“Há cinco anos tivemos uma situação idêntica no mesmo local e demorámos quatro dias a extinguir o fogo.” José Luís Bucho, coordenador do Serviço Municipal de Proteção Civil e Bombeiros de Setúbal, teve poucas horas para descansar nos últimos dias, mas ontem fazia um balanço positivo do combate ao incêndio na Sapec que consumiu dois armazéns de enxofre, assustou moradores e fechou as escolas do concelho. O fogo foi declarado extinto às 9h15, 54 horas depois de ter começado o combate às chamas, na madrugada de terça-feira. “Desta vez tínhamos mais experiência, mais meios. Nos últimos anos passámos a fazer visitas regulares às empresas e o dispositivo de resposta estava mais bem articulado.”
Ontem, no complexo industrial da Mitrena, permaneciam operações de vigilância, mas já asseguradas por quatro homens da brigada de incêndio da própria Sapec. Os armazéns, de 120 metros de comprimento e 45 de largura, foram demolidos. O metal vai para a siderurgia. “Qualquer dia pode calhar andarmos num carro feito a partir daquilo”, descontrai Bucho. O enxofre foi coberto de terra e irá para um aterro.
Bucho e fontes dos serviços ambientais ouvidas pelo i concordam numa coisa: se tivesse chovido, o impacto da “nuvem tóxica” teria sido maior. Em contacto com a humidade ou com água, o dióxido de enxofre transforma-se em ácido sulfúrico. “Teríamos tido uma chuva ácida”, resume Bucho. Que poderia ter causado danos de maior dimensão, por exemplo, em veículos e outras infraestruturas corrosíveis ou em produções agrícolas, estragando vinhas. A ironia é que o enxofre é usado no fabrico de herbicidas. Em última instância, se a exposição fosse muito intensa, até podia haver manifestações físicas como queda de cabelo.
Os peritos recordam, por exemplo, que quando as fábricas da CUF funcionavam no Barreiro, a população estava “treinada” para os cuidados a ter de madrugada por causa da exposição ao enxofre. Não se estendia roupa de noite, por exemplo.
Informações contraditórias
Numa conferência de imprensa ontem de manhã na Direção–Geral da Saúde, o presidente do INEM, Luís Meira, deu conta de que 20 pessoas precisaram de ser hospitalizadas por exposição ao fumo tóxico. Entre estas vítimas estariam dez bombeiros e quatro crianças, a mais nova com um ano de idade.
Se os bombeiros, mais próximos do local, apresentavam queimaduras, nas crianças havia indícios de lesões oculares, embora todas tenham tido alta. Bucho indicou ao i, ao final do dia, que nenhuma das situações relacionadas com as crianças acabaram por ser associadas ao dióxido de enxofre. Já bombeiros a requerer cuidados médicos foram nove. Entre civis, o responsável da proteção civil diz que a situação mais prolongada no Hospital de Setúbal foi a de uma mulher grávida que foi hospitalizada por precaução durante uma noite, tendo recebido oxigénio. Terá sido, porém, um quadro precipitado por ansiedade. Segundo o responsável, houve 14 pessoas a precisar de cuidados e todas tiveram alta.
Certo é que a vida voltou à normalidade em Setúbal e a nuvem dissipou-se no mar. Na DGS foi explicado que o enxofre, não sendo um metal pesado, não permanece na cadeia alimentar. Ou seja, os impactos são diretos. Poderá haver, por exemplo, casos de vegetais “queimados” com a humidade noturna transformada nas últimas noites em “geada ácida”, mas isso é visível a olho nu. É também pouco expetável que os viveiros de ostras sejam afetados porque, no mar, o enxofre é diluído. Mesmo que houvesse qualquer efeito, seria pontual, não contaminando o ecossistema, disse Dília Jardim, da Agência Portuguesa do Ambiente.
Embora as autoridades não tenham registos de danos materiais, Bucho admite que possa haver carros com danos na pintura. “Estas situações devem ser participadas à GNR e seguradoras”, afirma. Contactado, o Porto de Setúbal, que tem uma ala concessionada à Autoeuropa onde estão depositadas dezenas de carros, indicou ao i não haver reporte de danos. Também Avelino Antunes, da Associação de Agricultores do Distrito de Setúbal, disse não haver queixas de agricultores locais. O Ministério Público confirmou ao i ter aberto um inquérito. Perceber as causas do incêndio será um dos primeiros passos. Os bombeiros, diz Bucho, terminaram os trabalhos sem qualquer suspeita.
Justiça lenta
O caso de poluição atmosférica fez recordar o surto de legionela na zona de Vila Franca de Xira, em 2014. Na altura, as consequências da emissão de partículas contaminadas pelas torres da Adubos de Portugal foram muito maiores: morreram 12 pessoas e 375 precisaram de cuidados médicos. Dois anos e três meses depois, a Procuradoria-Geral da República confirmou ao i que este inquérito se encontra ainda em investigação. Foram anexadas ao processo 209 queixas de vítimas que esperam ser indemnizadas. O i tentou saber junto da Câmara de Setúbal se, neste caso, a autarquia vai apoiar os bombeiros e civis prejudicados, como fizeram em 2014 os autarcas de Vialonga e Póvoa de Santa Iria. Até ao fecho desta edição, não foi possível obter resposta.