´Lá se via uma máscara ou outra, um pacote de serpentinas perdido no chão ou um cartaz a anunciar o programa das festas, mas, se não fosse a música, quem chegasse a Torres Vedras a meio da tarde de segunda-feira, véspera da tolerância de ponto do Estado, não diria que esta era a terra onde milhares de portugueses se deslocam para brincar ao Carnaval. Enquanto muitos estavam em casa a preparar o traje para a noite e a comprar os últimos apetrechos para pregar partidas, centenas davam os últimos toques num plano de dimensões consideráveis que tinha apenas um objetivo: proteger os foliões. O i esteve a noite toda com a Polícia de Segurança Pública (PSP) e as suas Equipas de Intervenção Rápida, a tentar perceber como é que esta força de segurança se prepara para receber tanta gente e controlar aquele que é considerado o maior evento do distrito de Lisboa.
São 22h00 e o subcomissário Daniel Leonardo, responsável pela coordenação das várias equipas que vão patrulhar o recinto da festa, está preparado para mais uma noite de muito trabalho: “Estou aqui desde sexta e só acabo amanhã às 20h00. Se tudo correr bem, a essa hora vou estar com o resto da organização a beber um Porto e a celebrar mais um Carnaval bem-sucedido”, disse ao i. Vai, em passo apressado, para junto das equipas que vão entrar ao serviço e deixa as recomendações necessárias, alertando para perigos como as garrafas e os copos de vidro, os membros de claques de futebol que possam provocar desacatos e aqueles que, já com algum álcool no sangue, tentam subir às árvores e acabam por se magoar.
O dispositivo conta com cerca de 260 elementos da PSP, bem como com membros dos Bombeiros de Torres Vedras, da Cruz Vermelha Portuguesa, da Proteção Civil e de uma empresa de segurança privada. Fonte da organização disse ao i que foram gastos cerca de 35 mil euros na segurança do Carnaval de um orçamento de cerca de 650 mil euros – uma das novas medidas implementadas foi a colocação de camiões e de perfis de Jersey em artérias fulcrais do evento, de forma a impedir que, como aconteceu no atentado de Nice, em França, um veículo entrasse no recinto e atropelasse quem ali se encontrava. Em 2016, cerca de 350 mil foliões divertiram-se em Torres Vedras, mas a organização acredita que, este ano, o número de visitantes foi ultrapassado.
Comas, lutas e matrafonas
É com estes números que o subcomissário Leonardo tem de jogar. Distribuídos os efetivos, os homens avançam pelas ruas e ruelas do centro da cidade, patrulhando todos os cantos e prestando atenção a potenciais perigos. A equipa que segue com o responsável da PSP desloca-se ao ritmo dos sambas e dos forrós que se ouvem por todo o lado – não andam, marcham ou correm. Sempre a um ritmo acelerado, são retiradas garrafas de vidro a centenas de jovens que, na maioria dos casos, preferem beber “de penálti” do que deitar o álcool para o lixo. “Aconselhamo-os a não fazerem isso, mas vê-se que dão mais importância à bebida do que à diversão”, afirma o subcomissário da PSP. Milhares de pessoas de copo na mão, de garrafa de plástico em punho, com álcool a escorrer pela cara, com o semblante visivelmente alterado – o objetivo de muitos é ficarem alcoolizados… custe o que custar.
Em alguns destes casos, o consumidor é menor de idade, mas a verdade é que é difícil controlar tudo e todos. “Vou usar um ditado para explicar essa situação: quando se corta o pão, nunca se come tudo, caem sempre umas migalhas em cima da mesa. Nós preocupamo-nos com esse problema, mas temos preocupações muito maiores. Algumas preocupações também são da responsabilidade dos pais e a polícia tem de estar focada essencialmente na segurança do espaço. Se virmos situações dessas, chamamos a atenção e entregamos as crianças aos pais. Há responsabilidades que estes não podem colocar em cima da polícia ou de outras instituições”, disse ao i o subcomissário Leonardo.
Não havia forma de perceber se eram menores ou não, mas a verdade é que muitos dos casos de coma alcoólico que o i testemunhou naquela noite ocorreram com pessoas muito jovens, principalmente do sexo feminino. Eram encontradas estendidas num passeio, inconscientes, e levadas em braços por elementos das instituições ou por outros foliões. “Este é o lado triste do Carnaval”, lamenta o responsável da PSP. Ambulâncias dos bombeiros entram e saem em minutos do espaço reservado à Cruz Vermelha, onde muitos são assistidos. Por vezes são obrigadas a furar a multidão e a chegar a becos onde jovens estão caídos, à espera que alguém lhes acuda.
Mas a Cruz Vermelha não recebeu apenas pessoas com excesso de álcool no organismo. “Há pouco entrou aqui um indivíduo que partiu o braço a jogar ao braço-de-ferro e outro que deu cabo do pé”, disse ao i o subcomissário Leonardo. Ao entrar no centro de socorros, vemos um homem vestido de mulher (uma “matrafona”) com um pé inchado: Não está habituado a andar de saltos altos… e a calçada não ajuda”, comenta uma mulher que se encontrava junto às baias, onde centenas esperam por aqueles que estão a ser auxiliados pelos profissionais da Cruz Vermelha. Tirando um ou outro desacato em bares, o rebentamento de petardos e os falsos alarmes relacionados com assaltos e vandalismo – que faziam mover vários homens a um ritmo acelerado pelo meio de ruas cheias de pessoas –, o maior problema do Carnaval de Torres Vedras é o álcool e os seus efeitos.
O final da festa
Em cada rua por que passava, havia sempre uma piada para dizer, um pezinho de dança para dar ou uma gargalhada para soltar. O subcomissário Leonardo acredita que o Carnaval não é só para os foliões, mas também para quem trabalha para que estes possam divertir-se sem constrangimentos: “O Carnaval também é para mim. E digo a todos os meus efetivos que também é para eles. Não nos adianta muito andarmos aqui com cara de maus, temos de interagir. É claro que há situações em que as pessoas são mal-educadas ou provocam [os agentes da PSP], e nessa altura para tudo.”
Depois de horas a correr pelas ruas, de milhares de chamadas através do telemóvel e do intercomunicador, o responsável da PSP chega às 06h00 da manhã ainda com disposição para lançar um sorriso às matrafonas que ainda aguentam a pedalada do evento. Mas está na altura de ser mais assertivo e começar a dar ordens para acabar com a música nos estabelecimentos noturnos, que estão proibidos de incomodar o espaço público a partir das 04h00.
Alguns teimam em continuar com os mesmos sambas e forrós, mas a intransigência policial acaba por fazer com que, já com o sol a brilhar, Torres Vedras comece a entrar na sua rotina normal e a apreciar o silêncio de uma manhã de terça-feira. Alguns foliões continuam na rua a dançar e a cantar, mas nada se compara com o início da noite. As ruas estão cheias de lixo, copos de plástico, peças de roupa perdidas, maços de tabaco amachucados, confetis e serpentinas que dão cor a uma calçada imunda, escorregadia, de onde vem um forte cheiro a urina. Um cenário próprio de final de festa que irá desaparecer com a ajuda dos carros das empresas de limpeza, que começam a varrer o lixo e as poucas pessoas que ainda querem continuar a brincar ao Carnaval.