Imagine que nunca fez exercício físico na vida. Não sabe sequer o nome dos músculos que lhe doem depois de uma caminhada. Aliás, nem sabe que os tinha antes de começar a caminhar. Portanto, caso considere que o exercício físico é importante para o seu bem-estar, o mais natural é que comece a treinar. Agora, transponha o exercício do corpo para o exercício da mente. Assim, o mais comum talvez seja resolver problemas matemáticos, preferir jogos didáticos e ler algo desafiante. Já exercitámos o corpo e a mente, falta uma dimensão que assume a importância máxima para uns e, para outros, simplesmente não existe: a espiritual.
Para os católicos esta é uma dimensão inegável e os membros da Companhia de Jesus têm há mais de quatro séculos uma maneira de se exercitar muito própria. Para orientar os momentos de oração, Santo Inácio de Loiola, fundador da Companhia de Jesus, deixou uma espécie de guia, chamado nada mais, nada menos do que Exercícios Espirituais (EE). Os EE implicam retiros de três, oito dias ou um mês e são realizados não só pelos padres jesuítas como pelos diocesanos (ou seja, os padres que estão nas paróquias), irmãos e religiosas, leigos e outros católicos. Ou ainda… atores de cinema.
Recentemente, Andrew Garfield e Adam Driver, coprotagonistas do já tão badalado “Silêncio”, o novo filme de Martin Scorsese, que estreia nas salas portuguesas no próximo dia 19, submeteram-se à prática dos exercícios espirituais. Garfield, educado judeu, descreveu a experiência como transformadora. “Houve tantas coisas nos EE que me mudaram, que me mostraram quem era”, disse à revista “America: the National Catholic Review”. Durante o processo, o que mais surpreendeu o ator foi ter-se apaixonado por Jesus, como contou à mesma publicação: “O que foi verdadeiramente fácil foi ter-me apaixonado por Jesus Cristo, e isso foi muito surpreendente. Foi o mais notável – ter caído de amores e o quão fácil isso foi.”
Garfield – que desempenha o papel de Sebastião Rodrigues (sem spoilers, apenas podemos dizer que é o mais denso do filme de Scorsese) foi acompanhado pelo padre jesuíta James Martin, via skype, durante os EE quotidianos – que convidam as pessoas a parar e rezar uma hora por dia – e cumpriu outra parte do silêncio dos exercícios presencialmente, numa casa do País de Gales.
Garfield escolheu ‘exercitar-se’ para se preparar para um papel, mas há muitas pessoas que fazem os EE para, por exemplo, procurar ajuda na tomada de uma decisão importante. Mas o principal objetivo deste processo é mesmo um (re)encontro com Deus.
Os sete ‘ginásios’ do espírito em portugal
Em Portugal, no ano passado, mais de 2200 pessoas realizaram os EE. Destes, cerca de 66% optaram pelo retiro de três dias, 31% pelo de oito dias e 3% escolheram outras modalidades, como é o caso dos EE quotidianos, os tais que o ator Andrew Garfield fez.
Os moldes são simples: as pessoas têm um orientador que os guia pelas orações e os planos de exercícios são adaptados consoante a duração dos mesmos. Há, em Portugal, sete casas de retiros onde se fazem EE. A Casa de Retiros Santo Inácio, em Sintra; a CASA, em Coimbra e a maior de todas, a Casa da Torre, em Braga, estão ligadas diretamente à Companhia de Jesus. As restantes quatro, ligadas a outras ordens religiosas, são em Palmela (Casa de Oração Santa Rafaela Maria), Aveiro (Centro de Espiritualidade Jean Gailhac), Ourém (Projeto Casa Velha) e em Fátima (Centro de Espiritualidade Francisco e Jacinta Marto).
Mas como pode o silêncio trazer respostas? É esta uma das questões centrais do filme de Scorsese e foi o que fomos tentar perceber junto de pessoas para quem os EE são uma mais-valia.
O afastamento que traz 'coisas boas'
“Ninguém fala com Deus e ninguém reza no abstrato”, começa por explicar Andreia Carvalho, 33 anos, licenciada em Serviço Social e que trabalha atualmente para os Leigos para o Desenvolvimento. “Ou seja, ninguém ouve vozes, o que se sente é uma intuição por um caminho. Uma pessoa que vai fazer exercícios vai rezar a sua vida concreta, os problemas que tem. Estar em retiro e distanciado da realidade de todos os dias é o que permite à pessoa que está a fazer os EE olhar para essa realidade e aí encontrar rumos que, às vezes, não se encontram na rotina diária. É perceber onde Deus está a passar na realidade de todos os dias”.
Para Andreia esta é uma experiência muito proveitosa para católicos que se querem recentrar, mas tem um potencial que, acredita, pode ser usado por todos. “O silêncio é muito mais que o silêncio físico, é uma questão de distanciamento do ritmo de hoje em dia. Tenho a convicção profunda de que, se parássemos todos mais, o mundo seria um lugar melhor. E não digo sequer que tenha que se espiritualizar isso. Não há dinâmicas de paragem para que cada um pense no seu mundo, e acho que isso é uma coisa que poderia beneficiar toda a gente”.
Também Ana Melo e Castro, 43 anos – que há 13 anos é escrava do Sagrado Coração de Jesus – sente que esta experiência de encontro é muito profunda. A primeira vez que fez os EE foi muito antes, aos 18: “Apenas sabia que era um retiro em silêncio e isso assustava-me. Tinha medo de não conseguir estar calada, de não conseguir rezar e lembro-me da experiência ótima que foi. Talvez tenha saído desses primeiros EE sem ter percebido exatamente o que vivi, mas passado um tempo sinto que me marcou muito. Sobretudo no sentido de me sentir amada como sou e sentir esta fidelidade de Deus e esta necessidade de responder”, relata.
No seu caso, esta resposta concretizou-se na entrada da vida religiosa. Ana vive atualmente na Casa de Oração de Santa Rafaela Maria e é diretora da casa de EE. “Na nossa casa de oração temos muitas pessoas mais jovens a fazer os exercícios, dos 20 aos 40”. Ana continua a fazer, anualmente, exercícios. “No meu caso, os EE ajudam-me muito a reencontrar-me, são um momento forte de encontro comigo mesma e com Deus que me faz viver com mais sintonia com os outros e com a missão que me foi confiada. Tornam-me numa pessoa mais atenta às pequeninas coisas de todos os dias”, refere.
Para Bernardo Caldas, 25 anos, data scientist na Vodafone, as respostas que encontrou nas seis vezes em que fez EE foram outras. “Os EE são uma coisa muito intensa e à partida meio perigosa (risos), porque estarmos sozinhos e em silêncio e isso dá espaço para vermos também as coisas de uma forma mais torta. Por exemplo, acho que somos todos muito bons a enganar-nos a nós próprios e nos EE há menos espaço para isso do que no dia-a-dia”. Concretamente, o silêncio abriu-lhe espaço para resolver um dilema da sua vida. “No meu caso, os EE ajudaram-me a pensar e a tomar a decisão de ficar em Londres, sabendo que iria ter mais progressão na carreira, ou voltar para Portugal para outro projeto de vida. Estar em silêncio deu para perceber o que me motivava a ficar ou a partir e o que sentia com cada uma dessas opções. Ser obrigado a verbalizar essas questões para a pessoa que nos acompanha também ajuda a tornar o raciocínio claro”. As respostas às questões de Bernardo, que vive agora em Lisboa, chamam-se Mafalda e Simão Pedro: a mulher e o filho de cinco meses.
Já o padre José Maria Brito vê os EE como um momento de recalibração e um convite que é feito a cada pessoa para pensar a sua vida. “A chave da história inaciana é procurar encontrar Deus em todas as coisas. E implica saber procurar em cada situação a vontade de Deus, ou seja, é ir percebendo isso em cada momento. E essa sensibilidade de conseguir fazer isso no dia a dia cria-se também com a experiência dos EE”, resume o padre que também é responsável pela comunicação da Companhia de Jesus em Portugal.
“A oração nos EE é muito feita com a imaginação, que usamos para nos colocar nas cenas do Evangelho. E é isso que torna a oração tão viva, não é só um momento de contemplação. É ir pensando nas coisas que nos vão tocando, e a partir daquilo que nos toca mais, ir lendo o que se passa dentro de nós e é um reflexo das nossas vidas”, explica. Ou seja, os EE podem ser, para uns, um momento de paz, para outros de inquietação. Mas, definitivamente, põem o espírito a mexer – para onde, dependerá de si.