Sinclair Lewis. Imaginário de uma América fascista

Publicado pela primeira vez em 1935, e agora reeditado, a ficção “It Can’t Happen Here”, de Sinclair Lewis, recorda como a retórica extremista ou populista do passado pode sempre inundar o presente e o futuro

Em 1935, a América, sob a mais violenta depressão económica e social da sua história, prepara-se para reeleger Franklin D. Roosevelt, o que não acontece nesta ficção de “It Can´t Happen Here”, de Sinclair Lewis, o primeiro Prémio Nobel (1930) da Literatura daquele país. Romance esquecido do autor de “Main Street” e “Babbitt”? Nem tanto. De quando em quando, reproduzem-se publicamente aqui e ali um ou outro dito ou passo das suas páginas, numa tentativa de aviso, ou simplesmente para não se deixar esquecer a “outra” história, a que está fora dos compêndios escolares e universitários. Até mesmo numa das mais bem-sucedidas e antigas democracias a preocupação com o impulso totalitário nunca está ausente, a conquista da liberdade deverá ser uma luta permanente. Os escritores, como “cronistas” das suas sociedades, têm recorrido desde sempre à ficção, à “mentira”, por assim dizer, para chegar às mais prováveis e profundas verdades. 

É neste contexto que deveremos ler “It Can’t Happen Here, sobretudo no contexto da nossa atualidade, como reflexão que vá além do ruído constante dos telejornais. Está-se numa América – como se estava na Europa, que hoje parece de novo querer ceder à sua histórica tentação totalitária – em que os génios da economia e dos mercados mergulharam a sua sociedade na escuridão quase absoluta, levando milhões à miséria e ao desespero. Foi por essa altura que John Steinbeck publicaria o hoje canónico “As Vinhas da Ira” (1939), no qual juntava as destrutivas forças da natureza no oeste ao impulso demasiado humano com vista à exploração e repressão dos que haviam caído sem rede em prol do enriquecimento de uns poucos.

“It Can´t Happen Here” tem como protagonista Doremus Jessup, o proprietário e diretor de um pequeno jornal, o Daily Informer, da também pequena vila Fort Beulah, no estado de Vermont. Neste lado do Atlântico já se vive e morre sob Hitler e Mussolini, e certas forças norte-americanas não desdenham da aparente estabilidade, do crescente emprego, da repressão ante os grupos historicamente suspeitos, aqui os judeus, lá os negros. Por detrás do novo “estado corporativo” americano estão os banqueiros e industriais, que as forças extremistas, principalmente no próprio partido democrático de Roosevelt, dizem querer controlar e até castigar, mas as suas palavras encobrem o outro lado da mentira – serão eles os beneficiários da nova ordem, pois são eles que controlam o dinheiro nos “mercados”.

Na América, um Berzelius Windrip consegue ser eleito, e depressa põe em prática o que havia escondido nas palavras do seu livro intitulado Zero Hour, em que o seu patriotismo vinha do mesmo modo adornado pelas platitudes beatas e patrióticas tanto da elite tradicional como das massas. O palco está montado para que, através de um congresso submisso e de todo controlado, a ditadura corporativista seja fundada, por entre os vivas generalizados de uma população massacrada e de um poder financeiro industrial sedento do seu lugar sem leis nem regras, tudo em nome da prosperidade e liberdade. Emprego em subida, ruas livres de crime resultado da ação das milícias Minute Men, uma polícia tipo Gestapo – aqui de nome Corpos numa abreviação de Estado Corporativista, encarrega-se da repressão e assassínio político e dos campos de concentração e de trabalhos forçados.

O prefaciador de mais recente edição de “It Can’t Happen Here”, de 2017, Michael Meyer, afirma que o romance teve impacto imediato. Não é de crer que tenha sido entre a maioria dos leitores mais eruditos ou bem informados, mas sim tão-só entre os que percebiam que a retórica da intolerância de lado a lado tornava a situação no seu país explosiva e politicamente perigosa. Depois de um certo alheamento ideológico dos escritores modernistas dos fulgurantes anos 20, apareciam agora alguns que já não podiam ignorar o que um sistema sem regulação ou qualquer moralidade provocava.

O romance termina sem resolução à vista, mas a liderança da resistência parte para o Canadá, numa alusão deliberada à história de refúgio que aquele país tem oferecido aos seus vizinhos a sul, desde a Revolução de Setecentos aos escravos libertados antes e durante a Guerra da Secessão e para lá mandados em comboios clandestinos dos patrocinados pelos Abolicionistas. Algumas décadas depois, o mesmo país receberia os resistentes exilados da guerra do Vietname.

De resto, este poderá não ser o melhor romance de Sinclair Lewis, em termos estritamente literários ou formais, mas é um dos mais relevantes para os nossos dias. Em certas páginas, quase esquecemos que estamos a ler uma ficção norte-americana, e pensamos de imediato na Europa dos nossos dias, na retórica que, uma vez mais, inunda boa parte da política, e não só a “extremista” ou “populista”. “It Can’t Happen Here” relembra-nos que, sim, poderá acontecer outra vez, até porque, enquanto na América aconteceu apenas na ficção, foi real entre nós, num passado ainda fresco na memória e nos medos. E a literatura é acima de tudo memória. É fonte de prazer, mas também deverá ser fonte de informação e pensamento. Ninguém lê ou olha para um quadro sem pensar no contexto em que se integra ou na sociedade que o inspirou. Nesse sentido, a literatura deveria ter as suas consequências – não necessariamente como previsão do futuro, mas sim como aviso contra a repetição do passado.