O acordo ortográfico de 1990 está de novo na ordem do dia e promete gerar polémica. Artur Anselmo, presidente da Academia das Ciências de Lisboa, foi ontem ao parlamento apresentar uma proposta de aperfeiçoamento deste documento. No final da audição, os deputados acabaram por reconhecer que não cabe à Assembleia corrigir o documento. E o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, foi também perentório. “A nossa posição é que devemos aguardar serenamente para que o processo de ratificação seja concluído para que o acordo possa entrar em vigor em todos os países que o assinaram e aprovaram”, disse o governante, citado pela agência Lusa.
Este aparente ponto final no assunto surge numa altura em que está a ser muito partilhada na internet uma petição que defende a “desvinculação da República Portuguesa do Tratado do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990”. À hora de fecho desta edição, a petição contava já com 15 508 assinaturas, mais 3 mil do que há uma semana. António Lobo Antunes, Camané, Alfredo Barroso, Carlos do Carmo, Eduardo Cintra Torres, José Pacheco Pereira ou José Ribeiro e Castro são alguns dos subscritores do manifesto, divulgado em janeiro. Com este nível de subscrição, o assunto poderá regressar em breve ao parlamento, uma vez que acima das 4 mil assinaturas, a discussão em plenário é obrigatória.
Acordo inconstitucional
A petição defende que o AO é “inconstitucional” e “teve os efeitos exatamente opostos aos que se propunha: não uniu, não unificou, não simplificou. É um fracasso político, linguístico, social, cultural e jurídico. E é também um fracasso económico, pois, ao contrário do que apregoou, não fez vender mais nem facilitou a circulação de livros”.
A Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), que também assinou o manifesto, considera a situação atual “insustentável”. “A SPA nunca foi consultada sobre este assunto, embora tenha mais de 26 mil associados de todas as disciplinas. Promovi uma consulta interna aos nossos associados que foi manifestamente desfavorável em relação à adoção do acordo. Por isso, não o adotámos”, explicou ao i José Jorge Letria, presidente desta organização.
Manuel Fonseca, da Editora Guerra e Paz, refere que as alterações à ortografia são aceitáveis, mas não podem “ferir” as raízes da língua. “Não é a primeira vez que acordos são feitos e que a ortografia sofre alterações – eu posso até achar interessantíssimo ter a palavra ‘farmácia’ com ‘ph’, mas a verdade é que passámos a grafar a palavra de outra maneira. A hipótese de acordo é aceitável, mas este e as razões políticas que o motivaram são inaceitáveis”, explica este signatário.
A atriz Ana Zanatti também já se juntou ao protesto e recusa que o país se molde à “ignorância”: “Não confundamos o respeito por formas coloquiais e populares que sempre existiram com o desejo de nos vergarmos à ignorância, ao facilitismo e à vontade insana de assassinar um bem cultural matando-o pela raiz”, disse ontem ao i.
Desafio aos deputados
O cineasta António-Pedro Vasconcelos vai mais longe e deixa um desafio aos deputados: “Desafio os deputados da Assembleia da República a fazerem neste momento um ditado e verem quantos é que sabem escrever com o novo Acordo. Aposto que não há mais de 5% dos deputados – nem dos portugueses em geral – que saibam escrever com as novas regras.”
“Admito que se possa vir a fazer um novo acordo completamente diferente deste, mas que tudo seja feito de uma forma mais sensata, consensual, e que o documento em si faça sentido. Só aceito isso se este [acordo] for imediatamente revogado”, disse o cineasta ao i, dando o exemplo do Brasil, que se desvinculou do acordo ortográfico ratificado em 1945 nos anos 50. Manuel Alegre, também subscritor da petição, argumenta da mesma forma. “Em 55, o Brasil rasgou a sua parte do acordo sem negociar com Portugal”, lembra.
Manuel Alegre esteve ontem no parlamento enquanto membro da delegação da Academia das Ciências de Lisboa, que não pretende o fim do acordo, mas apenas o aperfeiçoamento do documento existente. Confrontado pelo i sobre esta aparente contradição, Alegre defende que uma posição não é incompatível com a outra: “Na minha opinião, o acordo é inconstitucional. Mas eu, como membro da academia, apoio esta iniciativa do presidente, que já conseguiu fazer com que este organismo fosse recebido no parlamento para que algumas sugestões feitas sejam estudadas, com o objetivo de melhorar aquilo que está [em vigor] e pôr fim a esta desordem ortográfica. Não há incompatibilidade entre as duas coisas.”
A Academia das Ciências de Lisboa aprovou na semana passada o documento “Sugestões para o aperfeiçoamento do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa”. Durante a audição de ontem, proposta pelo Bloco de Esquerda, Artur Anselmo, presidente deste organismo, defendeu: “O AO não é a Bíblia, é um acordo que deve ser melhorado. [A ortografia] não é uma matéria estática, está em constante evolução.” E o investigador sublinhou o facto de a academia nunca ter sido “ouvida” relativamente à implementação do acordo.
O jurista Ivo Barroso, membro do Movimento de Cidadãos Contra o Acordo Ortográfico de 1990, contesta as propostas da academia e defende que uma revisão do documento de nada serve. Ainda antes de ser pública a tomada de posição de Augusto Santos Silva, Barroso explicou ao i que qualquer revisão desencadeada por Portugal teria de ser ratificada por todos os Estados que assinaram o tratado. “Se houvesse vontade política, o que não me parece, e se esses passos fossem todos preenchidos, poderia demorar, no mínimo dos mínimos, dois anos. Se calhar, nem daqui a 20 anos haveria revisão, e até lá o que continuaria a vigorar? O AO nos modos atuais? Esta revisão não serve para resolver o problema, o seu destino é o caixote do lixo”, disse.