“Tudo aquilo de que sou acusado não corresponde à verdade.” Foi assim que Manuel Jarmela Palos, antigo diretor nacional do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) e arguido na Operação Labirinto, defendeu a sua inocência ontem, durante a primeira sessão do julgamento. Palos admitiu, ainda assim, ter recebido várias “solicitações” para acompanhar processos de atribuição de vistos gold.
Acusado de dois crimes de prevaricação e um crime de corrupção passiva para ato ilícito, Jarmela Palos, o primeiro arguido a prestar declarações, afirmou que muito do que é usado na argumentação da acusação – como a questão da celeridade com que os processos relacionados com a autorização de residência para atividade de investimento (ARI, nome técnico dos vistos gold) eram despachados – não é “anormal”. “Acho estranho que se diga uma coisa destas sem fazer uma análise do grosso dos processos, baseando-se nos 33 que foram apreendidos”, defendeu o antigo diretor do SEF, referindo que muitos outros processos foram tão ou mais rápidos do que aqueles mencionados pela acusação.
Jarmela Palos garantiu que não recebia processos incompletos e não privilegiou qualquer cidadão chinês na atribuição dos chamados vistos de residência para investimento. “A partir do momento em que transmitia as informações [aos serviços competentes], desligava-me das situações”, disse.
Questionado pelo juiz-presidente, Francisco Henriques, sobre as relações que mantinha com os restantes arguidos, Jarmela Palos revelou que conheceu António Figueiredo, antigo presidente do Instituto dos Registos e Notariado (IRN), em 2005, através de “relações institucionais”. “Tivemos áreas de confluência [entre o SEF e o IRN], como é o caso dos processos de nacionalidade. Em dez anos, nunca fui a casa dele nem ele à minha. Almocei uma vez sozinho com ele, todas as outras vezes estávamos acompanhados”, referiu.
O antigo responsável do SEF disse ainda que esteve três vezes com Zhu Xiadong e a sua mulher, Zhu Baoe – que conheceu através de António Figueiredo – e com Jaime Gomes, os três arguidos no processo. “Conheci Jaime Gomes em agosto de 2013, através de uma reunião solicitada pelo dr. Miguel Macedo. Este ligou-me a dizer que a empresa [de Jaime Gomes] estava interessada em trazer líbios para tratamento. Foi aí que o conheci”, afirmou. Quanto a Miguel Macedo, Jarmela Palos afirma que o conheceu apenas quando este “exerceu funções como ministro da Administração Interna e ficou com a tutela [do SEF]”.
“Queres que apresse?” Durante o julgamento foi revelada uma escuta telefónica entre Jarmela Palos e António Figueiredo em que este último pede para saber como está a correr o processo de uma mulher chinesa chamada Miao Miao. “Queres que eu apresse [uma autorização de residência pedida]? (…) Estão a dizer-me que isto amanhã está pronto”, disse o antigo diretor do SEF. Jarmela Palos justificou esta conversa com o facto de se tratar do caso específico de uma mulher que tinha de fazer uma viagem: “Era uma situação de urgência.” Questionado por Francisco Henriques sobre o facto de ser ou não “estranho” o presidente do IRN ligar ao diretor do SEF para saber o andamento de um caso concreto, o antigo diretor do SEF disse que não sabia na altura se “o processo tinha alguma coisa a ver com ele”. “Enquanto diretor nacional do SEF recebi das mais variadas pessoas solicitações deste género”, defende-se.
As garrafas e a “pinguinha” Foi também abordada uma outra suspeita: o facto de o empresário chinês Zhu Xiadong ter deixado no SEF duas garrafas de vinho para o então diretor nacional. “Nunca recebi nada nem tive a perceção de que o sr. Zhu entregasse no SEF duas garrafas que me fossem dirigidas”, afirmou Jarmela Palos. “Custa–me [a ideia de] trocar uma vida de trabalho por duas garrafas”, acrescentou o responsável, recordando-se apenas da “pinguinha” que António Figueiredo lhe quis oferecer pela altura do Natal. Como as garrafas vinham do presidente do IRN, Jarmela Palos encarava-as como “um presente institucional”.
Benesses para quem falar De manhã, o procurador José Espada Niza garantiu que o Ministério Público “está em condições de poder anunciar que se propõe comprovar todos os factos relevantes e essenciais que constam do despacho de pronúncia”. Niza disse ainda que existem testemunhas “que podem ser decisivas” para a condenação dos arguidos, mas que o “pacto de silêncio” e os “lapsos de memória” podem estar a impedir um avanço célere do processo. Assim, o procurador avançou com uma benesse: “Qualquer arguido que venha a colaborar terá de ser devidamente compensado com o direito premial”, afirmou Niza, sem especificar que arguidos poderiam ser beneficiados e de que forma.
O julgamento prossegue hoje com a segunda parte do depoimento do diretor do SEF, onde deverá ser abordada a questão relativa à sua alegada intervenção na criação de um posto para um oficial de ligação com Portugal na China e na vinda de cidadãos líbios para receberem tratamento médico. O processo conta com 21 arguidos – 17 pessoas e quatro empresas – e em causa estão alegados crimes de corrupção ativa e passiva, recebimento indevido de vantagem, prevaricação, peculato de uso, abuso de poder e tráfico de influência na aquisição de vistos gold.