Almada e os portugueses nunca combinaram, e deram-se até bastante mal. Talvez isso comece pelo medo que sentem estes face aos génios. Põe-se desde logo o problema de como reagir-lhes, o português preocupa-se sempre com o seu papel na história pequena que conta de si. Mas se Almada, como notou Ruben A., «dizia coisas definitivas, colocava um ponto final no começo, coisa rara neste mundo de aprendizes em que vivemos», essa capacidade de dar a volta podia surgir como um ultraje, como falta de educação. Sabemos do amor português pela etiqueta, pelos modos e usos que são de usar, e, inversamente, do horror a sentirem-se pendurados. É até uma questão muito prática: como arrumar os gestos perante um ser Novo, que ideias se aguentam, que frases polir? Sentir-se-ão observados sabe-se lá de que alturas. Um pouco como ter um encontro fatal, há aqueles que são frágeis na constituição e sentem que têm uma vida só, sempre sob risco. Essa ideia do medo português está em todo o lado, mas é Maria José De Almada Negreiros quem, na sua ‘espécie’ de biografia – Identificar Almada – dedicada ao seu sogro, relata um encontro com uma catedrática italiana que estudava os nossos modernistas e notou essa incomodidade portuguesa. Ora, Almada era essa figura breve com uma presença absurda, a começar pelos olhos grandes como se os inflamasse a sua visão. Era ele o que andava por cima das mesas dos cafés, atirava foguetes à porta da Brasileira, fazia um show off constante… e isto para ver se acordava o país, por sentir «a necessidade que Portugal tem de ser qualquer coisa de asseado», refere, citando-o, a nora na sua ousada, tocante e inspiradora biografia. «Ah, os Portugueses, que povinho estranho, com esta maneira de ser pequenina e invejosa que acaba por funcionar como autopunição!», escreve em certo momento, refletindo as muitas baixezas com que foi tratado o modernista português que mais viveu, e que da sua obra disse isto: «Tudo o que fiz é a minha vida inteira como é a minha vida inteira tudo o que faço: É sempre serviço meu à humanidade; se serve não é meu, se não serve é meu».
Descobridor da novidade
Agora que está morto, e, com ele, os mais indignados alvos das suas lendárias cenas de ódio, o mito já é seguro, admirá-lo já é uma forma de dizer que afinal também tivemos direito à nossa grandeza artística, e chegou definitivamente a hora das grandes honras. José de Almada Negreiros: uma maneira de ser moderno surge cerca de um quarto de século depois da última grande exposição que lhe foi dedicada. A ampla retrospetiva, que conta com mais de quatro centenas de obras, um quarto delas inéditas, arrancou esta semana na Fundação Calouste Gulbenkian, e irá marcar a agenda com uma forte programação complementar, com mesas-redondas com vários investigadores de diferentes áreas, visitas guiadas às gares marítimas de Alcântara e da Rocha do Conde de Óbidos, em que Almada deixou painéis a fresco, um espetáculo de teatro infantojuvenil, a exibição do multimédia Almada, Um Nome de Guerra, realizado por Ernesto de Sousa, um concerto integrado na temporada Gulbenkian Música e ainda um ciclo de cinema na Cinemateca Portuguesa com filmes a ele ligados.
Distribuída por duas grandes galerias do edifício-sede da fundação, esta antológica traz contudo um novo alcance e até alguma surpresa na forma de mostrar a capacidade do artista de impôr-se como um dos nossos mais legítimos descobridores da novidade. E fiquem descansados todos, pois ainda não é esta a exposição em que os portugueses terão de se haver com Almada, porque o espelho que este colocou ferozmente e a toda a altura do país para que este se olhasse e tivesse vergonha de si, esse continua virado sobre alguma parede.
É sobretudo o fulgurante artista na diversidade das linguagens em que, mais do que fluente, provou um singular virtuosismo oficinal aquele que nos é mostrado. Mariana Pinto dos Santos, a historiadora de arte que assina a curadoria da exposição em colaboração com Ana Vasconcelos, conservadora do Museu Calouste Gulbenkian, refere que a obra de Almada «é exemplar porque nos permite repensar de um modo abrangente os modernismos e a sua hibridez».
O mesmo sopro vital
Nascido a 7 de Abril, quando faltavam 7 anos para o começo do século de cuja arte ele foi uma prodigiosa síntese, Almada, que tinha uma particular sensibilidade pelo lado misterioso e cósmico da realidade que tem o seu reflexo preso aos números, terá revelado à mulher, a pintora Sarah Affonso, que ia morrer no ano de 1970, com 77 anos. E assim foi, em 15 de Junho, deixando atrás de si quase 60 anos de atividade pública, como desenhador, pintor, vitralista, autor de tapeçarias, gravador, poeta, romancista, novelista dramaturgo, conferencista, bailarino, actor de cinema.
Um dos aspectos centrais na mostra que estará patente até 5 de Junho na Gulbenkian passa por romper com a ideia de fragmentação na obra de Almada, e mostrar que toda ela é percorrida e animada de um mesmo sopro vital como, de resto, já o havia sinalizado perfeitamente David Mourão-Ferreira: «Toda a sua obra nos oferece um admirável exemplo, porventura único em todo o mundo, de poesia total, numa frase sincrética, milagrosamente anterior às nossas pobres, esquemáticas e escolares divisões da poesia em géneros, da Arte em ‘artes’».
Nos sete núcleos temáticos em que a exposição se organiza constrói-se um percurso que rompe com a hierarquia entre os diferentes suportes, meios e técnicas, há uma tentativa de captar o sentido de expansão do menino de olhos de gigante, aquele que deixou bem claro isto: «As pessoas que mais admiro são aquelas que nunca acabam». É natural assim que as obras de Almada nesta mostra não sigam uma lógica historiográfica, não estejam alinhadas segundo etapas, mas reflitam «a inesgotável energia criativa» de um autor que se ergueu tão alto e alcançou tão longe que se impôs como «um farol na sua época».
O cuidado e a inteligência evidenciados na organização dos trabalhos de Almada conferem a esta mostra um efeito de espetacularidade, e se as peças são espantosas por si, as relações que estabelecem, os reflexos que encaminham, criam uma sensação de movimento e até de narrativa, como se uma peça tivesse a chave da outra, se abrissem e explorassem, como se os nossos passos perdidos entre elas nos fizessem partilhar a própria alegria visionária de Almada. Como notou Vítor Falcão: «Não há um desânimo, não há um desvio, não há uma transigência na acção revolucionária e demolidora exercida por Almada Negreiros. Não se nota uma paragem, uma incoerência, uma incerteza na sua acção construtiva e inovadora».
«Tinham medo da estupidez»
O que temos assim é o próprio festejo destas obras ao verem-se reunidas. A forma como um pequeno desenho, um esquisso, uma experiência ou brincadeira dessas que acabavam perdidas nas mesas dos cafés ou confiadas às mãos dos amigos que por elas mostrassem algum apreço, surgem junto das grandes pinturas. Há, portanto, um resgate de minudências espantosas que não se acanham por estar ao lado das obras mais conhecidas do artista, aquelas que nos são hoje de tal modo familiares que se tornaram ícones do nosso modernismo. E nisto a exposição alcança o enorme mérito de nos fazer respirar o ar de um outro tempo, fervilhante, estrondoso e com ânsia de maravilhar e provocar, nos espíritos sufocantes, aviltamento. Maria José Almada Negreiros ilustra bem a diferença que se sente de lá para cá, dizendo que «nestas poucas dezenas de anos deu-se uma grande mudança relativamente à Criação. Há uma ânsia em mostrar-se, parece que a água vai acabar. Ora o importante para Almada e os companheiros era fazer. Pouco lhes interessavam as famas, só não queriam ouvir coisas estúpidas. A estupidez era do que tinham mais medo».