Bruno de Carvalho: ‘O dia em que eu despedisse Jorge Jesus era o dia em que estava completamente louco’

Aos seis anos já dizia que queria ser presidente do Sporting e durante dez anos  andou a preparar-se para assumir o cargo. Tirou um mestrado em Gestão Desportiva e até fez o curso de treinador. Mas não discute táticas com Jorge Jesus – embora goste de sentar-se no banco, sabe qual é o seu papel…

A equipa de Alvalade está a fazer uma época dececionante, o que motivou o aparecimento de duas listas da oposição às eleições de 4 de março: a candidatura de Pedro Madeira Rodrigues e uma outra candidatura independente ao Conselho Leonino, liderada por Gonçalo Nascimento Rodrigues.

Bruno de Carvalho, no entanto, está plenamente convicto de que o clube que dirige se encontra no caminho certo e diz que despedir Jorge Jesus seria um ato de loucura. O presidente do Sporting recebeu-nos no seu escritório, que tem uma vista privilegiada sobre as bancadas e o relvado, para duas horas de conversa animada. Ao ver a quantidade de perguntas que preparámos, comenta com ironia: «Ainda vou adormecer!». Obviamente não adormece. Pelo contrário, mostra sempre a energia e a combatividade que se lhe reconhecem.

Vai continuar a ver os jogos do banco?

Com certeza.

Nunca pensa mudar essa abordagem? Talvez para ter outra visão do que se passa no jogo?

Já disse várias vezes que dali vê-se muito mal. Mas estou no banco por dois motivos. Primeiro, porque sempre achei que qualquer líder tem de estar muito próximo daquilo que é o seu – e agora vou utilizar uma palavra pesada – negócio. Temos 50 modalidades, e toda a gente sabe que adoro as modalidades amadoras, mas aquilo que faz mexer milhões e milhões de corações, e muito dinheiro, é o futebol. Em segundo lugar, dali conseguimos ter uma visão da área técnica, dos delegados, das equipas de arbitragem, dos meandros, de detalhes que estão a acontecer, o que ajuda para fazer propostas, a lançar críticas, a tomar decisões sobre o futebol com conhecimento de causa. Sempre foi esta a minha forma de gerir e liderar, sempre me dei bem com ela e, apesar de ser desconfortável, sinto que tem sido muito mais eficaz nas várias tomadas de posição e de decisão que tenho de fazer. O conhecimento direto de causa dá mais trabalho, expõe-nos mais mas dá-nos um nível de conhecimento completamente distinto.

Num jogo de futebol há muita coisa envolvida – dinheiro, empregos, prestígio. Pode descrever a ansiedade que o presidente de um clube sente quando uma partida corre mal? Como lida com isso?

As pessoas às vezes esquecem-se que está ali uma pessoa que tem de pagar aos intervenientes, tem de prestar contas a 3,5 milhões de pessoas só em Portugal, que também sofre pelo clube do qual é adepto… Não é nada fácil gerir isso. Mas aprendemos a gerir o nosso sistema nervoso. No início estava muito mais focado naquilo que era a emoção do jogo. Neste momento estou muito mais focado naquilo que acho que os sportinguistas merecem: vencer, ganhar, ser felizes. Quando não os consigo fazer felizes, é quase como se o mundo desabasse em cima de mim, o meu coração é apertado por 3,5 milhões de corações. A nossa carga emocional é muitíssimo superior à de qualquer atleta, treinador ou adepto, porque nós temos responsabilidade perante todos eles. Mas vou crescendo e aprendendo cada vez mais a controlar-me, o que também me ajuda no dia-a-dia.

Estando tão próximo dos jogadores e da equipa técnica, nunca se sente tentado a intervir?

Não, em momento algum. Na vida todos temos o nosso papel e felizmente eu sempre soube que tenho de desempenhar o meu sem ultrapassar o papel dos outros: um presidente não deve querer fazer o papel de treinador ou de atleta nem vice-versa. Nunca tive esse problema. Só me preocupo em cumprir o meu papel de presidente, assumir as minhas responsabilidades e querer o melhor para este clube e para estes adeptos, que considero um caso raro: todo este sentimento que tenho visto num clube que não ganha há 15 anos… não é para qualquer clube manter esta dimensão, esta paixão e ligação entre os adeptos.

Percebe de futebol, de táticas?

Todos temos a mania que percebemos de tudo. Antes do jogo, as pessoas veem o alinhamento da equipa e estão extremamente satisfeitas. No final, se o resultado não for positivo, as mesmas pessoas já têm milhentas soluções. Eu sou igual a toda a gente, mas estive dez anos a preparar-me. Tirei o curso de treinador – não para o ser, mas porque acho que devo perceber do negócio onde estou a liderar -, fui tirar o mestrado em gestão desportiva, isto tudo para me preparar para cumprir o sonho que tinha desde os seis anos. Não pensava em ser jogador ou treinador, pensava um dia ser presidente deste clube. Por isso é normal que tenha, ainda mais que o adepto comum, a mania de chegar a casa e fazer as minhas equipas, as minhas ideias.

E nunca discute essas ideias com o treinador?

Nunca. Fazemos, isso sim, um trabalho de preparação das épocas seguintes, a abordagem aos mercados. Aí tem facilitado muito o facto de eu não ser propriamente um ignorante na matéria, porque conseguimos sentar-nos, falar, acertarmos um caminho e segui-lo. O treinador sente que o seu discurso é entendido, e o presidente não é um mero elemento de tomada de decisão. É extremamente positivo, como líderes, termos o mínimo de conhecimento para podermos discutir com os nossos homens-fortes com conhecimento de causa. Mas jamais considerar-me treinador, ou alguém que quer falar de técnica e tática com o treinador. Não tenho interesse nenhum nisso; tenho interesse sim em formar plantéis equilibrados, fortes, que possam cumprir os objetivos que estão traçados e que são traçados. E isso tem sido uma das fórmulas do segredo do excelente relacionamento que tenho com o Jorge.

Disse que sonhava desde os seis anos ser presidente do Sporting. Com essa idade já sabia quem era o presidente do clube?

Sim. Era o João Rocha. Tive a sorte de crescer com o presidente que mais tempo esteve no Sporting, e que teve duas visões brilhantes: o ecletismo e a aproximação às pessoas. Para mim, estes dois vetores foram fundamentais: adoro as modalidades e gosto de estar próximo das pessoas, gosto de estar no meio delas, de falar, de conviver, de aprender. 

De onde vem o seu sportinguismo?

Nasci numa família em que não havia ninguém que não fosse do Sporting. E depois, o meu avô, que escreveu a História e a Vida do Sporting, lia-ma repetidamente sempre que eu ia a casa dele. Sempre fui uma criança com vontade de fazer muita coisa, elétrico, não parava quieto. Queria estar sempre a fazer algo, algo, algo, algo. O meu avô, inteligentíssimo como era, percebeu que me acalmava ali durante uma ou duas horas a ler-me a história, e eu ficava estarrecido a ouvir. Para eu adormecer, não era a contar carneirinhos: era a dizer nomes de jogadores. Por isso o Sporting foi sempre um fator de acalmia; hoje é de stress… E depois tive um pai absolutamente fanático. Acredito que esteja feliz por ver o filho cumprir o maior sonho que tinha.

É para dar continuidade a esse sonho que se recandidata?

Agora já não tem a ver com uma questão pessoal, com o sonho em si. O Sporting é um clube cuja época áurea foi até aos anos 60. Depois tornou-se um clube infelizmente com muita tendência para a autofagia, que não contava, até se afastava – da Liga, daqui, dali… Tudo isto obrigou-me a tomar uma série de ações escrutinadas ao milímetro. E a partir do momento em que o Sporting começou a pisar os calos dos outros em termos desportivos, passámos a ser um clube antipático – o que me agrada. O Moniz Pereira escreveu uma música intitulada ‘Valeu a pena’. Eu acho o mesmo, mas com um ponto de interrogação à frente: será que valeu a pena aquele esforço quase desumano? Fiz essa reflexão e o que pesou muito na minha decisão foi o carinho tremendo por parte de dezenas e dezenas de atletas, e um apoio absolutamente fantástico das pessoas a cada sítio que vou, mesmo com estes maus resultados. Se virasse as costas às pessoas sentia-me quase como um traidor. É absolutamente vital para o Sporting consolidar tudo aquilo que se fez. Financeiramente fizemos um caminho tremendo, desportivamente está a ser um trabalho absolutamente fantástico. Não íamos à Liga dos Campeões há anos, do pior campeonato de sempre fomos logo para o segundo lugar, o ano passado podíamos perfeitamente ter sido campeões. Deitar isto tudo a perder… Por isso preferi pôr à frente das minhas dúvidas pessoais o Sporting, um clube que amo, mesmo não me identificando nada com o mundo do futebol. Tenho muitas vezes vergonha de pertencer ao mundo do futebol. É que as pessoas só pensam ‘é presidente de um grande clube, tem poder, chega aos sítios e é conhecido’, mas esquecem-se do outro lado, de dizerem que só por estar no futebol já sou corrupto ou que só me quero promover à custa do clube. E isso é terrível.

Não gosta do estatuto que o facto de ser presidente do Sporting lhe dá?

Não tenho nenhuma obsessão pelo poder. Se vou a um restaurante onde nunca fui e me dizem ‘Dr., está ali a mesa do costume’, eu respondo ‘Peço imensa desculpa, mas nunca vim aqui’. Se pudesse não tinha nenhum protagonismo. Mas a palavra de um presidente tem um eco, o que me obriga a uma presença no espaço mediático quase constante. Não preciso nada disso na minha vida. Faço a minha vida normal e esse poder não contribui para a minha felicidade; pelo contrário. A minha filha mais velha, que vai fazer agora 14 anos, tem cada vez mais consciência destas coisas e já tem chegado ao pé de mim e diz-me: ‘Sabes, pai, hoje foste a pessoa mais falada no Twitter. Mas não te preocupes, sempre que alguém dizia mal eu ia procurar um sítio onde alguém estivesse a dizer bem’. Isto é uma coisa terrível! Até porque a maior parte destas pessoas que dizem estas alarvidades também são pais, mas não têm nenhum pingo de caráter, de vergonha. Não consigo perceber como chegam a casa, se olham no espelho e se vão deitar depois de arrasar completamente outra pessoa com alarvidades e mentiras só porque essa pessoa incomoda. Por que não saio do futebol então? Porque vou fazer tudo para que um dia as pessoas saibam separar o trigo do joio. Atenção que eu não sou nenhum homem de cruzada, nunca iniciei uma guerra, mas tenho valores e princípios.

Nem a guerra dos vouchers?

Não é uma guerra, é factual e está a ser estudado pela Justiça.

E os processos aos ex-presidentes?

Isso também não é uma guerra! Há pouco disse que o Sporting nunca teve estabilidade, e felizmente que não a teve! Porque os resultados foram desastrosos. Em 20 anos passámos de 25 milhões de dívida para 500, e de um ativo de 40 para 100. O Sporting é uma empresa cotada em bolsa, que tem obrigações muito chatas. Vocês não têm a noção do que são os deveres dos presidentes e dos administradores nos conselhos de administração: nós somos responsabilizados pessoalmente! A partir do momento em que vir algo que sente que é estranho, você ou denuncia ou é cúmplice. Portanto, a partir do momento em que foi feita a auditoria e foram detetadas algumas situações anómalas, não tínhamos maneira de não tomar uma atitude. E tomar uma atitude obriga a todo um folclore que vem na lei. Por exemplo: na convocatória, tem de meter o nome da pessoa, o resumo do que ela fez, o valor… Isto é hediondo, é ter de meter as pessoas na praça pública. Mas a lei obriga! É que independentemente de tudo, estamos a falar de presidentes do clube a que eu também presido e a defesa das pessoas e do Sporting é uma das coisas que eu tenho de fazer. Foram postos dois processos, um neste momento foi retirado [José Eduardo Bettencourt] e o outro mantém-se [Godinho Lopes].

Foi retirado por falta de sustentação?

Foi retirado porque, ao fim de fazermos a audição, concluímos que não havia matéria que levasse a que o assunto tivesse de ser dirimido num tribunal. A pessoa está a colaborar com o Sporting numa série de assuntos que têm a ver com processos na câmara relativos ao pavilhão e isso é muito bom. Não havia argumentos e era um disparate mantermos aquele processo, por isso retirámos. Mas isto para dizer que não é uma guerra: teve a ver com lei e com a perceção de lei e a vontade dos sportinguistas.

Mas é algo que nunca tinha sido feito antes…

Aqui! Houve um presidente do Bayern Munique que foi preso… Há uma hipocrisia muito grande: estou sempre a ouvir as pessoas a dizer: ‘Isto não pode ser! São dinheiros públicos! Têm de ser responsabilizados!’. Não há um português que já não tenha dito isto no mínimo mil vezes. Quando se chega a um clube de futebol, tem de ser diferente porquê? Não é dinheiro público, mas é dinheiro dos sócios, dos patrocinadores e dos investidores. Quando eu ainda estava na oposição, ouvi um dia uma pessoa do Sporting que é jornalista mas que não vou revelar quem é dizer, dizer em relação ao anterior presidente que os mandatos são para cumprir até ao fim. E à noite, na televisão, enquanto comentava a atualidade política, dizia que o governo tinha que cair. Ora isto é de uma hipocrisia inaceitável.

Este ano começou a haver críticas à gestão desportiva, por causa dos resultados e do salário de Jesus. Como lida com isso?

É pena é que as críticas nunca sejam circunscritas a isso. Aparecem logo uma série de apreciações de caráter. Eu sei aceitar uma crítica, lidar com ela, não sei é lidar com ataques gratuitos ao caráter, à personalidade. Uma coisa é dizerem ‘Este homem é um péssimo gestor porque A, B, C e D’. Ok, não digo nada. Outra coisa é dizerem que sou um mau caráter, ordinário, que roubo e tiro… É isso que estou a sofrer há quatro anos.

E o que diz em relação ao salário de Jesus?

Aquilo que é bom custa dinheiro. Aliás o povo diz que o barato sai caro. Mas quando aparece algo que é caro já esquecemos esta máxima. E a verdade dos factos é que o Sporting consegue, numa época com o Jorge como treinador, consegue ter um lucro de 63 milhões. Eu pergunto se isto é um treinador que sai caro. Isto nunca aconteceu na história do Sporting. Sei que sou um excelente negociador, mas não negoceio as pedras da calçada: negoceio jogadores que estão a ser altamente potenciados por um treinador que é muito bom. Nos primeiros dias de eu ser presidente as pessoas vinham cá e achavam que eu precisava de dinheiro – e precisava, mas nunca disse – para pagar a luz, a água, e eu sempre mantive a mesma postura. ‘Não preciso de nada’. Queriam levar os jogadores por 500 mil euros ou por um milhão.

Achavam que estava desesperado?

Isso foi só no início. Aprenderam logo com as respostas que eu lhes dei que não valia a pena virem com essa conversa e a reunião demorava dez segundos. Em quatro anos, fizemos a maior venda de sempre do Sporting, e a maior venda de sempre de um jogador português para o estrangeiro. E só estou há quatro anos. Há pessoas que já estão há trinta e tal. É verdade que o objetivo máximo são os títulos, mas há outros objetivos, como receitas, patrocínios… O negócio da NOS é o melhor negócio de sempre da história em Portugal dos direitos televisivos, e também é feito depois de uma época de Jorge. Isto não é retirar o mérito do presidente e de toda esta administração. O que não gosto é que as pessoas estejam sempre a falar sobre quanto é que o Jorge ganha. O Jorge ganha aquilo a que tem direito, corresponde a nível de receitas e tenho a certeza de que vai corresponder a nível de títulos.

Nesta fase mais complicada da época nunca lhe passou pela cabeça despedi-lo?

Nem pouco mais ou menos. Nunca, nunca. Era o dia em que estava-me a acontecer o que acontece aos iogurtes: os iogurtes são muito bons mas têm prazo de validade. A certa altura aquilo começa a estragar e temos de os deitar para o lixo. Era o dia em que eu estava completamente louco, porque pôr em causa o projeto por um mau momento seria não perceber nada do que se está a construir. Não tenho dúvida nenhuma de que muita gente que disse muita coisa vai-se arrepender porque eu e os sportinguistas vamos ser muito felizes com este treinador e acumular vários títulos. Por isso jamais em tempo algum me passou isso pela cabeça. Continuo a dizer: aí era o momento em que o adepto Bruno de Carvalho tinha de afastar o Presidente, porque o Presidente não estava bem.

Mas o presidente está assim tão dependente do treinador?

Não. Vou fazer-lhe uma pergunta: você está assim tão dependente desse pulôver? Não, você não quer é ficar constipado. Mas está dependente, não pode ir nu para a rua.

Mas tenho outros…

Isso é uma pergunta, desculpe lá, enviesada. Você está dependente da roupa? Está, se não anda nu. As pessoas não vão gostar, não é aceite, e em segundo lugar vai-se constipar, porque está um frio descomunal. O que é que significa estar dependente do treinador? Acreditar que ele é o treinador certo para o projeto que tenho de voltar a pôr o Sporting grande é estar dependente dele? Não. É crença, com dados concretos, porque acompanho o trabalho diário, sei perfeitamente que é o treinador ideal para este projeto. Tenho tanta dependência do treinador por achar que é o certo como tenho por me vestir para não me constipar. E pergunto-lhe: alguma vez se disse isso de presidentes que estão há décadas com as mesmas figuras à volta deles? É porque estão dependentes?

Esta pergunta tinha uma segunda parte, que é a seguinte: penso que JJ tem a ambição de ser campeão pelos três grandes…

Pensa ou tem a certeza?

Não tenho a certeza porque não estou na cabeça dele…

O foco total que ele tem neste momento é ser campeão, ganhar títulos pelo Sporting, ser feliz no Sporting e pôr felizes os sportinguistas. Agora, na vida nunca sabemos o dia de amanhã. Hoje estou aqui a falar consigo, gostava de ser eleito, mas se calhar amanhã sou atropelado e morro. Quando começamos a nossa vida o que é que nós queremos? Falando em sentido figurado: ter muitas namoradas. Depois há uma altura em que começamos a dizer ‘Tenho de assentar’. Em vez de ter dez, passa para três. Depois ‘Agora quero casar’. Temos de perceber que a vida vai avançando, não anda de marcha-atrás. 

E está convencido de que ele vai ficar neste casamento para sempre?

Ele tem falado e as pessoas não têm retirado as devidas ilações do que ele diz. Uma coisa é sermos sportinguistas, outra coisa é termos o sonho de vir a treinar o Sporting, outra coisa é apaixonarmo-nos por tudo aquilo que nos envolve. Parece a mesma coisa mas não é. E eu neste momento vejo o Jorge inebriado pela paixão que tem pelo Sporting, que se calhar nem ele pensaria há dois anos que ia ser um sentimento tão forte. Vejo isso até na forma sentida como ele canta ‘O mundo sabe que’ – e ele não está a pensar iniciar agora uma carreira de karaoke… Enquanto presidente é bonito ver como alguém que serve este clube, com aquele currículo invejável, está completamente apaixonado pelo clube. E eu muito contente por isso. Não tem a ver com dependência e muito menos com parvoíces de indemnizações, isso é das coisas mais estúpidas que já ouvi na vida.

O Sporting contratou esta época muitos jogadores que não se afirmaram e, ao mesmo tempo, há a sensação de que no Benfica estão a aparecer muitos valores da formação quando antigamente era o Sporting que dava cartas nesse campo. Esta perceção é correta?

Aceito claramente que houve jogadores que ficaram muito aquém das expectativas. Aceito e assumo a minha culpa. Se calhar alguns não se adaptaram porque o plantel era demasiado grande. Agora há uma crítica que eu refuto completamente: que nos esquecemos da formação. No plantel já estavam oito jogadores da formação, agora estão mais, e vários a jogar. O Sporting está em primeiro ou perto em todos os escalões de formação. E isso diz muito. Na última convocatória para uma seleção nacional de jovens o Sporting era a equipa mais representada. E os jogadores mais cobiçados pelos grandes clubes do mundo são do Sporting.

Refere-se ao Gelson?

Não estou a falar destas vendas que se fazem a clubes que lutam pelas segundas ligas, que são negócios que acontecem no futebol e que são maravilhosos, mas a verdade é que o Sporting tem sob o radar dos grandes vários jogadores – não é só o Gelson. Fizemos contratações que falharam – já admiti, já assumi, não me escondo – mas já reparou que ganhámos dinheiro com esses jogadores? Com um milhão ganhámos em seis meses um milhão e meio com a possibilidade de ganhar mais um. Qual é o investimento que paga isso? O problema não é errarmos – e errar é uma palavra muito pesada para o que fizemos. A ciência é resolver e ainda ganhar dinheiro com isso. 

O Sporting lucrou com esses negócios?

Isso é que é brilhante. E não é os dez milhões que poupamos. Não é isso. Fizemos dinheiro. Resolver como o Sporting resolve olhe que deve ser caso raro no mundo. A verdade é que conseguimos resolver muitos casos sempre a ganhar dinheiro. Pode não ser aquela coisa ‘Vendeu por 15 milhões’. Mas às vezes prefiro vender por 2,5 mas entram nos cofres do Sporting 2,3, do que vender por 15 e entrar nos cofres um milhão. Prefiro cash. Mais orgulhoso ainda fico porque fizemos a maior venda de um jogador português para o estrangeiro e entrou o dinheiro todo, nem comissões houve nesse negócio. Espero que um dia algum jornalista faça um estudo sobre as vendas dos três grandes nos últimos dez, quinze anos. Como é possível que um clube tenha 600, 700, 800 milhões de vendas, o outro tem 500, 600 milhões, e o Sporting é o que tem a dívida mais pequena? Fantástico.

O que acha de a UEFA ter dado razão a Jorge Sousa em relação aos dois supostos penáltis na Luz?

A UEFA diz é que há um lance em que não é penálti e há outro em que não consegue ajuizar. Nem se poderia esperar outra coisa. O futebol ainda vive muito do corporativismo e a UEFA fala muito do medo do desmantelamento das estruturas. Independentemente do lance ser melhor ou pior há uma defesa muito forte das estruturas, dos conselhos de arbitragem, das federações, etc, porque eles temem que se começar a haver muitas críticas pode dar-se o desmantelamento das estruturas. Não há nada mais errado, porque nós não vivemos do ar, vivemos dos fãs. E as pessoas cada vez mais querem verdade desportiva, transparência, credibilidade, cada vez mais querem um futebol diferente. Acho que mais uma vez não foi dado o enfoque de que o Sporting estava no top 15 dos clubes mais bem geridos da Europa nem de um clube português que está no top 2 dos maiores devedores [Benfica].

Isso são dados de há dois anos…

Mas sabe qual é o problema? É que os números pioraram. É ver o relatório de contas. Seja como for não me espanta. O Paulo Bento uma vez disse: mão na bola, andebol. Neste caso diria: mão na bola é vólei.

Houve um lance parecido contra o Chaves, com o William, e também não foi penálti – e bem, na minha opinião.

Não tem nada a ver. Foi unânime que houve erros grosseiros [no jogo contra o Benfica]. Todos os especialistas disseram isso. O Sporting é o clube mais prejudicado esta época. Há muita coisa que as máquinas de propaganda dos outros clubes põem cá para fora, mas não põem cá para fora qual é o clube que as pessoas ligadas à arbitragem acham que é o mais prejudicado esta época. Há uma coisa que nós não fazemos, que é mudar o discurso. A ganhar ou a perder, eu tenho as mesmas propostas, as mesmas soluções, as mesmas críticas. Mas eu critico e aponto soluções. Não tenho um discurso quando ganho que são todos magníficos e quando perco que são todos péssimos.

Mas Jorge Jesus, quando era treinador do Benfica, disse sobre a vitória num jogo em que houve vários lances polémicos que tinha sido ‘limpinho, limpinho’, e agora veio queixar-se da arbitragem.

Você ainda não percebeu: o mundo avança.

Mas as pessoas podem ser coerentes.

Podem ser coerentes mas defendem a sua dama. Isso foi a primeira coisa de que nós falámos quando nos conhecemos. Falámos, está resolvidíssimo. Agora, percebo perfeitamente que as pessoas defendam a sua dama. Fui o único presidente em Portugal, dos grandes, pelo menos, que um dia no auditório do Sporting ao fazer uma análise à arbitragem jogo a jogo, assumi um erro grosseiro a favor do Sporting num jogo com o Benfica. Nunca você viu isto na vida. Sabe que destaque é que deram? Zero. Porque depois não podiam dizer que eu sou um conflituoso, que sou um bélico.

Tenho um amigo sportinguista que diz que preferia que o Benfica descesse de divisão a que o Sporting ganhasse a Liga dos Campeões. Que mensagem diria a este adepto?

Que ele tinha de reequacionar primeiro de que clube é e segundo se o tico e o teco estavam a funcionar como deve ser. É absolutamente claro que há aí qualquer confusão. Mas tenho a certeza que se um dia mo apresentar ele muda o discurso, continuando a ser um grande sportinguista e tendo o Benfica como grande rival. Um café de 15 minutos comigo e ele mudava. Esse discurso não faz sentido nenhum até porque nos diminui enquanto clube.

Há quem tenha uma obsessão com o Benfica?

Há uma grande rivalidade entre o Sporting e o Benfica, sempre foi assim, sempre assim o será. A verdade é que desde que aqui cheguei não houve nenhum incidente a registar e já houve vários dérbis. O que significa que afinal o meu discurso não é assim tão incendiário.

Houve aquele fogo na Luz.

Isso foi na gestão anterior. Não sou Godinho Lopes, sou o Bruno de Carvalho. Estava lá como sócio e ia morrendo. Essa rivalidade existirá sempre, acho é que os extremos são sempre escusados. Até hoje não vi uma única imagem do Setúbal-Benfica, recebi uma mensagem a dizer ‘O Benfica acaba de perder com o Vitória de Setúbal’. E eu respondi: ‘Fico muito feliz, estou a ver um filme’. Pronto. 

Nunca festejou uma derrota do Benfica?

Estava a ver um filme e continuei a ver. Não quer dizer que como presidente isso não me dê um bocado de esperança, porque podemo-nos aproximar. Ao contrário do que as pessoas pensam, eu sou do Sporting Clube de Portugal em primeiro, segundo, terceiro, quarto, quinto lugar. Para mim não existe mais nada. O que é diferente de eu ser anti qualquer coisa. O que é incendiário é estarmos em casa e adeptos nossos levarem com petardos em cima. Tive de trabalhar muito para que não houvesse retaliação.

Falou com a claque?

Com os adeptos, tive de trabalhar muito. Não só pelo ato em si, mas pelo sentido de impunidade, porque aquilo não foi claramente condenando na comunicação social, não houve o ninguém do futebol a vir dizer de imediato ‘Isto é inaceitável’. Isto pode matar uma pessoa, como aliás já aconteceu morrer – e eu estava lá, mais uma vez. Sempre que acontece alguma coisa eu estou lá.

No episódio do very light estava perto da vítima?

Muito perto. No episódio do varandim também estava a dois passos de onde as pessoas caíram, no incêndio estava no meio do incêndio, portanto vão-me calhando essas coisas. Outro fator incendiário é a forma brutal como os comentadores do Benfica atacam o Sporting semana após semana.

Qual o irrita mais? Pedro Guerra ou Gomes da Silva?

Não consigo dizer. Quando é mau não faço distinção. Nunca ouvi nestes quatro anos um comentador do Sporting a dizer ‘farei tudo para desestabilizar o Benfica ou o Porto, agora fizemos um grande negócio e secámos o mercado’. Nunca ouvi um comentador do Sporting dizer isso. Diz-se que há um anti-benfiquismo quando há é um anti-sportinguismo primário, diário, gratuito.

Acompanha esses programas?

Ao princípio via. Hoje não. Quando é alguma coisa mais grave começo a receber mensagens: ‘Está a ver?’. E a minha resposta é sempre: ‘Não. Estou no canal do Sporting ou a ver um filme ou uma série’. Quero preservar a minha sanidade mental, coisa que já não é fácil no mundo do futebol.

Imagino que tenha feito muitos inimigos ao longo destes quatro anos. Alguma vez sentiu que a sua segurança estivesse posta em causa?

Sim, sim, sim.

Anda com segurança?

Houve muito tempo, cerca de três anos, em que não. Acho que foi uma inconsciência total, porque tenho família, tenho duas filhas que precisam muito de mim. Neste momento tenho. Quando você começa a ter pessoas a tocar-lhe à porta, quando começa a ter clubes que lhe fazem processos completamente descabidos – que depois eu ganho – mas em que em vez de meterem a morada do Sporting metem a minha morada pessoal, tornando-a pública, quando já começam a falar dos colégios onde andam as minhas filhas… As pessoas no futebol não têm noção nenhuma do que é serem cidadãos normais. Quando cheguei achei que a coisa até ia ter uma certa piada, porque o futebol tem de ter um bocado de picante, um bocado de espetáculo, como o wrestling. Os americanos têm isso: tudo tem de ter espetáculo. O que é inacreditável é que as pessoas levam aquilo mesmo a peito, a pessoa diz uma piada e transforma-se num perigo ir a esse estádio no jogo a seguir. Com perigo de vida.

Qual foi a situação em que se sentiu mais ameaçado?

Têm sido tantas. Por exemplo quando houve aquele clima mais pesado entre o Sporting e o Porto que se inicia ‘só’ com o dirigente do Porto a ofender-me e a querer bater num dirigente do Sporting, o que é sempre simpático.

Foi em Tavira, não foi?

Sim. As idas ao Dragão a seguir a isso foram muitíssimo complicadas. Senti de facto perigo. E agora que as coisas estão muito mais acesas com o Benfica começaram os toques à porta, os colégios das minhas filhas… Espero que percebam de uma vez por todas porque é que não me identifico com o futebol. Quando ultrapassamos os limites e vamos para as famílias, para o caráter, para a personalidade, está tudo dito acerca do ser humano que o faz: é um ser humano baixo, é um ser humano que sabe pouco do que é ser ser humano. Acusam-me das guerras com a arbitragem. Desde o primeiro dia que digo: ‘Os árbitros são pais, são filhos, e merecem ser defendidos, merecem poder ir à rua, ir às compras, ir ao cinema, tem que se criar condições para que estes homens não vivam num clima de terror’. Disse isto N vezes. Para mim, qualquer coisa ou ameaça que se faça à família de Luís Filipe Vieira ou de Pinto da Costa sou absolutamente contra. Há fronteiras que não se passam e no futebol passa-se com toda a facilidade.

Tocou na questão dos árbitros. Estando ali à flor da relva, próximo das equipas de arbitragem, não dirige insultos aos árbitros?

Já disseram muitas vezes que insultei e depois tiveram de voltar atrás. Houve uma vez em que me excedi – uma vez – e achei muito bem terem-me expulso e terem-me castigado. Já o assumi. Em quatro anos tenho tido um comportamento muito mais – e é engraçado porque está tudo filmado e as pessoas até veem, mas não falam disso – tenho tido muito mais um comportamento apaziguador do que um papel desestabilizador. Muitas vezes sou eu que vou e acalmo as pessoas…

Às vezes é preciso acalmar o Jorge Jesus?

O Jorge, os jogadores… Mais a equipa a técnica, porque é o calor do momento, porque preciso do meu treinador no banco comigo, não expulso, e tenho feito muito mais esse trabalho, mas ninguém reconhece. As imagens mostram mas vão sempre pegar naquilo que for mau, nunca conseguem pegar no facto de ter um papel bastante apaziguador. Claro que é muito difícil manter a calma perante alguns erros grosseiros, mas vamos aprendendo a passar tudo. Quando cometo um erro grosseiro você não sabe o que eu faço a mim próprio, não tem noção. Aquilo que eu faço aos outros, faço a mim a triplicar. Agora imagine…

Autoflagela-se…?!

Faço autocrítica, imponho-me castigos, obrigo-me, se for preciso, a estar 72 horas acordado até resolver o que fiz. Não me perdoo, se fiz mal tenho que ir à luta, tenho que resolver. Muitas vezes é quase desumano, porque nós todos temos um limite físico, psicológico, e eu acho sempre que não tenho. Acho sempre que posso fazer mais. Por isso é que você tem no programa uma proposta que era criar condições para o pavilhão, e de repente o pavilhão já vai ser inaugurado. Tem um jogador que compra, verifica-se que está mal e na mesma janela de mercado arranja-se uma solução para ele – exatamente na mesma janela resolve o problema! É quase sobre-humano, mas para o Sporting tem sido muito bom, porque é um grau de exigência muito grande.

Foi noticiado que estava em processo de divórcio.

Não, já estou divorciado.

Acha que essa dedicação total ao Sporting pode ter afetado a sua vida familiar?

Era muito fácil para mim dizer-lhe que sim. Mas nunca gostei de fazer o papel de coitadinho, nunca gostei de arranjar desculpas para nada, assumo tudo. Se o jogador falhar frente à baliza eu assumo. Não, o Sporting não tem culpa de nada das decisões que são tomadas na minha vida, o Sporting é o Sporting, a minha vida pessoal é a minha vida pessoal. Aconteceu, temos uma filha em comum, uma filha que eu adoro, e não vou pôr culpa nenhuma no Sporting sobre isso.

Isso leva-nos à última pergunta. Como reagia se uma filha sua lhe dissesse que era do Benfica?

[longo silêncio] Politicamente correto seria dizer que sou um grande democrata. E sou. Todas as minhas filhas – que eu só tenho filhas – têm sempre direito de opção. Tanto a Catarina como a Diana sabem desde pequeninas que podem ser do Sporting, podem ser do Sporting e podem ser do Sporting. E podem escolher dentro destas três opções que eu democraticamente lhes dou.