Marido deixou de ser o “chefe de família” há 40 anos

Alteração ao Código Civil em 1977 baixou a idade da maioridade dos 21 para os 18 anos, mas foi sobretudo um marco na igualdade entre homens e mulheres na vida familiar. Cerimónia marcada para esta tarde no Ministério da Justiça, com a presença de Marcelo, evoca a lei que modernizou o país.

Poder marital: O marido é o chefe da família, competindo-lhe nessa qualidade representá-la e decidir em todos os atos da vida conjugal comum.

Até à revisão do Código Civil em 1977, não havia margem para dúvidas: em casa, era o homem que mandava. E as mulheres bem podiam protestar: a lei não estava do lado delas. Em causa estava o artigo 1674.o do Código Civil, instituído em 1966. Só depois do 25 de Abril, já em 1976, o governo mandatou um grupo de juristas para tratar da reforma da lei e garantir que o princípio de igualdade da nova Constituição não seria em vão.

Isabel Maria de Magalhães Collaço, Maria da Nazareth Lobato Guimarães, Leonor Beleza e Francisco Pereira Coelho foram alguns dos membros da comissão revisora e o resultado do trabalho perdura até hoje. Ainda assim, à época teve uma visibilidade discreta. O “Diário de Lisboa”, por exemplo, destacou sobretudo a nova idade de maioridade, que baixou dos 21 para os 18 anos, quando foram dezenas os artigos alterados.

Novembro de 1977

Foi a 25 de novembro de 1977 que a lei mudou. O aniversário só se celebra daqui a uns meses, mas o Ministério da Justiça escolheu o Dia Internacional da Mulher, que se assinala hoje, para uma cerimónia evocativa que contará com a presença de Marcelo Rebelo de Sousa.

O artigo do “poder marital” foi substituído pelo conceito de “deveres de cooperação” e passou a ditar que o “dever de cooperação importa para os cônjuges a obrigação de socorro e auxílio mútuos e a de assumirem em conjunto as responsabilidades inerentes à vida da família que fundaram”. Nos últimos 40 anos, o Código Civil já sofreu 68 revisões, mas esta disposição mantém-se.

Apesar de esta ser uma mudança simbólica, estava longe de ser a única. No dia a seguir à publicação do diploma, o “Diário de Lisboa” referia algumas das alterações além da maioridade. Os 16 anos passaram a ser a idade mínima para casar, com consentimento dos pais. Até então, os rapazes já só podiam casar aos 16 anos, mas as raparigas podiam ser levadas ao altar aos 14, por vezes em casamentos arranjados pela família.

No que diz respeito à igualdade de género, o diário destacava o facto de a mulher casada deixar de ser obrigada a ter o domicílio legal do marido e de a escolha da residência do casal passar a resultar do acordo entre ambos. As mudanças na filiação eram consideradas, pelo “Diário de Lisboa”, profundas, mas remetidas para o final de um breve artigo. As mães passavam a poder reconhecer os filhos quer fossem ou não casadas. Entre as casadas, previa-se a presunção de que o filho era do cônjuge. No entanto, passavam a poder “indicar no ato do registo que o filho não é do marido.”

Uma evolução histórica

Elina Guimarães (1904-1991), no artigo “A mulher portuguesa na legislação civil”, publicado em 1986 na revista “Análise Social”, faz um enquadramento dos direitos da mulher enquanto esposa e mãe até ao pós-25 de Abril. O texto da jurista e feminista histórica ajuda a perceber de onde vínhamos e onde chegámos.

O Código Civil de 1966, que vigorou entre 1967 e o final dos anos 70 – o segundo na história do país depois do código de 1867 –, recuou na igualdade que tinha sido garantida nas Leis da Família em 1910. Logo após a implantação da República, as portuguesas passaram a ter novos direitos. Por exemplo, os maridos deixaram de poder obrigá-las a regressar ao domicílio conjugal – ainda assim, elas continuam a ter de adotar a residência dos maridos e a ter de segui-los, o que só muda em 1977.

Em 1910 passou também a ser opção das mulheres usarem o apelido do marido, o que em 1966 passaria a ser um “direito da mulher” que, depois da morte do marido, lhe podia ser retirado caso se mostrasse “indigna dele”, lê-se no antigo diploma. No que diz respeito aos filhos, a República trouxe direitos mais aproximados para homens e mulheres, mas não podiam perfilhar filhos fora do casamento, o que deu azo a registos com pai ou mãe incógnita. Elas, nem pensar. Os homens podiam, mas deviam mantê-lo em segredo enquanto durasse o casamento.

Ainda assim, em maio de 1911 dava-se outra pequena mudança que mostrava como os republicanos pretendiam seguir o caminho da igualdade: os pais podiam ser considerados indignos e o poder parental inibido, abrindo-se a possibilidade de atribuir as crianças à guarda das mães. Também o divórcio foi legalizado em Portugal em 1910, atribuindo o mesmo peso ao adultério deles e delas. E os filhos, em caso de não haver acordo, poderiam ser confiados a um ou ao outro.

Chegados ao Estado Novo, houve avanços, mas sobretudo retrocessos. Logo nos anos 30 foi concedido direito de voto às mulheres, mas tinham de ter estudos secundários, quando aos homens “bastava saber ler e escrever” – o voto universal só viria a ser garantido nas primeiras eleições depois do 25 de Abril.

Na preparação do Código Civil de 1966 chegou a pensar-se em voltar a instituir a hipótese de obrigar, pela força, a mulher a voltar ao domicílio conjugal. “Provavelmente devido aos muitos protestos, essa humilhante disposição não figurou no novo Código”, escreveu Elina Guimarães.

Ainda assim, e apesar de uma declaração da ONU em 1961 ter considerado “indispensável” o princípio da igualdade de direitos dos homens e das mulheres, retomou-se a tal ideia do “poder marital”, que a autora dizia lembrar o “dever de obediência” anterior à República.

Em 1966, os casamentos deixaram de ter forçosamente comunhão de bens para passar a existir comunhão de adquiridos. E a mulher passou a poder “exercer profissões liberais ou ser funcionária pública sem necessidade do consentimento do marido”, escreveu Elina Guimarães. Mas, noutros trabalhos, o marido não tinha de dar consentimento, mas podia pedir a cessação do contrato. E era nos deveres com os filhos que mais se notava o recuo.

Ao chefe de família cabia providenciar a alimentação dos filhos, a educação, instrução e assistência moral, e administrar os seus bens. A mulher devia “ser ouvida e participar em tudo o que diga respeito aos interesses do filho”, vigiar pela sua integridade e substituir o marido sempre que este se encontrasse “em lugar remoto ou não sabido” ou incapacitado. “A única ocasião em que o consentimento da mãe é expressamente necessário é para o casamento dos filhos menores. Mas este podia ser facilmente elidido pelo pai, emancipando o filho”, sublinha Elina Guimarães. “Compare-se-lhe a redação sóbria do primeiro Código Civil (de 1867): ‘na ausência ou impedimento do pai,. faz a mãe as suas vezes’. Cem anos depois, século caracterizado pela rápida mudança da situação da mulher na sociedade, o segundo Código Civil cerceava praticamente esses direitos.”

Havia outras matérias em que as mulheres eram tratadas de forma desigual. Por exemplo, um dos motivos válidos para a anulação do casamento era o marido não saber que a mulher não era virgem quando casou. A “virgindade” das mulheres também só desaparece do Código Civil em 1977.

“Cumprido o mínimo constitucionalmente exigido e posta de parte, por razões óbvias, a ambição do máximo, foi-se até onde se pôde”, lê-se no preâmbulo do diploma. Em declarações ao “Público”, no ano passado, Leonor Beleza confessou que o trabalho de revisão foi das coisas mais interessantes que fez na vida.

A ex-dirigente do PSD e presidente da Fundação Champalimaud lembrou que uma das questões que levantaram mais polémica foi a ideia de que, em caso de morte do cônjuge, o marido ou a mulher passavam a ter tantos direitos como os filhos.

Também a adoção foi facilitada. Até aí, só duas pessoas casadas e há mais de dez anos sem filhos podiam fazê-lo. Outra mudança simbólica foi instituir que cada cônjuge conserva os seus apelidos, mas pode acrescentar o apelido do outro.A mudança pode demorar mas, em 2014, houve mais de mil homens que optaram pelo apelido das mulheres.