É raríssimo o escritor cujo nome – pseudónimo neste caso – vira adjetivo reconhecido de imediato mesmo por gerações que provavelmente nunca o leram. Dizer orwelliano é dizer totalitário, levando em conta a carga semântica que a palavra carrega em si, denominando a sociedade onde a liberdade individual nunca existiu ou deixou de existir. Em volta do autor George Orwell, cujo verdadeiro nome é Eric Arthur Blair, nascido na Índia em 1903 de pais que lá prestavam serviço ao governo de sua majestade, criou-se todo o tipo de mito, inclusive em tudo o que diz respeito às posições políticas e ideológicas que cultivou e manteve até à sua morte em 1950, muito antes da fama e influência que alguns dos seus romances viriam a ter. O seu impulso antitotalitário vem de longe, e poderá ter começado com o que viu na Birmânia aos vinte e poucos anos, como membro da Polícia Imperial Indiana, tal como relata no ensaio “Matar Um Elefante”, quando escreve que “quanto ao meu trabalho odiava-o mais amargamente do que seria talvez capaz de explicar. Num emprego como aquele observamos de perto o trabalho sujo do império”.
Pouco depois, em 1933, faz sair um dos seus mais famosos romances, uma alegoria e sátira sob o título de “O Triunfo dos Porcos”. O caminho para o romance que o tornaria um nome comum no mundo inteiro teve as origens na sua participação na Guerra Civil de Espanha, onde lutou ao lado não das lendárias brigadas internacionais, mas sim integrado, juntamente com a sua mulher, na milícia trotskista do POUM, sofrendo na pele, como o próprio deixou escrito no também muito conhecido e admirado “Homenagem à Catalunha”, publicado logo após essa sua experiência, em 1938, a perseguição mortífera que lhes foi movida pelos comunistas estalinistas integrantes do governo da República em luta contra os nacionalistas de Franco. No entanto, manteve-se um socialista democrático toda a sua vida, confessando neste “George Orwell: Ensaios Escolhidos” (ed. Relógio D’Água), que se identificava com a ala esquerda do Partido Trabalhista. Não deixará de ser mais do que uma mera curiosidade verificar que tudo na sua vida leva-o ao estatuto canónico que persiste e parece aprofundar-se entre os leitores da vasta aldeia global.
O grande romance de Orwell, “1984”, foi terminado em 1948, como se sabe, e o autor apenas mudou os dois últimos dígitos para chegar ao título do que se tornaria uma das mais curtas e significantes referências numa obra literária do século passado.
George Orwell torna-se uma referência universal pela sua ficção, não pela prosa ensaística que produziu proficuamente ao longo da sua carreira. No entanto, a sua presença nos jornais e em revistas literárias foi sempre de uma eloquência e elegância pouco comum em escritores da sua época e com as suas bem definidas posições antes, durante e logo após a II Guerra Mundial. Sobressai de boa parte destes seus ensaios as palavras ariscas sobre os seus colegas que equivocavam nas suas lealdades ora aos nazis alemães ora aos comunistas soviéticos e estalinistas.
Curiosamente, o defensor da vitória Aliada no continente queria que o seu país, a Grã-Bretanha sempre orgulhosa e só no outro lado do canal, pertencesse por inteiro ao novo bloco económico e político – para se livrar, de uma vez por todas, da sua dependência, real e mitificada, dos Estados Unidos. Não sei como George Orwell é visto ou entendido pelos seus conterrâneos, mas estou em crer que a sua popularidade como escritor seria muito mais questionável no restante mundo. Raramente o autor destes ensaios é citado nos EUA fora do contexto da sua ficção. Provavelmente não seria apreciado pelos governantes europeus atuais, particularmente a partir dos anos 70, quando Ronald Reagan e Margaret Thatcher redefinem o rumo para o Ocidente. Nessas suas palavras, Orwell insiste implicitamente na essencialidade de se conceder a independência, já em curso ou por vir, a todas as colónias fora da órbita da terra-pátria. Vale a pena relê-lo no contexto europeu dos nossos dias, e do que aconteceu com o recente voto britânico para saída da União Europeia. Poderá não ter previsto a extensão da globalização hoje em curso, mas acertou em partes bem mais delicadas.
“George Orwell: Ensaios Escolhidos” contém alguns momentos deliciosos, ora nas suas verdades ora nos seus palpites teóricos, sobre literatura e sociedade, em que o autor tanto responde com humor e firmeza a um famoso ensaio de Tolstoi a denegrir em termos absolutos a obra de William Shakespeare, como relê e recupera alguns dos escritores seus antecessores e contemporâneos, inclusive no castigo ou defesa da utilidade do que ele chama numa destas peças os “bons maus livros”.
George Orwell foi aquele escritor e intelectual para quem a busca de um centro para a sua vida, o equilíbrio entre os grandes e os pequenos prazeres, eram a sua razão de ser, tal como a sua noção de decência e humanismo, quase ignorando a sua própria obra.
Se há escritores em cuja companhia apetece estar de quando em quando, este será um deles. Nem falei da sua crítica literária, alguma dela escrita enquanto as bombas caíam sobre Londres, como que num desafio ao destino e à barbárie, ou seguia o mandato de Winston Churchill, que dizia no parlamento que se não estavam a lutar para sobrevivência ou triunfo da “cultura”, para que valeria a pena sacrificar vidas? Ainda mais se retira destes escritos. Sobretudo a busca dos pequenos prazeres e do equilíbrio em tudo e entre todos. Isto, sim, é orwelliano.