“Morreu de alcoolismo/ enrolada num cobertor/ sobre uma espreguiçadeira/ a atravessar o oceano/ num navio a vapor.// todos os seus livros de/ aterrada solidão// todos os seus livros sobre/ a crueldade/ de um amor desamparado/ foi tudo o que restou/ dela// quando o turista que passeava/ descobriu o seu corpo// notificou o capitão// e ela foi rapidamente despachada/ para outro sítio qualquer/ no navio// enquanto tudo/ continuou tal/ como/ ela tinha escrito”. As mulheres que normalmente saem das páginas de Charles Bukowski não costumam ter esta espessura. Mais vezes são seres elaborados como signos, metamorfoseando-se do real para o imaginário, perdendo a sua individualidade para assumirem uma aura de fascínio impossível, para se juntarem ao catálogo de frustrações e conquistas de que falam os homens que, no capítulo do amor, se julgam assombrados. Elas são seres que se balançam entre a graça e o desespero, como rabiscos anotados à margem do coração, tantas vezes distantes, sacudindo da saia as migalhas que servem de caminho ao desejo, para logo se esfumarem, deixando um tipo muito longe de si.
Tão destrutivas quanto passageiras, agrilhoadas ao papel de musas, enquanto eles pintam os seus devaneios e julgam retratá-los, tantas dão por si sendo o alvo involuntário de grandiosos espetáculos de humilhação. Virginia Woolf notou que “se a mulher apenas existisse, de facto, na ficção escrita pelos homens, surgiria na imaginação como um ser da máxima importância; muito versátil; heroica e mesquinha, maravilhosa e sórdida; infinitamente bela e terrivelmente medonha; tão importante como homem e segundo alguns ainda mais. Contudo, esta é a mulher como aparece na ficção. A verdade é que, tal como o professor Trevelyan acentua, a mulher era fechada à chave, espancada e torturada”.
Carson McCullers deixou atrás de si todas as linhas necessárias para que sobre elas se construísse o seu mito, e é por isso que, nas homenagens que lhe tecem, e foram muitos os admiradores que o fizeram ao longo dos anos, nada de essencial foi acrescentado, limitando-se a glosar o seu modo apaixonado de abandonar-se às coisas e sofrê-las intimamente. Não fazem por isso muito mais do que os miúdos ao colocar a folha de papel por cima de um ícone e passar com o carvão roubando-lhe um esboço.
Mesmo um poeta dos mais dignos na rendição às musas como é António Barahona não pode senão passar-lhe a mão pelo rosto, tomando nas suas páginas o fôlego concentrado de uma paisagem breve, onde o seu olhar é sentido com a minúcia das mais dolorosas contemplações: Uma árvore, um rochedo, uma nuvem/ Carson McCullers moribunda ou recém-nascida/ cessou de respirar sem alcançar a ciência?// Um velho, uma criança, um café ambulante,/ na madrugada da América o sabor a cerveja,/ e uma mulher fugitiva dentro do velho/ a entrar devagar p’los olhos da criança/ Uma árvore, um rochedo, uma nuvem/ o sorriso era vivo. – Lembra-te de que te amo/ Eu serei aquele velho e tu a mulher,/ a neve suspensa, à noite, sôbre a cama,/ quando o recordar-te para não morrer/ for a única tarefa na solidão do poema// E direi como ele à criança d’alva:/ – Sabes como o amor devia começar? (…)”
As “vidas invisíveis” que se revelam em páginas de uma prosa que parece tocar o silêncio segundo as flutuações de um blues. O ambiente do sul dos Estados Unidos, onde Lula Carson Smith nasceu há cem anos – 19 de fevereiro de 1917 – e cresceu, morrendo meio século depois sem nunca ter despido o vestido de menina. Nos seus livros vive toda aquela infância presa entre acordes de desolação, e uma adolescência tremida, partilhada com essas personagens que atravessam a juventude povoando cantos sombrios, numa timidez bravia. Um catálogo de inadaptados: figuras que carregam alguma deformidade, física ou íntima, algum estigma social, os seres errantes, as vidas presas por um fio.
E há os sonhos vigiados de perto pela vergonha, as contradições próprias das zonas mais agrestes desses territórios beirando o fim do mundo. O isolamento e com ele a suspeita de tudo, as comunidades como meios de clausura e castigo moral, a intolerância racial, a subjugação das mulheres aos maridos com existências sumidas em fundo doméstico, tudo isso comparece nos seus contos e romances. A sua é uma literatura da defesa dos espíritos desfeitos pelo embate num mundo que preza a forma do quadrado em que as suas dimensões se encerram.
No ano em que se cumprem o centenário do nascimento e os 50 anos da morte de Carson McCullers, a Relógio d’Água relançou o romance com que se estreou aos 23 anos, “O Coração É Um Caçador Solitário”, mas também a “A Balada do Café Triste”, seguindo-se “Relógio sem Ponteiros”, “Reflexos nuns Olhos de Ouro” e “Frankie e o Casamento”. Do catálogo da editora faz já parte uma antologia de contos da autora – “Contos Escolhidos”.
Ela escavou com a caneta o seu túnel, uma saída, mas do outro lado não foi apenas a luz o que a cercou, mas a fama instantânea. Com o seu primeiro romance abateu-se sobre ela a terrível catástrofe que, como uma bebedeira, “devora a casa da alma”, assim descreveu a glória Malcolm Lowry num dos seus poemas. Esta mesma noção insidiosa foi confirmada por McCullers que disse ter sido acometida de “uma espécie de terror sagrado”, atribuindo à sua juventude e à doença – os ataques de uma afeção pulmonar mal diagnosticada – a incapacidade de escapar à vertigem que tomou conta da sua vida. Nova Iorque e os amigos ilustres, as grandes personalidades literárias e cinematográficas de então, as adaptações dos seus livros ao cinema e ao teatro, toda a atenção só serviu para afundá-la num novo buraco.
Os que sentem mais fundo acabam as irónicas vítimas das suas paixões, e neste capítulo ela encarna os excessos de um espírito desesperadamente romântico, uma heroína trágica que casou duas vezes com Reese McCullers, um homossexual reprimido, que viria a suicidar-se num quarto de hotel em Paris. Dele disse “que era o homem mais belo que alguma vez vira”. Aparte isso apaixonou-se por mulheres, cercou-as e humilhou-se. Talvez nunca tenha vivido do amor mais que o sôfrego desejo de segurar a beleza, esse amor que consome tudo e se reforça no seu desamparo, a beleza traumática, sempre escandalosa, esse terrível eco, talvez o resto da presença de Deus, e o desespero de buscá-lo, a parecença com a juventude do que é eterno, e o esforço enlouquecedor de tentar possuí-la. Os melhores poetas continuam a tentar exprimir essa que é a verdadeira demanda do graal. Gerard Manley Hopkins talvez tenha sido aquele que chegou mais perto em “O Eco de Branze e o Eco de Ouro”. Na tradução mais justa que há em português, a de Augusto de Campos, começa assim: “Como guardar – há algum, algum haverá um, algum algo/ algures, tranca ou trinco ou broche ou braço, laço ou/ trave ou chave capaz de res-/ Guardar o belo, guardá-lo, belo, belo, belo… do desgaste? (…)”