“O teu corpo invadiu-me”, escreve uma desesperada Gabrielle ao homem que ama sem poder. Invadida pela doença com contornos de loucura e invadida simultaneamente por um amor que tem tanto de sagrado como de sexual, numa época em que às mulheres a lascívia não era permitida, perde a noção do que é aceitável, numa altura em que o desejo feminino era motivo de escândalo. “A verdade é que uma mulher que reclama e fala, de maneira tão imperiosa, do seu desejo sexual, continua a ser um escândalo e algo que perturba. Nos anos 50 como hoje, em que o desejo feminino continua a ser escandaloso. Ainda hoje aceitamos melhor o desejo masculino e o Don Juanismo dos homens, do que das mulheres”, disse ao i Nicole Garcia, realizadora de “Um Instante de Amor”, filme que hoje estreia nas salas portuguesas.
Com Marion Cotillard, Louis Garrel e Alex Brendemühl nos principais papéis, este é um filme sobre as tais várias nuances que o amor possui. E é, acima de tudo, um filme com duas mulheres no seu epicentro: uma – Marion Cotillard – no ecrã; outra – Nicole Garcia – atrás da câmara. Foi, aliás, a personagem feminina do livro “Mal de Pierres”, de Milena Agus, que, de imediato, seduziu Nicole Garcia para este projeto. “Não andava à procura de um filme, mas ao ler este livro senti que havia ali algo que era para mim, algo que me tocou. Senti como que uma revelação, algo que não quis deixar passar. Por norma crio cenários e histórias originais para os meus filmes, mas aqui fiquei fascinada com esta personagem que vê o amor como algo sexual e sagrado ao mesmo tempo, que é o contrário da banalidade, algo que dá sentido à sua vida. É uma personagem que quer algo que todo o mundo lhe recusa, sobretudo a sua mãe, que diz que ela é louca.” Uma mãe que, ao desamar a filha, a condena à busca desesperada de um amor.
Apesar de contar com cinquenta anos e dezenas de filmes como atriz e apenas oito projetos como realizadora, Nicole Garcia nunca viu este texto com o olhar da atriz. “Primeiro, nem sequer tenho a idade da personagem, por isso nunca pus a hipótese de representar esta mulher”, confessa. “O que queria mesmo era poder contar esta história”. e queria contá-la através de uma adaptação do livro que fosse “livre”, e com Marion Cotillard no papel de Gabrielle. “Soube desde o início que queria a Marion para este papel. E ela está extraordinária. Brutal e selvagem. Foi sempre a atriz que acreditava ser a que mais se aproxima desta personagem. Foi um longo processo entre nós, apesar de ela captar muito rapidamente por onde a queremos levar. Mas é uma personagem que carrega um grande sofrimento.” Uma decisão que, no entanto, não significa o afastamento de Nicole Garcia da representação, até porque, para a francesa de 70 anos, representar é um prazer e uma necessidade. “O meu narcisismo precisa da representação, mas nunca ao mesmo tempo que realizo. Não é a mesma energia e não gosto de conciliar.”
Ainda que este seja um filme com duas mulheres no seu epicentro, a realizadora, eterna fascinada pela complexidade das relações humanas, rejeita a ideia de uma cinema feminino ou de um olhar feminino sobre o cinema. Isto porque, no seu entender, este olhar menospreza as mulheres. “Detesto quando dizem que é um cinema de mulheres como se remetessem as mulheres para trabalhos manuais e caseiros. As mulheres saíram das suas casas. Foi preciso muito tempo para aqui chegarmos e ainda há caminho para percorrer, mas somos tão criadoras como os homens. De resto acho que o há são cineastas e não cineastas, mais do que realizadores e realizadoras. Depois, podem dizer que há uma sensibilidade feminina e que ela se revela nos projetos, mas também há alguns homens que a revelam, como Ingmar Bergman. O que é maravilhoso é que, quando trabalho como atriz sou obrigada a fazê-lo dentro do meu próprio sexo. Mas como cineasta o masculino é-me tão possível como o feminino. Tudo é possível.”