Quinta-feira é um dia e tanto para Salomé Lamas. Estreia em sala “Eldorado XXI”, longa-metragem documental que foi filmar aos Andes peruanos, a La Rinconada y Cerro Lunar, comunidade mineira instalada a maior altitude em todo o mundo, a 5500 metros acima do nível do mar, e também último dia para se ver “Mount Ananea”, na Galeria Miguel Nabinho, em Lisboa, resultado do processo de filmagem deste filme estreado no Festival de Cinema de Berlim no ano passado e que no mesmo dia arranca para a sua 67.ª edição, onde a realizadora há-de chegar daí a uns dias para estrear o seu novo filme, regresso às curtas, agora na ficção, “Coup de Grâce”.
“Nem sequer tinha feito essas relações”, sorri Salomé Lamas em início de conversa numa manhã de janeiro, em Lisboa, sobre “Eldorado XXI”, um pouco de “Coup de Grâce” e sobre tudo, na verdade, para a realizadora e artista a quem isso não basta, nem pode, a ponto de nos tornar impossível encontrar expressões de substituição de títulos como “o seu último filme”. Entre uma estreia comercial em Portugal, uma estreia em Berlim e os vários filmes que vai adiantando ao mesmo tempo – da curta-metragem a ao território por explorar da longa de ficção que será “Fatamorgana” que já a levou ao Líbano, onde será rodado – mais uma peça de teatro-espelho dessa produção para apresentar em Lisboa e várias exposições já em fase de preparação, “último filme” é uma coisa que não existe.
Existe trabalho, uma lista que consulta no iPhone que parece interminável, e as viagens, muitas, de onde sai boa parte dos seus filmes. “Não, muitos dos meus filmes proporcionam viagens”, interrompe para explicar que o processo é justamente o inverso. “Não viajo em lazer, porque viajo de dois em dois meses e quando não estou em viagem quero poder estar em casa, percorrer a mesma rua.” São os filmes as suas viagens então, e foi assim “Eldorado XXI”, ideia surgida no descanso de um Natal em que estava a terminar “Terra de Ninguém” (2012). “Levo sempre vários projetos paralelos, projetos distintos que têm formas de financiamento e modelos de produção distintos, que surgem de convites distintos, e que são sempre muito diferentes o que faz com que não se contaminem e eu consiga compartimentar-me”, explica a realizadora-artista nascida em 1987 e que tem feito o seu percurso entre o cinema e as artes visuais.
Esta viagem que não foi a última mas a que deu “Eldorado XXI” começou então com uma proposta do produtor Luís Urbano, que lhe pediu que pensasse numa curta de ficção. Nada do que fez Salomé Lamas, que lhe apresentou um projeto híbrido que partia da história de uma família da Rinconada. “Já tinha colecionado alguns factos online e apresentei-lhe uma proposta que soava muito bem no papel mas na verdade, se espremesses aquilo bem, sobrava: ‘Rinconada y Cerro Lunar, leva-me lá que eu trago-te um filme’, e o filme acabou por ser vários filmes durante vários momentos, acabou por não ser essa docuficção mas acho que houve desde essa primeira conversa uma espécie de um acordo não verbalizado de ‘isto é tudo um grande bluff’. Não sou muito boa a mentir e acho que o Luís percebeu logo desde o início.”
Da Rinconada saiu então uma exposição primeiro, “Mount Ananea” (até 9 de fevereiro na Galeria Miguel Nabinho) e um filme de duas horas em duas partes, um “falso díptico”, como lhe chama Salomé Lamas, com uma primeira parte em que assistimos, plano fixo numa ladeira escura e cheia de lixo, à passagem de mineiros, famílias, comerciantes, colchões, bilhas de gás e grades de cerveja, com uma montagem de sons de entrevistas, pedaços de emissões de rádio, músicas tradicionais. Primeira parte em que é como se não víssemos nada mas víssemos tudo. “Não vês nada mas ouves, ouves muitas coisas. O close up está naquilo que tu ouves e nos vários quartos de som que crias para aqueles testemunhos mais ou menos síncrones, que sublinham mais ou menos os espaços e que acabam por te levar para uma realidade exterior àquilo que tem quase um lado de screensaver, de mantra, que é o mantra daquelas pessoas que todos os dias vão para a mina, ao mesmo tempo que lutas com aquilo que estás a ouvir.” Sons que havemos de recuperar na segunda parte do filme, quando saímos daquele lugar onde, apesar do lixo, Salomé Lamas “podia ficar horas”, e não se cansa de repetir.
“São locais que não têm limites, que são quase terra de ninguém, locais desconfortáveis que te forçam a lutar com a realidade que estás a habitar.” E a verdade, diz, é que os filmes documentais acabam por contar tanto sobre quem os faz como sobre aquilo que tentam retratar. “Este encontro para mim é muito importante. Tendo a criar e a circunscrever uma realidade, seja com limites temporais seja territoriais, projeto-me de cabeça nessa realidade e acabo por ser um corpo estranho e vice-versa. É essa presença que pode criar a possibilidade de um filme.”
Para Salomé Lamas, fazer um filme é sempre sobre quanto tempo pode habitar uma realidade, conseguir um financiamento para um projeto é pensar quanto tempo é que isso lhe permite ficar num local com uma equipa. Porque o que mais lhe interessa é sobretudo o percurso. “Às vezes não interessa tanto o produto final, interessa ir colecionando estas experiências”, diz. “E depois tem a ver com o partilhar, com mostrar e dar a conhecer realidades difíceis de precisar. Os trabalhos que faço procuram sempre um espectador ativo, não dá para pessoas preguiçosas, é preciso fazer um trabalho sobre aquilo e colocarmo-nos esteticamente perante o que estamos a ver. Não acho que os filmes mudem o que quer que seja e nesse sentido não faço cinema engagé, não faço dramas sociais. Mas acho que as coisas que fazes podem desvelar qualquer coisa sobre uma realidade e a forma como apresentas podem dar ferramentas a outras pessoas para serem agentes de mudança.”