Às vezes a porta por onde se entra é o que menos importa, diz Marco Martins numa conversa a propósito da estreia de São Jorge, filme que chega às salas cinco anos depois de terem começado a trabalhar nele. Ele e Nuno Lopes, que foi quem lhe pediu um filme sobre boxe, sonho antigo para este que seria o primeiro filme em que trabalhavam juntos desde Alice.
O que importa não é por onde se entra, dizia Marco Martins, é o lugar a que se vai parar. E a pesquisa nos ginásios e nos ringues levou-os à crise, ao fundo dela, ao lugar onde sempre existiu na verdade.
E se há histórias demasiado reais para serem ficcionadas e isso é uma certeza, sobretudo depois do trabalho que fizeram juntos em teatro nos Estaleiros Navais de Viana do Castelo com não-atores, São Jorge também havia de deixar de ser apenas um filme sobre boxe para ser o filme que tinha que ser feito.
Melodrama social sobre a crise e os efeitos da austeridade, sobre o mundo das cobranças difíceis que lhes entrou pelo filme quando Marco Martins leu uma das muitas entrevistas feitas a pugilistas na pesquisa. “Lembro-me perfeitamente da pessoa e de ler essa entrevista em que a pessoa diz ‘o que eu faço é cobranças, a chamada cobrança presencial’. Depois percebi que não era um caso isolado, que havia muitos mais, e aí descobri o filme, aí é que estava o filme”.
Aí e naqueles que se foram tornando nos seus verdadeiros protagonistas, os moradores dos bairros da Jamaica e da Bela Vista, no Seixal, a quem Nuno Lopes dedicou em Veneza o prémio de Melhor Ator na secção Horizontes, com os não-atores que a seu lado e de Mariana Nunes, José Raposo, Beatriz Batarda e Gonçalo Waddington compõem o elenco de São Jorge. “Quando começou a pesquisa nos bairros e comecei a ver a urgência que aquelas pessoas tinham em falar dos assuntos da crise, os meus diálogos escritos tornavam-se quase caricatos”, recorda o realizador que vê São Jorge como uma não-ficção. “Isso mudou o filme. A casa do Jorge no início não era nada daquilo, era ele e o pai e mais uma personagem”.
“Estavam a bater-se a sério”
Da mesma forma que depois de todo o trabalho de pesquisa e de preparação para o filme Nuno Lopes diz que, ao contrário do que acontece de todas as vezes, não se lembra do primeiro dia de rodagem, da sua primeira cena em São Jorge, também Paulo Seco, treinador com quem aprendeu a combater, porque o combate a que assistimos no filme é real, e que foi depois convidado para entrar no filme como treinador de Jorge, não se lembra já de como isso aconteceu.
“Nem sei explicar muito bem como é que isso aconteceu, quando entrei no São Jorge foi para ajudar na preparação do filme e no treino. Só mais para a frente é que me disseram que seria eu que iria fazer de treinador do Jorge – da mesma maneira que não há duplos para o Nuno, que combateu mesmo – com alguns cuidados mas às tantas já sem cuidado nenhum, no calor do combate houve uma altura em que senti que não estavam só a medir forças, estavam a bater-se a sério”, diz Paulo Seco que em São Jorge faz no fundo de si próprio.
“Não havia guião, nunca me deram um papel para a mão com o que eu tinha que dizer. Davam-me pontos-chave: que o Jorge estava chateado com o pai [José Raposo] ou que não tinha dormido bem, para eu saber como lidar com cada situação”.
Paulo Seco é apenas um dos muitos não-atores deste filme, escolhidos no minucioso processo de casting que teria valido só pela descoberta de David Semedo, a criança de 7 anos que interpreta o papel de Nelson, o filho que Jorge está em risco de perder. “Tinha três pessoas a fazer casting e vi milhares de pessoas para cada uma das personagens», diz Marco Martins, realizador convicto de que «não há mesmo personagens secundárias num filme”.
É essa uma das grandes virtudes de São Jorge, a forma como deixa a realidade entrar pela ficção num género híbrido com atores e não-atores que quase se confundem – e às vezes confundem mesmo – neste que é um dos objetos mais singulares do cinema português dos últimos anos.