Fundou a União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR) em 1976 e acompanhou os 30 anos de luta pela despenalização do aborto em Portugal. Aos 66 anos, Manuela Tavares faz parte da história viva do movimento do “sim”, que há dez anos vencia o segundo referendo do país. Começou a ouvir falar do aborto já com 20 anos e viria a ser um dos rostos da luta, que documentou no livro “Aborto e Contraceção em Portugal”. Numa conversa com o i lembra as “travessias no deserto” até à despenalização e o “balde de água fria” do acordo entre Guterres e Marcelo que levou ao primeiro referendo. Um dia antes, a 4 de fevereiro de 1998, o parlamento tinha aprovado por nove votos a interrupção da gravidez por opção da mulher. Foi preciso esperar quase mais uma década, com julgamentos polémicos e abortos na clandestinidade, para a lei mudar.
Quem era a Manuela quando se começou a falar de aborto em Portugal nos anos 70?
O 25 de Abril despertou muitas jovens para as lutas políticas, feministas. Eu nasci em 1950, tinha 20 e poucos anos. Morava em Almada e comecei a fazer campanha de alfabetização para as mulheres do meu bairro. Foi nas conversas com essas mulheres, mais velhas, que ouvi pela primeira vez falar de aborto.
Na sua adolescência não?
Toda a liberdade de expressão era limitada, e mesmo as lutas estudantis em que participei eram movimentos mais gerais contra o regime. Era raro ouvir falar dos direitos das mulheres, pelo menos entre as jovens da minha idade.
Li nos seus apontamentos históricos que o primeiro apelo público ao aborto livre e gratuito surgiu em maio de 1974, numa brochura do Movimento de Libertação das Mulheres (MLM).
O MLM marca o início dos movimentos feministas no país. O aborto, a par do direito à sexualidade, à contraceção, ao aborto, e a denúncia da violência doméstica eram algumas das bandeiras. Mas é preciso lembrar o contexto. O MLM surge depois do processo das “Três Marias”, em que Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa foram julgadas pela publicação do livro “Novas Cartas Portuguesas” (1972), onde já falavam do aborto clandestino. Elas, de uma geração mais velha, denunciavam os abortos com pés de salsa, com agulhas de tricô, as perfurações de útero.
Mas essa brochura causou reação?
Teve pouca divulgação. A maior visibilidade começa em 1975, com a famosa manifestação no Parque Eduardo vii.
Maria Teresa Horta já corrigiu o mito de que queimaram sutiãs.
Nada disso. As Nações Unidas proclamaram 1975 como o Ano Internacional da Mulher e elas mandaram um comunicado para os jornais a dizer que iam fazer uma queima simbólica de objetos que levavam as mulheres à submissão. Falavam de grinaldas de noiva, panos do pó, vassouras, revistas pornográficas, a “Carta de Guia de Casados” de Francisco Manuel de Melo, brinquedos para meninos e meninas. E daí veio a confusão.
Foi a esse protesto?
Infelizmente, não. Não havia redes sociais a divulgar estes eventos. Veja a diferença para os dias de hoje: eu andava no bairro e, nessa altura, isso ainda era uma coisa de um meio mais intelectual e de uma geração mais velha. Ouvi falar depois.
Depois dessa primeira brochura, o livro “Aborto, direito ao nosso corpo”, de Maria Teresa Horta, Célia Metrass e Helena Sá de Medeiros, e a reportagem sobre o aborto de Maria Antónia Palla foram os pontos de viragem?
Sim, em especial o julgamento da Maria Antónia Palla em 1979, que coincidiu com o julgamento da Conceição Massano no Tribunal da Boa Hora. A Conceição era uma jovem a quem descobriram um diário onde ela dizia que tinha feito um aborto. Foi denunciada e julgada, o primeiro caso no país.
Ainda é viva?
É, mas nunca quis envolver-se. Foi um choque tremendo. Há uma fotografia marcante do tribunal em que o marido tem a mão no ombro dela. Foi absolvida, assim como a Maria Antónia Palla, mas ajudou a formar-se um movimento de solidariedade que foi muito importante. Houve muitas mulheres a concentrarem–se à porta do Tribunal da Boa Hora e julgo que é este movimento que desperta a sociedade para a questão do aborto.
Ter começado por ser uma reivindicação feminista contribuiu para uma maior demora na despenalização?
Não creio. Foi o caminho que tivemos de percorrer. Não havia ninguém na sociedade portuguesa que tivesse coragem para abordar este problema se não fossem estes grupos e o atrevimento da Maria Antónia Palla. Fizeram filmagens ocultas na Clínica Popular da Cova da Piedade. A Igreja, o CDS, as forças mais à direita fizeram tudo para as levar a tribunal. Foi por os grupos feministas não se terem calado que o problema foi levantado, senão nunca teria sido tão cedo. Nem a própria Assembleia da República nem os partidos o fizeram por sua iniciativa.
Nesta altura já tinham criado a UMAR?
Fundámos em UMAR em 1976, não tanto com um caráter feminista, mas para apoio das mulheres em questões como o acesso a creches para os filhos, igualdade salarial. Depois, em 1979 surge a Campanha Nacional pelo Aborto e Contraceção (CNAC), que integrámos e que foi fundamental no alargamento da luta a mais pessoas, até a médicos e outros profissionais de saúde.
Foi fácil encontrar médicos que dessem a cara pelo movimento?
Temos muitos abaixo–assinados daquela época onde não faltavam médicas e médicos. A Ana Campos, a Maria José Alves, a Helena Lopes da Silva, houve uma série de mulheres médicas que se mobilizaram.
A oposição era apenas uma confrontação pública ou havia insultos?
Eram confrontos públicos. Só mais tarde, quando se constituíram os movimentos do “não”, com a campanha “não matem o Zezinho” e aquele bonequinho que punham nas nossas mãos, é que as coisas subiram de tom. Cheguei a ir a muitas sessões, já na campanha do primeiro referendo, em que havia uma pessoa do “sim” e uma pessoa do “não” e a primeira coisa que a pessoa do “não” fazia era distribuir os bonequinhos de plástico.
Os fetos?
Sim, às dez semanas, já com os olhinhos e a boquinha, só faltava os dentinhos à mostra.
Era um debate desigual por causa dessa arma emocional?
Completamente. Houve uma instrumentalização enorme, até das crianças.
Em 1982, o PCP apresenta um primeiro projeto-lei para a despenalização do aborto por “motivos socioeconómicos e sentimentais”, que é chumbado. Em 84 é aprovado o diploma do PS, que despenalizou o aborto em caso de perigo de morte ou lesão para a grávida, nas primeiras 12 semanas, doença grave ou malformação do feto, ou em caso de violação. Foi uma desilusão?
Foi. A própria CNAC assume que aquele não era o projeto que fazia falta ao país. E o que aconteceu foi que nós, durante os dez anos que se seguiram, praticamente tivemos de fazer uma travessia do deserto. Tornou-se muito difícil, socialmente, tornar a fazer uma campanha, tinha ficado a ideia de que o problema estava resolvido. Aquele problema das penas de prisão de oito e mais anos para as mulheres tinha sido corrigido – a pena máxima foi fixada em três anos. Tínhamos um avanço. Mas o aborto clandestino continuava a existir.
Como é que o movimento ressurgiu?
No início dos anos 90, um jornal traz um artigo a dizer que a polícia tinha apreendido uma agenda de mulheres que tinham abortado numa parteira da Rua da Bica e que essas mulheres estavam a ser chamadas ao Instituto de Medicina Legal para perícias. A UMAR, a Associação para o Planeamento da Família (APF) e uma série de organizações juntam-se para denunciar esta situação.
Houve uma perseguição?
Completamente. O que é certo é que as notícias nunca foram desmentidas e depois, fruto da nossa pressão, pararam. Mas mostra bem como a intimidade das mulheres, apesar dos direitos conquistados no 25 de Abril, continuava a ser devassada. Estávamos muito atrasadas e mesmo o nosso movimento feminista não teve nada a ver com o que se viveu em França. Tinham passado quase dez anos da legislação do aborto, precisávamos de ganhar novamente espaço e começámos a pensar em como voltar a pôr o problema na ordem do dia. A APF lembrou-se de fazer um inquérito aos hospitais para saber quantos abortos eram feitos segundo aquela lei de 1984.
Conseguiram ter dados?
Sim. E mostraram que o número de abortos de acordo com a lei eram muito poucos e não correspondiam à realidade em Portugal. Na altura tínhamos 2 mil mortes de mulheres por ano por causa de aborto clandestino e complicações. Lançámos uma frase na CNAC que era “contraceção para não abortar, despenalização do aborto para não morrer”.
Neste período, entre os anos 80 e 90, o aborto clandestino aumentou?
Creio que não, começou foi a falar-se mais dos desmanchos aqui e ali. A comunicação social estava mais atenta. Em 1996 chegou a haver projetos-lei do PCP e da Juventude Socialista, chumbados. Em 1997, quando há uma mulher do Bairro Aldoar, no Porto, que morre por ter ingerido uns produtos para abortar, denunciámos o caso e o assunto torna-se mais premente, até em termos políticos.
Foi o caso de Lisete Moreira, que a UMAR evocaria durante anos.
Foi um caso altamente chocante no país. O médico chegou a dizer que ela tinha tomado um produto que antes era usado para desentupir fossas.
Este era um bairro pobre, não havia mulheres de estratos sociais mais elevados a assumir terem abortado?
Fizemos um abaixo-assinado com o título “Nós abortámos”, e aí tínhamos pessoas de todas as condições sociais. A Io Apolloni, por exemplo.
Mas o estigma ainda era forte?
O abaixo-assinado ajudou a tirar o estigma, mas é já na campanha do referendo, quando apareceram os primeiros testemunhos de mulheres na televisão sem a cara tapada, que as coisas mudam.
Que testemunhos mais a marcaram?
As histórias de mulheres mais pobres eram dramáticas. Tinham de arranjar dinheiro para as parteiras, às vezes era um mês de salário de uma operária têxtil. E depois havia as parteiras mais baratas, com métodos com certeza menos higiénicos, e as parteiras mais caras.
Mas conheciam-se essas rotas?
As coisas nunca foram às claras. Tínhamos pessoas que nos diziam que tinham feito o aborto numa marquise, com uns cortinados a tapar. Outras podiam ir a locais com melhores condições. O aborto variava de acordo com as condições socioeconómicas. Isto nos anos 90, antes era muito pior. A Maria Antónia Palla conta que chegou a ir ao barco do Barreiro buscar mulheres que vinham abortar a Lisboa, e depois havia as parteiras que abortavam a sangue-frio, porque era mais barato, e as outras que punham uma máscara e aplicavam uma breve anestesia. As mulheres sofreram tudo isto neste país. Era um problema calado, mas teve uma dimensão muito grande.
Ainda em 1997 aparece o primeiro movimento formal pela vida, Juntos Pela Vida, com a campanha “Não mates o Zezinho”. Fez mossa?
Sim. A hierarquia da Igreja envolve-se muito, ao ponto de, nestes meses que antecedem o primeiro referendo, todas as missas das aldeias serem um comício contra a despenalização do aborto.
Chegou a assistir?
Não, mas vi muitas ações com os tais fetos. Lembro-me que a resposta da UMAR a essa campanha do “Não matem o Zezinho” foi a iniciativa “Juntas pela dignidade”. Procurámos envolver gente de todos os setores.
Mas quando se tornou mais visível a posição do “não”, socialmente começaram a ser vistas de outra forma, a ser apontadas como assassinas?
Claro que se criou essa ideia na opinião pública. Mesmo mais tarde, quando abriu a Clínica dos Arcos, em Lisboa, o movimento do “não” fez coisas terríveis. Tentavam sempre espalhar o terror. Os setores mais conscientes e as mulheres que tinham feito aborto – e que nunca abortaram como se fosse beber um copo de água, mas porque não tinham condições para ter os filhos – estavam mobilizados. Mas a oposição foi muito forte.
A 4 de fevereiro de 1998, um projeto do PS que despenalizava o aborto por opção chegou a ser aprovado no parlamento. Que memória tem desse dia?
Lembro-me que estivemos no parlamento até muito tarde [as atas referem que a votação terminou pelas 21h05], como fazíamos sempre que havia alguma discussão. Aliás, a primeira manifestação nas galerias do parlamento foi nossa, em 1982, quando foi chumbado o projeto do PCP e levámos t-shirts a dizer “nós abortámos”. Mas, naquele dia, a lei tinha sido aprovada. Por poucos votos, mas aprovada. Estava tão cansada que vim para casa.
No dia seguinte era anunciado que, afinal, Guterres tinha acordado com Marcelo Rebelo de Sousa, então líder da oposição, que haveria um referendo.
Acordámos com esse balde de água fria, surpreendidos pela comunicação social de que estava a ser preparado um acordo entre PS e PSD para que existisse o referendo. Até ali, não se tinha falado nisso. Aquilo não caiu bem, sobretudo às mulheres socialistas. Chegou a acusar–se Guterres de traição. Hoje, Guterres está num alto cargo das Nações Unidas, fez um ótimo trabalho com os refugiados e não contesto o lugar a que chegou. Mas não recebi com aclamação a notícia. Isto foi uma coisa tão dura que Guterres ficou marcado para nós.
O referendo do aborto é marcado para 28 de junho de 1998. O que recorda desses meses?
Criámos a linha SOS Aborto e recolhemos testemunhos anónimos de mulheres que nos contaram como tinham feito o aborto e onde, e levámos todos esses depoimentos à Assembleia da República, para mostrar que urgia resolver este problema. Os ataques da Igreja não tardaram.
Chegou-se a comparar o aborto a um crematório nazi.
Dizia-se tudo, que era o Holocausto. Foram debates muito violentos, mas tentámos enfrentá-los. A nossa argumentação era em nome da saúde das mulheres.
Já diferente da questão feminista.
Sim, embora a CNAC, com aquela palavra de ordem “contraceção para não abortar, despenalização do aborto para não morrer”, já tivesse esse tom. Continuámos a falar do direito ao corpo, mas esse não podia ser o nosso vetor principal, porque contra isso havia o direito do feto à vida. Foi uma evolução que as feministas fizeram no sentido de alargar as suas alianças para vencer.
Adotaram o slogan “sim pela tolerância”.
O nome foi mal encontrado. Julgávamos que podíamos apelar ao bom senso dos católicos, apelar para que havia mulheres a morrer e que o facto de existir uma lei que despenalizava o aborto não obrigava ninguém a abortar. Não resultou. Nunca tínhamos enfrentado um referendo, os movimentos do “sim” não tinham grandes meios e a Igreja revelou-se uma máquina poderosíssima. A linguagem do terror infiltrou-se de tal maneira nas pessoas que houve uma abstenção terrível.
Uma abstenção de 68,1%, com o não a vencer com 50,9% dos votos.
Pensámos que tínhamos hipóteses, mas depois constatámos que havia mulheres que tinham abortado e não tinham ido votar. Tive colegas que não foram votar porque achavam que era um problema do parlamento. E o facto de o PS não ter participado na campanha também terá tido influência.
E depois?
Houve mais um longo período de travessia do deserto.
Em 2004 convidam o “barco do aborto” para vir a Portugal e o governo proíbe a atracagem. Foi um novo ponto de viragem na opinião pública?
Isso e os julgamentos. Paulo Portas era ministro da Defesa e proibiu o barco de entrar em águas portuguesas. Estive na Figueira da Foz, o barco ficou ao largo, mas fizemos manifestações e reuniões.
Alguma mulher chegou a ir ao barco?
Não. Lá dentro fazia-se o aborto medicamentoso, o que também era uma mensagem importante. Um dos argumentos do “não” era que os hospitais iam ficar entupidos, que depois uma pessoa já não podia ser operada porque estava tudo entupido com as interrupções cirúrgicas. De modo que o barco tinha sobretudo um simbolismo, até porque em todos os países, com a atenção mediática que tiveram, uma mulher que quisesse ir a bordo era logo identificada pelas autoridades.
Era uma forma de pressão?
Sim. E apesar de não ter atracado, ajudou a ampliar o movimento. Muitas pessoas consideraram a proibição uma forma de censura, até porque noutros países o barco tinha entrado. Conseguiu atracar na Irlanda, por exemplo, que a par de Portugal tinha leis mais restritivas. Houve uma campanha de assinaturas a nível europeu e um abaixo-assinado contra o governo, fomos vistos como um país com um atraso civilizacional.
Até comparando com Espanha, que só tinha legalizado aborto por razões de saúde.
Sim, a lei espanhola de 1985 era muito flexível, bastava que um médico passasse uma carta a dizer que a mulher não tinha condições psicológicas para ter o filho para que pudesse ir a uma clínica privada. Cheguei a ir pela UMAR com mulheres a Badajoz para abortar.
Porque não as levavam às parteiras em Portugal?
Nunca quisemos ir com as mulheres para o aborto clandestino. O risco era grande. Neste período, além disso, tínhamos grandes julgamentos e tudo isso estava na cabeça das pessoas.
Que julgamento a marcou mais?
Estive à porta de todos, mas o julgamento da Maia, em 2001, foi o mais marcante. Houve 17 mulheres acusadas de terem feito um aborto, jovens, desempregadas, domésticas, empregadas de balcão. No total foram 42 pessoas a julgamento. Havia o assistente social que apoiava estas mulheres e não ganhava nada com isso, e foi julgado. Até o motorista de táxi. A parteira foi condenada a oito anos de prisão. Quinze mulheres foram absolvidas porque não falaram. Duas, por não terem sido prevenidas a tempo pelos advogados, falaram e foram condenadas a multas. Até fizemos um peditório. Mas o que mais marcou foi elas terem de falar, com a voz presa, no meio de toda a gente.
A condenação da enfermeira, por mais de cem abortos, chegou a ser notícia lá fora.
Foi um caso incrível, o processo começou com o diário dela. Mas também estive no julgamento de Aveiro, no julgamento de Setúbal. Tomei sobretudo nota dos argumentos do MP e das advogadas de defesa, algumas brilhantes.
Mas havia juízos de valor ou era apenas a questão legal?
Apenas a legalidade, não havia moralismos. Mas a defesa fazia algum apelo emocional, o que terá contribuído para uma ampliação do movimento.
Com a dissolução do parlamento, o aborto foi um dos temas na campanha eleitoral de 2005 e Sócrates comprometia-se a fazer um referendo.
Sim, mas sabíamos que não podíamos ficar quietos. Repare na ironia: nós, que tínhamos estado contra o referendo em 1998, tivemos de fazer um abaixo-assinado a exigir um novo referendo. E, aí, o historial dos julgamentos foi fundamental, a opinião pública estava muito sensibilizada. O slogan passou a ser “julgadas por aborto nunca mais”.
O país estava diferente?
Continuou a haver embate da Igreja e da direita, as velinhas, os bonecos, mas acho que tinha havido uma evolução na consciência das pessoas, os diversos acontecimentos que ditaram o resultado.
No dia 11 de fevereiro de 2007, o sim venceu com 59,25% dos votos. Passam dez anos este sábado, qual é o balanço?
Deixaram de existir mulheres humilhadas. Acabou o aborto clandestino.
Acabou mesmo?
É residual. Talvez algumas pessoas que deixam passar o prazo. E depois, o sistema que se criou leva a que haja muito maior sensibilização para a contraceção. Antigamente, uma mulher ia a uma parteira e tornava a ir. Hoje, uma mulher que faça uma interrupção da gravidez tem uma consulta de planeamento familiar.
Ainda assim, existe reincidência.
Há alguma, não é muita. Outro dado importante é que temos uma média de abortos inferior à europeia. E a maioria das mulheres seguem o planeamento familiar. Tudo isto é um balanço positivo. Houve um avanço extraordinário na saúde sexual e reprodutiva.
E falhou alguma coisa?
A educação sexual dos jovens, que avançou pouco.
A lei está bem assim?
Foi o que conseguimos alcançar. Penso que podíamos ter uma lei mais flexível, equiparando-nos às 12 semanas, mas termos conquistado isto foi uma vitória. No dia dos resultados do referendo, no Hotel Altis, abracei a Ana Sara Brito e comecei a chorar. Quando se prolongam as lutas por tantos anos é como se saísse de cima de nós um peso enorme. Foi uma conquista civilizacional que espero que nunca ande para trás.
Neste período foram feitos mais de 150 mil abortos. Este número não deixa de ser um bocado arrepiante…
Antigamente existiam esses números ou mais, nós é que o desconhecíamos. As estimativas da OMS para Portugal davam–nos mais de 20 mil abortos por ano, parece que nos esquecemos. É lógico que o aborto existe e vai continuar a existir. Para pensarmos numa sociedade ideal sem aborto, a contraceção tinha de ser do conhecimento e da prática de toda a gente, mas isso não é real. Há níveis diferentes de acesso à informação.
Mas não lhe faz confusão este número?
Não. Embora nos tentem impingir de forma diferente as coisas, um feto até às dez semanas é um conjunto de células, não é o bonequinho que nos entregam. Não é uma vida cerebral, não é uma vida com consciência.
Mas, ainda assim, as mulheres que fazem aborto têm muitas vezes problemas de consciência.
Têm porque se sentem culpabilizadas. A maior parte da população, embora não vá à missa, é católica. Aqui no Cristo Rei vai haver uma missa este sábado pelas vítimas do aborto. E as mulheres que morriam de aborto clandestino e que também eram seres humanos, que deixaram filhos? Isso nunca os assustou.
Passam dez anos e estamos de novo a discutir um tema fraturante em torno da vida. Como encara a eutanásia?
Tal como no aborto, existir uma lei que interrompe a gravidez ou dá direito à eutanásia não obriga ninguém a fazê-lo.
Uma sociedade não deve ter linhas vermelhas?
Isto não é uma linha vermelha. Vivemos numa sociedade laica e deve dar-se direito às pessoas, conscientemente e de acordo com critérios bem fundamentados, para cumprirem a sua vontade. Não é dar um tiro. Negar isto a alguém é um atentado aos direitos humanos.