Síria. Concurso pelo coração do califado

A batalha pela capital do Estado Islâmico pode definir a balança de poder na região. EUA já chamaram reforços.

Três lanças apontam por estes dias à capital do suposto Estado Islâmico, onde o grupo tem as suas grandes estruturas administrativas, organiza ataques no estrangeiro e preserva as parcas aspirações a um califado. Nenhuma chegou a Raqqa, mas é para lá que voltam as atenções. Do sul, o enfraquecido regime sírio e seu aliado russo procuram participar na campanha, embora ainda ocupados com a segunda libertação de Palmira, a cidade património mundial da UNESCO que o grupo extremista delapidou. Acontece o mesmo no norte, de onde o exército turco olha com interesse para a capital jihadista. Conquistá-la significaria que Ancara e os seus rebeldes árabes teriam algo a dizer sobre o futuro político sírio. A relevância que perderam ao longo dos quase seis anos de guerra seria reconquistada com a tomada de Raqqa. Mas, como sírios e russos, de mãos atadas com o vasto território que têm de preservar, os turcos apenas olham de longe e preocupados para o grande bastião. Quem avança rapidamente são os seus inimigos curdos, apoiados e defendidos pelos aliados norte–americanos, que ontem se lançaram com afinco na corrida ao coração do califado.

Os Estados Unidos admitiram ontem a chegada de mais 400 soldados à ofensiva curda pela capital do Estado Islâmico, os quais, como os 502 americanos das forças especiais já em terreno sírio, estarão fora da frente de combate, sobretudo comandando a artilharia pesada que apoiará os avanços contra os jihadistas. O Pentágono, que ainda espera uma reavaliação da estratégia síria do novo governo, assegura que o destacamento de mais homens é temporário, mas não apenas destinado a apoiar a frente curda, que colabora em aliança com algumas milícias árabes – estas forças estão em grande minoria, mas juntas formam as chamadas SDF, ou Syrian Defense Forces. Os norte-americanos vão também gerir a paz entre fações rivais no conflito, adotando uma postura diferente daquela que tiveram até hoje, acima de tudo concentrada no combate ao Estado Islâmico e, em menor escala, no apoio a alguns grupos de oposição a Bashar al-Assad.

Corrida perigosa

A nova função americana é um dado importante. Washington sabe que o concurso pelo coração do califado tem fronteiras complexas, pode definir muito do equilíbrio de forças no país e região, e, para além disso, pode transformar em guerra as profundas fendas no combate ao Estado Islâmico. Os aliados curdos vêm em Raqqa o mesmo que outros grupos rebeldes viam em Alepo: uma garantia de que, terminado o conflito, as suas aspirações políticas serão ouvidas. E agora que o epicentro diplomático está nas mãos da – até há meses, improvável – frente turca, iraniana, síria e russa, os curdos têm motivos para se preocupar. A principal missão de Ancara é impedir que eles formem uma zona de autonomia política no Rojava, a cintura de território a sul da fronteira turca e, aos olhos do seu governo, um grande incentivo aos separatistas do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), irmão do YPG e sua encarnação síria – no que diz respeito ao presidente Recep Tayyip Erdogan, porém, são uma e a mesma coisa.

Esta semana, por exemplo, os norte-americanos enviaram tropas e veículos para Manbij, no norte do país, onde as forças turcas estão impedidas pelos curdos de progredir em direção a Raqqa e onde o Pentágono temia que ambos entrassem em confronto – um, aliado da NATO; outro, parceiro no combate ao Estado Islâmico. Parte do reforço anunciado ontem ficará em Manbij para garantir a paz, mas o conflito entre turcos e curdos pode ser inevitável, principalmente se Erdogan vencer o referendo do próximo mês e as SDF ameaçarem tomar Raqqa.

Liderança em fuga

A suposta capital do grupo jihadista está praticamente cercada e alguns dos seus líderes, de acordo com informações norte-americanas, estão já em fuga. Seguem em direção a Deir Ezzor, cidade há anos dividida entre bolsas de resistência do regime e o resto da cidade nas mãos do Estado Islâmico, e que, caindo Raqqa, se pode revelar um bastião de último recurso. A sua fuga, porém, é menos uma indicação de que o grupo jihadista atira as armas ao chão do que da intenção de estender o quanto possível a batalha – o grupo, em todo o caso, perdeu uns 65% do território que deteve no seu auge e milhares de combatentes, e vive esganado de recursos e voluntários. Raqqa, como Mossul, no Iraque, será, no entanto, uma batalha lenta e difícil. A cidade está fortificada e tem a defendê-la entre três e quatro mil combatentes jihadistas, uma boa parte dos cerca de 15 mil homens que restam à organização.