídia. Esperemos que a próxima edição do Dicionário da Oxford não inclua um novo verbo: “ to gorsuch” como sinónimo de “to bork”.
7.Face ao clima de loucura que se apoderou do mundo perante a eleição e entrada em funções do Presidente Trump, esperemos que o Partido Democrata dê o exemplo de patriotismo e democraticidade que se impõe. Como afirmou Joseph Warren, herói da Revolução da Independência Americana, Presidente do Congresso de Massachusetts, “ you (american citizens) are to decide the importante questions upon which rest the happiness and liberty of millions yet unborn – act worthy of yourselves”.
É isto que se exige ao Presidente Trump, aos Republicanos e aos Democratas, enfim, a todos e a cada um dos cidadãos americanos: act worthy. Ajam de acordo com a história e a grandeza da República constitucional, democrática e liberal, que são os Estados Unidos da América. Act worthy of yourselves.