Na saga Harry Poter, os aspirantes a feiticeiros aprendem logo no primeiro ano da Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts quais são as propriedades da pedra de bezoar, ingrediente essencial na preparação de antídotos e poções. Ao contrário do que poderia imaginar-se, esta pedra mítica não é uma criação da escritora J. K. Rowling: na realidade, trata-se de um cálculo que se forma no aparelho digestivo de alguns ruminantes. Da mesma forma que as ostras produzem uma pérola quando um grão de areia penetra a concha, o organismo das cabras forma esta pedra em torno de fibras que não consegue assimilar. «No século XVI as pessoas acreditavam que se se metesse um pedaço desta pedra em vinho, por exemplo, neutralizava os venenos e ajudava a combater a melancolia», explica Annemarie Jordan Gschwend, autora do livro The Global City – In the Streets of Renaissance History e co-comissária da exposição.
A Cidade Global. Lisboa no Renascimento, que inaugurou esta quinta-feira no Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA). «Havia aqui um mercado louco de pedras de bezoar, pagava-se tanto dinheiro por elas que os jesuítas de Goa começaram um negócio de falsificações», continua a historiadora norte-americana a propósito de uma peça exibida que faz lembrar uma bola de basebol montada sobre o pé de um cálice e coroada com um ramo de coral encarnado.
«A pedra de bezoar era a aspirina do século XVI». Em 1567, Ambroise Paré, o cirurgião-barbeiro de Francisco I e de outros reis de França, já havia no entanto demonstrado a ineficácia desta panaceia. A um cozinheiro da corte que fora apanhado a roubar talheres de prata e condenado à forca, foi concedida a possibilidade de servir de cobaia a uma experiência e de ficar em liberdade caso sobrevivesse. O cozinheiro foi envenenado, ingerindo em seguida uma dose de pedra de bezoar. Morreu em agonia sete horas depois.
O centro da finança
Regressemos à exposição de Lisboa. O ponto de partida foram duas pinturas que A. J. Gschwend e a britânica Kate Lowe descobriram em Kelmscott Manor, no Reino Unido, em 2009. As telas (datadas de entre 1570 e 1619) terão pertencido a Dante Gabriel Rossetti, figurando numa lista de 220 objetos do pintor pré-rafaelita como «dois quadros com cenas de uma cidade». As historiadoras somaram dois mais dois e identificaram a cidade representada.
«O primeiro indício para esta identificação foi a quantidade de negros retratados, pois, na Europa do século XVI, apenas Lisboa e um par de cidades espanholas tinham uma tão grande percentagem de africanos», lê-se na nota à imprensa. Mas o elemento fundamental foram os ferros que ali surgem representados, e que apontam de imediato para a Rua Nova dos Mercadores (ou Rua dos Ferros, como ficou conhecida), que correspondia aproximadamente à atual Rua do Comércio, na Baixa, e era provavelmente a artéria mais rica do mundo.
«Era onde estava o centro da finança», explica Anísio Franco, conservador do MNAA. «Era a rua do comércio: ficou a memória e ficou o dinheiro», que é como quem diz, as sedes dos bancos que lá estão atualmente. Quanto aos ferros, explica-nos Annemarie Jordan, delimitavam «os escritórios mais importantes. Os banqueiros tinham dinheiro. Era uma maneira de se protegerem contra o roubo e de manter do lado de fora toda a gente não desejada. Mesmo aristocratas não podiam entrar, só os mercadores e banqueiros», explica a historiadora.
«Analisámos um pouco de onde vêm esses ferros e sabemos que em certas cidades alemãs havia correntes para crowd control [controlo de multidões]. E havia tantos alemães nesta parte da Rua Nova, como os Fugger [dinastia de financeiros, um dos quais, Jacob Fugger, o banqueiro do imperador Carlos V, era o homem mais rico da época], que talvez tenham proposto esta solução a D. Manuel e à câmara municipal. Esta era a única rua em Lisboa que tinha esses ferros».
A primeira sala da exposição, além das duas telas, exibe um filme de doze minutos, outras pinturas e livros iluminados, como o Livro de Horas de D. Manuel, onde surge o cortejo fúnebre do Rei no momento em que passa justamente pela Rua dos Ferros. Aqui há também vistas de Lisboa: uma delas, de 1505, mostra «uma imensa diversidade de embarcações, símbolos da supremacia naval portuguesa que transformou Lisboa num centro de comércio global depois de 1505», diz o texto que a acompanha; outra é uma gigantesca (e a mais completa) panorâmica da Lisboa quinhentista que pertence à Universidade de Leyden, na Holanda. Raramente é mostrada ao público.
África nossa
A segunda parte da exposição começa com os avanços técnicos e científicos que permitiram a Portugal tornar-se uma potência dominante: tratados de navegação, mapas, instrumentos científicos (como quadrantes e astrolábios de uma precisão assombrosa). Serve isto, explica Kate Lowe, para «explicar o que de novo estava a acontecer em Lisboa na época». O núcleo seguinte é dedicado a África. Já vimos que na capital portuguesa havia mais negros do que em qualquer outra cidade europeia. E nem todos eram escravos, o que dava azo a preconceitos como o manifestado nesta anedota da época: «Um branco dirige-se a um negro educado e brincalhão […] num português macarrónico, como se fosse um negro boçal […]. Este responde-lhe que se chama ‘Frunando’», em vez de Fernando. Se aquele «pobre ignorante [branco] nem português sabia falar, como iria saber ‘falar negro’»? Além das pessoas, chegavam a Lisboa mercadorias da Costa ocidental africana: sobretudo têxteis e objetos de marfim. Kate Lowe chama a atenção para «duas das três únicas píxides da África Ocidental do início do século XVI que existem, nunca tinham sido mostradas juntas».
Depois há colheres, molheiras, trompas de caça e saleiros, dois dos quais com cenas da Vida da Virgem copiadas de um Livro de Horas publicado em Paris. «O talento destes artesãos transformou estas imagens planas em motivos tridimensionais, com relevo e perspetiva», nota a co-comissária. Fazer compras numa máquina do tempo «A exposição baseia-se no pressuposto de que estes bens podiam vir para a Europa através da Lisboa no século XVI e poderiam estar à venda na Rua Nova», continua Lowe. Por isso, encontramos em seguida porcelanas da China, sedas da Índia, marfins, lacas do Japão. Este núcleo chama-se, apropriadamente, ‘Às compras na Rua Nova’. «Pelo final do século XVI, o mercado estava saturado de raridades globais e havia um excesso nas ruas de Lisboa, nas lojas da Rua Nova e nos mercados que se realizavam todas as terças-feiras na Praça do Rossio, onde os bens e os têxteis indianos podiam ser adquiridos com desconto», refere Annemarie Jordan no texto do catálogo.
As porcelanas, por exemplo, eram utensílios de uso corrente. O conjunto de contadores, cofres, arcas e baús, feitos em materiais como tartaruga, marfim, madeiras preciosas e escamas de madrepérola de diferentes tonalidades é simplesmente deslumbrante. Mas o objeto que mais surpreendente é talvez um raro tabuleiro de jogo desdobrável. Servindo para partidas de xadrez, damas e gamão, tem um alçapão ao centro de onde sai uma figura feminina para assinalar o fim do jogo. No catálogo, Hugo Miguel Crespo escreve que «os tabuleiros de jogo […] rapidamente se difundiram na Ásia, sendo levados pelos portugueses nas naus da Carreira da Índia e ai replicados com as madeiras exóticas e resistentes indianas, e as refinadas técnicas locais […]. Com efeito, o xadrez, jogo que se considerava originário da Índia, era dos mais apreciados na corte portuguesa dos Descobrimentos e no qual o rei Sebastião I se teria notabilizado».
Animais de companhia e para uso terapêutico
A sala seguinte, dedicada aos animais exóticos do Renascimento e intitulada ‘Animais de Outros Mundos’, também apresenta referências ao malogrado rei morto em Alcácer Quibir. Embora haja aqui um rinoceronte embalsamado, «a ideia não era replicar um museu de História Natural, mas mostrar que estes animais eram companheiros da corte, e contar as suas histórias individuais», esclarece Annemarie Jordan. Num pequeno camafeu (uma técnica de joalharia da Antiguidade em que uma pedra com duas camadas de cores contrastantes é escavada até a camada superior formar um desenho sobre a segunda) da autoria de Jacopo da Trezzo, o ourives de Filipe II (I de Portugal), surge o mesmo rinoceronte que «foi oferecido como presente a D. Sebastião em 1577 e que tomava banho no Tejo», explica a historiadora americana.
«Era uma fêmea e vivia em estábulos na Praça do Rossio. Depois foi levada a pé para Madrid, juntamente com um elefante, quando Filipe II conquistou Portugal e se apropriou de tudo o que estava aqui. Os dois eram exibidos para o público, que tinha de pagar bilhete. Chamavam-lhe ‘maravilha de Lisboa’. Hoje em Madrid ainda existe uma rua que se chama Calle de la Abada» (rinoceronte em espanhol). E «aquando da chegada a Espanha», escreve a historiadora no catálogo, «o seu chifre fora cortado e tinha sido cegado na esperança de o conseguirem domar».
Vítimas da caça furtiva para alimentar o mercado negro na atualidade, já no século XVI os rinocerontes eram massacrados pelos seus chifres, quer para efeitos decorativos (para esculpir taças, por exemplo), quer pelas suas propriedades medicinais. À semelhança da pedra de bezoar, os chifres de rinoceronte (hoje muito procurados pelo seu poder afrodisíaco) eram usados «como medicamentos contra a melancolia, a peste, a epilepsia e o veneno», depois de «moídos em pó e misturados com vinho», escreve Annemarie Jordan no capítulo do catálogo ‘Fazer compras na Rua Nova dos Mercadores’.
Outro produto de origem animal que se acreditava ter atributos mágicos era o corno de narval, uma baleia do Ártico cujo enorme espinho espiralado era confundido com o do mítico unicórnio. Hoje sabemos que se trata de um órgão sensorial que estas baleias usam para medir o grau de salinidade da água mas então acreditava-se que o dito ‘chifre de unicórnio’ purificava qualquer líquido onde fosse mergulhado. Na exposição, um destes apêndices de nerval surge na cruz processional de D. Catarina de Braganca, filha de D. João IV e mulher do Rei Carlos II de Inglaterra.
A historiografia habituou-nos a encarar o Renascimento como um período de triunfo da razão e de progresso científico que se sucedeu ao obscurantismo e às superstições da Idade Média. Mas esse progresso e essas descobertas vieram sempre acompanhados de um forte sentido de deslumbramento. Com as suas maravilhas e curiosidades, A Cidade Global. Lisboa no Renascimento ajuda a que não nos esqueçamos disso.