Richard Zimler. Eliezer ben Natan, ou a morte seguida de vida

Em O Evangelho segundo Lázaro, Zimler consegue recordar-nos de algo histórico e documentado – a convivência pacífica, que hoje nos é tão alheia, entre os mais diversos grupos étnicos e linguísticos, de crenças que iam desde o zoroastrismo persa até ao judaísmo semita e politeísmo greco-romano.

Os déspotas do nosso mundo têm medo dos homens que insistem em narrar as suas próprias histórias até ao fim. Querem controlar o modo como a contamos, mas não devemos deixá-los.

Richard Zimler, O Evangelho segundo Lázaro

Certas religiões ou igrejas preferiam que a leitura de textos tidos como sagrados fosse deixada aos sacerdotes, as suas parábolas, metáforas e simbolismo estando para além da compreensão dos seres comuns e razoavelmente inteligentes, pensadores desencartados. Poucos de nós, suspeito, alguma vez foram expostos na catequese da sua tradição ao ponto de vista que porventura mais esclarecedor seria – o que pensam e dizem os próprios judeus, daquele tempo e do nosso, de tudo o que levaria a Gólgota um compatriota nazareno de Lázaro, ou, ainda mais, o que possivelmente disseram, pensaram e testemunharam os que com ele conviveram e sofreram a maior convulsão do mundo antigo, os seus descendentes para sempre condenados à fúria assassina de quase todos outros? Como viu ou vê, este mesmo povo, cujos mitos da Criação são os nossos, que não falava as línguas do Poder e que fora colocado pelas circunstâncias históricas numa determinada geografia, essa que perdura no nosso imaginário como sendo o sítio genesíaco do Bem e do Mal, as figuras principais de um drama sem igual nas nossas raízes e tradição greco-romana e judaica?

Tudo isto permanece fora do nosso conhecimento e sensibilidade, e é a um escritor, estou em crer, que cabe tentar preencher esses espaços em branco, em que imaginação se alia obrigatoriamente à documentação existente, quer nas páginas bíblicas quer nos documentos e objectos que continuam a ser desenterrados pelos mais variados estudiosos e ramos do saber académico.

Antes e depois de chegarmos a este ponto fulcral do romance, Richard Zimler presenteia o seu leitor com alguma da melhor prosa na literatura dos nossos dias, mesmo numa tradução que depressa nos faz esquecer que a língua original em que foi escrito este livro é o inglês – a viveza metafórica e simbolista absolutamente essencial a uma grande história como esta, o inesperado dito de um personagem ou então a sua reinvenção simultaneamente seguidora e apócrifa do que sabemos ou não acerca de cada um deles, a audácia de humanizar os detentores ou inventores do mistério que é a noção de Deus e do nosso destino na vida e na morte. Aliás, a linguagem realista e descritiva é outro marco eloquente da narrativa, como que um contraponto à ofuscação de textos que nos pedem fé e não raciocínio, algo que o próprio Lázaro, nestas páginas, rejeita logo após a seu regresso à vida. A ironia e o humor fazem o resto.

Lázaro perde a fé por nada ter “visto”, nada ter experimentado, de nada se lembrar daqueles dias de morte. Faz-me recordar aqui um outro grande romance, "Judas", do israelita Amoz Oz – Judas perde a fé quando vê Jesus na cruz e sem salvação, enforcando-se de seguida, não pela traição que dizem ter cometido contra Jesus, mas pelo vazio de viver na ausência de qualquer crença. Zimler consegue recordar-nos de algo histórico e documentado – a convivência pacífica, que hoje nos é tão alheia, entre os mais diversos grupos étnicos e linguísticos, de crenças que iam desde o zoroastrismo persa até ao judaísmo semita e politeísmo greco-romano. Só a exploração imperial de sempre produzia a violência e o ódio, “esta necessidade – diz o narrador a dada altura – de ser o dono dos outros”.

Deixo aos estudiosos e filósofos o lado teológico desta narrativa, cinjo-me ao que constitui uma grande obra literária, como é este "O Evangelho segundo Lázaro". O relato informal do indefectível amigo de Yeshua/Jesus está a ser feito no exílio da ilha de Rodes, para onde foi Lázaro desde a crucificação do seu amigo, o Mar Egeu a separá-lo dos que lhe tirariam a vida para que ele nunca mais falasse de nada e de ninguém. Está a ditar as suas memórias ao neto Yaphiel porque sabe que a sua vida foi algo de extraordinário, inexplicável no momento em que sai da morte para a vida, mas restando-lhe sobretudo a memória de uma vida em família e comunidade, particularmente nos anos em que Yeshua anda a pregar por todo o Sião, desde a Galileia das suas origens à Jerusalém do seu fim, enquanto ele, Lázaro, regressa à sua profissão de ladrilhador de mosaicos nos palácios dos romanos e de judeus colaborantes com o ocupante desde há décadas, e que não respeita minimamente a identidade do povo que governa e de que extrai toda a riqueza em volta.

Nada de novo aqui, outros escritores já haviam proposto ou insinuado a confusão entre pregadores, místicos e feiticeiros e a insurgência da palavra deliberada ou que resultou na denúncia de quem desafiou os sacerdotes do Templo na sua submissão ao conquistador e à sua vida absolutamente faustosa e corrupta. O que não sabemos, o narrador imagina e recria, a vida quotidiana dos que trabalham e tentam sobreviver com um mínimo de dignidade, o seu desespero calado levando à busca de misericórdia por qualquer meio ao seu alcance, a espera de um Messias a mais velha profecia do seu Livro. Lázaro, viúvo de Lia, traça-nos um retrato de minúcia psicológica e realista das suas duas irmãs, Marta, que suspeita das mais vis traições e invejas, e Miriam na sua aparente seriedade e dedicação ao bem-estar do pequeno clã, assim como Yirmi, o seu filho que o acompanha e ajuda nos seus trabalhos diários, um observador adolescente mas atento às ameaças de toda a natureza que envolve vida dos seus, cada rua de Jerusalém vigiada pelos espiões dos romanos e dos sacerdotes irados.

Pelo meio, Lázaro recorda ainda outras figuras que os textos sagrados canonizaram mas nunca explicam, Pilatus aqui um arrogante governador de província sem qualquer sentido de justiça ou humanidade. Até a língua do ocupante é odiada, numa viragem de grande ironia e significado, pois seria essa mesma fala que viria a reger a nova religião no império após a morte de Yeshua, que, como se sabe, nunca conheceu ou ouviu a palavra “cristão”, muito menos de uma igreja que não poderia ser sua – nasceu, viveu e morreu judeu. Ao contrário de outras ficções da mesma temática, a figura Yehudah de Cariote, Judas, continua aqui suspeito do que viria a ser a outra mítica sobre a sua pessoa, até hoje, a traição nunca provada mas que Lázaro também suspeitava.

Esta é uma narrativa que também cabe no género que consideramos o romance histórico, sendo algo mais, muito mais. Entre os factos históricos e as suposições celestiais ou de um mundo-outro estamos perante uma narrativa que parte de tudo isso para reinventar um mundo tão misterioso como plausível, tão humano como deificado. Cabe a um escritor assumidamente judeu, uma vez mais, essa reinvenção, e mesmo desconstrução da fantasia, ou do não evidente aos nossos olhos. A ética da arte literária está também aqui – nenhum leitor se esquecerá do sofrimento humano que todo um povo tem vivido desde então até hoje, o fundamento principal dessa implacável violência nada mais do que um conjunto de textos de origens mistificadas, que uns aceitam quase literalmente, outros não.

A identidade de Yeshua aqui é só uma – a luta pela dignidade e justiça numa sociedade que havia sido conquistada pela força das armas e teria evoluído em exclusivo a benefício dos ricos e poderosos. Na literatura, é o ponto de vista – a perspectiva – que determina o efeito que uma obra exerce no seu leitor. Neste caso, os crentes continuarão crentes, os não-crentes ficarão agradecidos por uma inimitável tirada artística sobre os mais velhos temas da humanidade – vida e morte, amor e ódio, lealdade e traição, o sagrado e o profano. Os últimos dias de Yeshua carregam em si tudo isto, a metáfora suprema da nossa condição de sempre e em toda a parte.

“Yaphiel, meu querido, – adverte Lázaro ao seu neto escritor, numa espécie de meta-narração em que se torna este romance, o contar de uma história que subverte a já conhecida, a profecia do Livro – agora que estou numa idade em que os boatos sobre as minhas falhas morais e as das minha irmãs já pouco me afetam, vou contar-te um segredo: ambas as tuas tias-avós foram apanhadas numa tempestade de areia quando atravessavam o deserto da adolescência, e essa tempestade chamava-se Yeshua. No que respeita ao narrador deste texto, deixo que sejas tu a decidir como foi que ele singrou nessa mesma tempestade avassaladora que – como se veio a verificar – acabou por lhe mudar a vida”.

“Tempestade de areia” em que, supõe-se, a visão de todos fica inquestionavelmente distorcida, e enquanto se fecha os olhos perde-se o resto do cenário, o coração dessa tempestade para sempre mitificado pelos que a viveram. "O Evangelho segundo Lázaro" poderá não ser um romance de ideias, no sentido crítico tradicional, mas é de uma inquestionável riqueza na construção de cenários que todos conhecemos, mas não entendemos de todo.

Um dos muitos momentos de bom humor e profunda humanidade neste romance é quando Lázaro duvida da sua própria morte. Não terá sido um engano das irmãs que confundiram um tempo de inconsciência com a paragem cardíaca definitiva? Yeshua diz-lhe que não, pois elas colocaram o ouvido duas vezes sobre o seu peito, não havia mais nada. Lázaro não aceita nem deixa de aceitar. Retoma a narrativa sem igual do seu amigo de infância, desde o momento em que lhe salvou de um afogamento num rio galileu, para a gratidão infinita da Miriam, a mãe de Yeshua. Esquecemos também de quem se trata nestas páginas, e vemos só homens e mulheres no seu esplendor ou fealdade humana.

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Richard Zimler, "O Evangelho segundo Lázaro" (tradução de Daniela Garcia), Lisboa, Porto Editora, 2016. O autor manteve aqui os nomes dos personagens em hebraico.