Iemanjá. O culto à rainha do mar que foi fatal na Costa Nova

Grupos de devotos têm estado a aumentar no país. Praia no concelho de Ílhavo costuma ter grupos a praticar o ritual. Líderes espirituais lamentam imprudência que resultou na morte de uma mulher

Carlos Gomes não teve dúvidas de que seria um ritual religioso mal viu as primeiras imagens pela comunicação social.

Ao cair da noite de quinta-feira, com o país debaixo de um alerta vermelho devido ao mau tempo, quatro pessoas foram arrastadas pelo mar na praia da Costa Nova, em Ílhavo, alegadamente durante um culto à rainha do mar Iemanjá. Carlos Gomes, líder espiritual e coordenador a nível nacional dos “terreiros” – templos que seguem os preceitos religiosos de descendência africana e brasileira –, reconheceu nas imagens do areal os fios com missangas de cor azul-bebé. “Os fios são o que chamamos guias de orixá. São usados pelos guias espirituais para proteção e envolvem o líder da cerimónia durante o culto”, explicou ao i este responsável. Além disso, nas imagens via-se fruta e garrafas de champanhe, oferendas que nestes rituais são deixadas no local, para agradar à deidade.

Tudo aconteceu no dia 2 de fevereiro. No Brasil, esta é a data principal no calendário de adoração a Iemanjá. Até ontem, a mulher de 34 anos continuava desaparecida e apenas as buscas em terra foram retomadas pela Autoridade Marítima, pelos bombeiros e pela GNR. Três dias depois do desaparecimento, as autoridades estão sem qualquer esperança de que a mulher tenha sobrevivido à fúria do mar e o Ministério Público está agora a investigar as circunstâncias do desaparecimento.

Carlos Gomes, que dirige o terreiro Umbanda Tenda de Oxossy em Aveiro, diz que a praia da Costa Nova é das mais concorridas numa religião que tem vindo, nos últimos anos, a ganhar seguidores no país. “Há quatro terreiros na região e várias pessoas de Coimbra, Águeda, Estarreja e Espinho deslocam-se àquela praia devido ao grande areal e por não ser muito movimentada. Já é uma tradição.”

Ainda assim, naquele dia e com o mar agitado, Carlos Gomes diz que seria impensável conduzir qualquer rito à beira-mar, uma imprudência que lamenta. “Jamais um dirigente espiritual com a cabeça no sítio levaria pessoas para um local sob alerta vermelho, principalmente à noite”, sublinha.

Foi essa a mensagem que fez questão de partilhar nas redes sociais mal se soube da tragédia. “Religião e fé não é fanatismo nem loucura”, escreveu na página de Facebook Terreiros de Portugal, que conta com 272 seguidores e onde está centralizada informação sobre as religiões afro-brasileiras no país.

Cem templos no país

Em Portugal, a principal data de adoração a Iemanjá é a 15 de agosto, dia em que a Igreja Católica evoca Nossa Senhora da Assunção. No Brasil, além do 2 de fevereiro, os ritos concentram-se em torno da passagem de ano. “Lá são os maiores dias de celebração, mas é verão, o mar está sereno e há calor”, disse ao i outro líder espiritual, que preferiu não ser identificado.

Também este responsável lamentou a falta de cuidado do grupo de dez pessoas que se reuniu na praia da Costa Nova. “Iemanjá não ia ficar ofendida se a oferta fosse feita um dia depois”, acrescenta.

Aliás, para quem segue estes cultos, os rituais não precisam de ser na praia, embora nestes dias especiais seja tradição que os fiéis se desloquem para junto do mar.

Ao todo, a plataforma Terreiros de Portugal contabiliza cerca de cem grupos espalhados pelo país. “Há muitos mais, mas estão ilegais”, sublinha Carlos Gomes, que explica que, como qualquer organização, têm de estar coletados nas Finanças.

Este dirigente avisa que estes terreiros clandestinos podem ser um perigo por não terem informação suficiente sobre os preceitos, o que poderá ter acontecido na Costa Nova.

Cada terreiro tem, em média, 30 a 50 pessoas, mas alguns ascendem a cem. “A procura tem crescido bastante nos últimos anos com a imigração de brasileiros, que trazem ou procuram o culto” em Portugal, explica Carlos Gomes, que teve o primeiro contacto com a religião afro-brasileira aos 16 anos de idade na praia da Nazaré. Até 2008 foi militar das tropas especiais paraquedistas e esteve em missões na Bósnia, em 2005, e no Afeganistão, em 2007. Nos últimos anos, dedicou-se por completo à religião e à medicina tradicional africana.

Os grupos organizam sessões de rituais tanto interiores como exteriores. Quando as reuniões são nos terreiros, são praticadas danças e consultas em que creem ser possível a manifestação de espíritos. Já no exterior, acontecem por vezes rituais dirigidos aos vários orixás, divindades ligadas aos elementos da natureza. Iemanjá é a deidade da água, daí a procura do mar.

Apesar de não ser obrigatório, Carlos Gomes diz que há muitos grupos que preferem fazer estes rituais durante a noite, para estarem mais resguardados e por receio de serem considerados atos de bruxaria. “Ainda há muita intolerância religiosa.”

Um barco com pedidos e flores

Durante a adoração a Iemanjá é costume os fiéis lançarem ao mar um barco de madeira ou esferovite. “Temos cuidado com os materiais que usamos, para serem biodegradáveis”, sublinha o dirigente espiritual que preferiu manter o anonimato.

Dentro do barco colocam um papel com pedidos a esta deidade e flores brancas, rosas ou gladíolos.

Habitualmente, os fiéis entram no mar para empurrar o barco para Iemanjá e no Brasil é costume saltarem sete ondas durante este ritual. É também tradição ser oferecido um “agrado” a esta divindade, como um pente, um espelho ou um perfume. Frutas, velas ou bebidas também são consideradas oferendas e costumam ser deixadas no areal, mas ambos os dirigentes dizem que tem havido uma sensibilização aos grupos que fazem parte da plataforma Terreiros de Portugal no sentido de não contribuírem para a poluição das praias.

O i contactou a Autoridade Marítima Nacional, que disse não ter conhecimento de que o dia 2 de fevereiro assinalava esta data. Além do incidente na praia da Costa Nova, foi apenas detetada mais uma tentativa de entrada no mar na Nazaré. Ainda assim, fonte oficial indicou não haver suspeita de que estivesse em causa qualquer ritual religioso.